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sexta-feira, novembro 22, 2024

A crise venezuelana e anticrise da esquerda

Por Aryadne Bittencourt

O compartilhamento de notícias sobre a situação dos venezuelanos, que estão na Venezuela ou que fugiram de lá, não raramente (ou quase sempre) são seguidos por contestações de pessoas que se identificam com a esquerda para redirecionar o debate em defesa do governo bolivarianista.

Essa defesa ora é apresentada como alerta de um golpe por vir, ora como desmistificação de uma narrativa imperialista, ora como problematização de uma crítica que precisa ser ainda mais crítica para enxergar a manipulação por trás dos dados sobre a crise venezuelana.

No Brasil, lugar em que o êxodo venezuelano é extremamente expressivo e estratégico para a política global, o debate sobre nossos vizinhos tem sido tingido pelas disputas sobre o papel e a emoção da esquerda.

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Um paralelo prudente entre o panorama brasileiro e o venezuelano é o risco que alguns assumem de pegar a bandeira da esquerda para se fazer vendar os olhos.
Problematizar essa tragédia humanitária pelo fortalecimento de dicotomias vãs é fazer dela também, ou sobretudo, uma tragédia política, subjetiva e moral.

Já são centenas de milhares de venezuelanos que saíram em fuga. É, de longe, a maior crise de refugiados que o Brasil enfrentou. E uma das maiores, senão a maior, da América Latina. Deslocar a discussão da tristeza vivida por essas pessoas para tentar encontrar a causa raiz-Verdadeira-pura desse horror corrobora a desatenção com a qual elas têm sido tratadas.

As relações de poder exercidas tornam cada mais indistinguível a zona entre público e privado, local e global e, como grita a Venezuela, entre práticas políticas de direita e de esquerda. A insegurança alimentar venezuelana é o avesso do que o regime bolivarianista se presumia banir. A sabotagem que sofrem as pessoas com fome e medo indubitavelmente tem relação com interesse de grandes empresas, bem como do ânimo do governo de Maduro em alimentar seu regime, seu bolso e seu sadismo. O norte está no sul e o sul no norte.

Junto aos relatos de fome extrema (perda de peso média da população, abortos, desnutrição aguda infantil) estão os relatos de opressão política (demissão de pessoas comuns críticas ao governo, repressão violenta a protestos, condicionamento do fornecimento de alimentos e medicamentos ao apoio do regime). Não é possível distinguir nos relatos o que gerou a fome e o gerou o medo. Estes são instrumentos centrais utilizados pelo governo venezuelano para fazer gestão da submissão e controlar o desejo.

Faixa criada por venezuelanos no Rio de Janeiro durante plebiscito simbólico, em julho de 2017.
Crédito: Arquivo Pessoal/Aryadne Bittencourt

Um venezuelano que chegou ao Brasil contava como perdeu 80% da visão por estresse e falta de alimentação, e dizia como sua família estava desesperada porque não conseguia pagar pelo sustento próprio devido à inflação (que foi de 85% no último dezembro). Outro venezuelano, para dar gravidade ao desabastecimento de alimentos, mostrava vídeos de supermercados com quase todas as prateleiras vazias, e contava como sentia medo em ter registrado esse vídeo porque seria preso se pego por um dos inspetores do governo. Por aí vai longe. Uma venezuelana contou também que a Guarda Nacional arrombou o portão do prédio vizinho, saqueou os apartamentos e levou preso um rapaz que havia sido denunciado como manifestante contrário ao governo. Típica capilarização e sustentação desses regimes totalitários: o policiamento das pessoas é feito por elas próprias e os direitos são gramática utilizada para sua própria violação. O Estado é defendido como entidade divina, a esquerda como religião, e o golpe justifica tudo e tomou corpo próprio.

O golpe na Venezuela já aconteceu e é por isso que as pessoas fogem para viver. Ele é contra o povo, não contra um governo. Como já é esperado, alguns discursos xenófobos classificados como de direita repulsam a chegada massiva de venezuelanos no Brasil. Endossando essa gramática, algumas expressões da esquerda questionam essa vinda pela sua legitimidade. Tão (ou mais) comum que os discursos contra os venezuelanos pela direita são as inculpações provocadas pela esquerda (partidos políticos, centrais sindicais, professores universitários, militantes profissionais).

Algumas defesas em nome da esquerda se ocupam em procurar num palheiro a salvação de um regime que violenta, castiga, mata. Ao mesmo tempo, não apreendem a potência dos sujeitos que fogem enquanto ficam contestando sua legitimidade de resistência sob acusação de falta de oficialidade, institucionalidade ou legalidade. É justamente para desviar da perversa armadilha montada pelo Estado que essas pessoas fogem. Elas fazem tremer o terreno da miséria, desestabilizam o estado das coisas para não sucumbir, cavam brechas de liberdade e suspiros de vida. Ao invés de se deixar contagiar pela força de luta dessas pessoas que fogem e que, no mesmo movimento, denunciam as atrocidades de um regime; alguns defensores de direitos humanos abraçam e forçam a legitimidade desse regime.

Espalhemos a crise e a coloquemos na dimensão da luta pela vida e pela liberdade. É suposto que não fogem do paraíso.

Aryadne Bittencurt é graduada em Relações Internacionais pela PUC-Rio e em Direito pelo UFRJ, além de doutoranda em Direito pela UFRJ e mestre pelo mesmo programa. Atua no Programa de Atendimento a Refugiados e Solicitantes de Refúgio da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro

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