Por Bianca Medeiros
A solidariedade é, inegavelmente, um valor fundamental para a coesão social e o bem-estar coletivo, pois representa o mínimo de humanidade diante da vulnerabilidade do ser humano. Esse valor, de fato, se mantém realizável na medida do conforto de quem o pratica, ao mesmo tempo em que suscita um misto de vergonha e esperança para quem o recebe. Isso ocorre porque o status de imigrante, refugiado, asilado ou estrangeiro impõe um rótulo que muitas vezes não lhes pertence (Arendt, 2016). Na verdade, o imigrante nesse contexto frequentemente assume o papel de “coitado”, “agradecido pelo que lhe oferecem” e “satisfeito por estar sendo recebido”, mesmo sem receber o mínimo necessário. E a solidariedade? Claro que existe! Mas quando o assunto é migração, a verdade é que, parodiando a grande pensadora contemporânea Valesca Popozuda (2013), “Beijinho no ombro pro imigrante passar longe!”
Em tempos de crise e incerteza, a solidariedade enquanto valor realizável e praticado pela humanidade frequentemente se manifesta de forma seletiva, especialmente em relação aos imigrantes. Sejam políticas públicas, discursos midiáticos ou ações sociais, princípios discriminatórios reforçam e perpetuam a exclusão e o preconceito, baseados na cor, na religião, na orientação sexual e em tantos outros argumentos que povoam um discurso que incita cada vez mais o ódio em detrimento da proteção do direito de migrar.
Segundo argumentam Berger e Luckmann (1966), a realidade é construída socialmente por meio de processos de significação e institucionalização. No caso dos imigrantes, esses processos frequentemente resultam na criação de estereótipos negativos que os posicionam como “outros” ou “estrangeiros”, não pertencentes ao tecido social da nação anfitriã. É aí, que entra a solidariedade.
A presença de um imigrante no momento vulnerável de sua chegada ao novo espaço, por si só, revela inúmeras possibilidades de interpretação. Desde a recepção calorosa até o julgamento e, até mesmo, a criminalização desse sujeito, o “dever” social de ser solidário muitas vezes entra em conflito com os preconceitos manifestos sobre a origem, a cor da pele e tudo o mais que diferencia as pessoas entre si.
Esse estranhamento em relação ao outro, muito bem discutido por Benedict Anderson (1983) em “Comunidades Imaginadas”, está relacionado ao conceito de nacionalismo, que é crucial para compreender a dinâmica da solidariedade seletiva. Anderson argumenta que as nações são comunidades imaginadas, formadas pela percepção de uma identidade comum entre seus membros. Contudo, essa identidade frequentemente se constrói em oposição a um “outro” externo. No caso dos imigrantes, eles são frequentemente vistos como ameaças à identidade nacional e à coesão social.
Exemplos de solidariedade seletiva
Na Europa, esse processo vai além e resgata o pensamento colonial e instiga preconceitos raciais, religiosos e xenófobos que expõem uma falsa abertura de portas. Desde o início da guerra na Ucrânia em 2022, milhões de ucranianos foram forçados a deixar seu país em busca de segurança. Em resposta, a União Europeia e vários de seus Estados-membros adotaram uma abordagem acolhedora e solidária. Políticas temporárias de proteção foram rapidamente implementadas, permitindo que refugiados ucranianos obtivessem documentação, acesso ao mercado de trabalho, serviços de saúde e educação. Esta resposta rápida e eficaz foi amplamente elogiada como um exemplo de solidariedade e humanitarismo.
No entanto, esse acolhimento caloroso contrasta fortemente com o tratamento dispensado a migrantes e refugiados de outras partes do mundo. Migrantes da África e do Sul da Ásia, por exemplo, frequentemente enfrentam enormes obstáculos burocráticos, detenção prolongada e deportação. Muitos passam anos sem conseguir documentação adequada, vivendo em condições precárias e sem acesso a direitos básicos.
Com base em dados publicados pela Agência da União Europeia para Asilo, os imigrantes de países como Bangladesh e Paquistão tendem a passar por processos de regularização mais prolongados e desafiadores. Isso pode ser atribuído às suas taxas de reconhecimento geralmente mais baixas para pedidos de asilo, que permaneceram em torno de 5% para bangladeshianos e 11% para paquistaneses.
Além disso, os migrantes de países com condições políticas ou humanitárias instáveis, como o Afeganistão, também enfrentam procedimentos de regularização complexos, apesar de terem taxas de reconhecimento mais altas (61% em 2023) em comparação com outras nacionalidades. Essa complexidade decorre da extensa documentação e das verificações de segurança envolvidas.
Por outro lado, os refugiados da Ucrânia tiveram processos de regularização mais rápidos devido à Diretiva de Proteção Temporária ativada pela UE em resposta à invasão russa na Ucrânia. Essa diretriz oferece um caminho simplificado e acelerado para o status legal, que é menos oneroso em comparação com os procedimentos tradicionais de asilo enfrentados por migrantes de outras regiões.
A diferença no tratamento desses grupos pode ser atribuída a várias razões, mas o preconceito é sim um fator significativo. A rápida resposta europeia à crise dos refugiados ucranianos, obviamente vinculada também aos horrores da guerra, foi, em parte, impulsionada pela percepção de afinidade cultural e racial. Os ucranianos são frequentemente vistos como “parecidos” com os europeus ocidentais, tanto em termos de aparência quanto de valores culturais. Isso contrasta com a percepção de migrantes africanos e asiáticos como “outros”, cujas diferenças culturais e raciais são destacadas e frequentemente vistas com desconfiança.
Essa disparidade reflete um preconceito racial enraizado nas políticas e atitudes europeias. Historicamente, a Europa tem uma longa história de colonialismo e exploração que ainda influencia a maneira como os migrantes de ex-colônias são percebidos e tratados. A imagem dos africanos e asiáticos como dependentes e problemáticos persiste, apesar das contribuições significativas que esses grupos fazem para as sociedades europeias, confirmando o que estudos e relatórios de organizações de direitos humanos destacam como sendo a manifesta discriminação sistêmica acontecendo na prática.
Por exemplo, enquanto refugiados ucranianos receberam status de proteção temporária quase imediatamente, migrantes de outras regiões frequentemente enfrentam procedimentos de asilo longos e complicados, que podem levar anos para serem resolvidos.
Além disso, a retórica política e a cobertura midiática também desempenham um papel crucial na perpetuação dessas disparidades. A narrativa em torno dos refugiados ucranianos tende a ser compassiva e empática, enfatizando a necessidade de solidariedade e apoio. Em contraste, “os outros” são muitas vezes retratados como ameaças à segurança, à economia e à identidade cultural europeia. Essa cobertura negativa não só influencia a opinião pública, mas também molda as políticas migratórias, reforçando um ciclo de exclusão e discriminação.
Respostas necessárias
Para David Miller (2016), em “Strangers in Our Midst”, as políticas migratórias muitas vezes são desenhadas para proteger os interesses dos cidadãos nativos em detrimento dos imigrantes. Incluir restrições severas à entrada de imigrantes, dificultar o acesso a direitos básicos como saúde, educação, moradia e trabalho, são justificadas com argumentos econômicos, culturais ou de segurança nacional, que mascaram atitudes xenófobas e preconceituosas. Assim, a exclusão de imigrantes se torna institucionalizada e legitimada pelo aparato estatal.
O mais curioso, a partir dessa análise, é que, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. No entanto, a prática da solidariedade seletiva contradiz esse princípio ao negar a certos grupos o acesso a esses direitos com base em sua nacionalidade ou status migratório. Isso cria uma hierarquia de direitos, onde os imigrantes são vistos como menos merecedores de proteção e apoio.
A verdade é que a solidariedade seletiva contra imigrantes é um fenômeno complexo, alimentado por construções sociais, políticas nacionalistas, discursos midiáticos e práticas discriminatórias. Para superá-la, é necessário promover uma solidariedade baseada nos princípios de justiça e direitos humanos, que reconheça e valorize a dignidade e o potencial de todos os indivíduos, independentemente de sua origem. A transformação dessa realidade exige esforços coordenados de todos os setores da sociedade, visando a construção de comunidades mais justas, inclusivas e solidárias.
Referências
Anderson, B. (1983). Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. Verso.
ARENDT, Hannah. Escritos Judaicos. Trad. Thiago Dias da Silva et al. Barueri: Amarilys, 2016.
ARENDT, Hannah. Escritos Judaicos. Trad. Thiago Dias da Silva et al. Barueri: Amarilys, 2016.
Santos, V. R. Beijinho no ombro. Vianna, W., Vieira, André. Pardal Records. 2013. ITunes Digital.
Berger, P. L., & Luckmann, T. (1966). The Social Construction of Reality: A Treatise in the Sociology of Knowledge. Anchor Books.
Miller, D. (2016). Strangers in Our Midst: The Political Philosophy of Immigration. Harvard University Press.
United Nations. (1948). Universal Declaration of Human Rights.
Sobre a autora
Bianca da Silva Medeiros é Doutoranda em Direito na Universidade Nova de Lisboa – UNL, mestre em Ciências da Sociedade com ênfase em direitos humanos, sociedade e cidadania ambiental pela Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Oeste do Pará – Ufopa. Especialista em Direito Constitucional Aplicado e Relações Internacionais com ênfase em Direito Internacional Público. Pesquisadora, Consultora Jurídica e Gestora de Projetos no Terceiro Setor. Amazônida, latina, filha da educação pública e defensora dos direitos humanos.
Ótima matéria. Ilustra e argumenta muito bem a questão ds solidariedade seletiva.
Parabéns ao Migra mundo pelos textos publicados aqui.