Evento na UFRR contou com a participação dos migrantes e representantes do poder público, de organismos nacionais e internacionais
Por Rodrigo Borges Delfim
De Boa Vista (RR)
Informar e colocar migrantes venezuelanos, sociedade e autoridades em diálogo para busca de soluções conjuntas. Esse foi o objetivo da audiência pública ocorrida na última sexta-feira (10), no auditório Alexandre Borges da Universidade Federal de Roraima (UFRR), em Boa Vista.
A ação foi promovida pelo Ministério Público Federal em Roraima (MPF-RR), pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) e pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF. Foi também a etapa final da missão organizada pelo MPF, formada por representantes do governo, sociedade civil e organismos internacionais do Sistema ONU (veja mais aqui).
Uma ausência sentida na audiência pública e em outros momentos da missão foi da Prefeitura de Boa Vista, que não enviou representantes para os debates e tampouco justificou a ausência nas atividades.
Durante a audiência foram debatidos quatro grandes temas: regularidade migratória e direitos dos migrantes venezuelanos; estrutura de abrigamento, direito de igualdade no acesso à assistência social e inserção laboral; direitos específicos dos povos indígenas; e igualdade no acesso à saúde e à educação e direitos das mulheres e das crianças venezuelanas. Todas as mesas montadas para discussão desses temas contaram com migrantes venezuelanos entre os debatedores.
De acordo com dados divulgados pela Polícia Federal, foram registradas 160 mil entradas de venezuelanos no Brasil em 2016, sendo 100 mil somente em Roraima – número superior aos 60 mil registrados em 2015. No entanto, uma mesma pessoa pode ter entrado mais de uma vez no país, o que torna impreciso esse dado isolado. O MigraMundo pediu à Superintendência da Polícia Federal em Roraima os dados de saída de venezuelanos no ano passado, o que permitiria ter uma ideia mais clara de quantos estão de fato fixados no Brasil. Até o fechamento desta reportagem, essa informação não havia sido fornecida.
Com a palavra, os migrantes
“Não somos um problema. A situação em nosso país é muito difícil, por isso estamos aqui”, falou o venezuelano Bruno Florian durante a audiência. A crise econômica na Venezuela e seus diversos efeitos na sociedade é o grande motivo apontado pelos migrantes para se deslocarem – não apenas para o Brasil, mas também para outros países.
Já no Brasil, os venezuelanos citam uma série de problemas que enfrentam por aqui. Sem documentação ou com documentos insuficientes para conseguir uma carteira de trabalho, acabam recorrendo à informalidade, ficando sujeitos a todo tipo de explorações laborais. Também encontram dificuldades para acessar serviços públicos, como saúde e educação, com a validação de diplomas e com a falta de cursos gratuitos de português.
“Temos entre nós profissionais de diversas qualificações. Mas não conseguimos emprego porque não temos carteira de trabalho”, afirma o venezuelano José Torrealba.
Sobre a questão laboral, o auditor fiscal do trabalho Luiz Alberto Matos dos Santos, coordenador de apoio junto ao CNIg (Conselho Nacional de Imigração) citou a cartilha do Ministério Público do Trabalho que traz os direitos que os migrantes possuem no Brasil e afirmou que denúncias de exploração devem ser denunciadas. “Qualquer trabalhador pode levar reclamações à Superintendência do Trabalho. Existe plantão fiscal diário com denúncias anônimas que levam a fiscalizações que vão apurá-las”. A cartilha está disponível na internet e uma versão impressa em espanhol podia ser adquirida gratuitamente durante a audiência.
Recentemente uma resolução publicada pelo CNIg permite a concessão de residência temporária para migrantes que entram no Brasil por via terrestre e sejam naturais de países fronteiriços ao Brasil – o que atenderia diretamente aos venezuelanos. No entanto, há pontos a serem acertados junto à Polícia Federal e em relação à documentação e taxas exigidas. Por enquanto, o pedido de refúgio tem sido a alternativa usada pelos venezuelanos para tentar regularização provisória no país.
Questão indígena
Os indígenas warao, que compõem o fluxo migratório atual da Venezuela para o Brasil, tiveram atenção especial em uma das mesas da audiência.
A realidade na Venezuela é muito triste. Não estamos aqui como turistas. Sonhamos em criar uma associação de apoio aos warao para dialogar com a sociedade e o governo”, falou o líder warao Aníbal Perez.
Tanto a Fundação Nacional do Índio (Funai) como a Secretaria Estadual da Saúde Indígena (Sesai) se comprometeram a serem mais proativos e considerar os relatos da audiência nas futuras ações que serão dirigidas aos warao.
Representando a Casa Civil da Presidência da República, a gerente de projetos da Subchefia Adjunta de Políticas Sociais Lea Salles destacou as dificuldades que o governo brasileiro encontra para garantir os direitos das populações indígenas. “Ainda temos muito o que aprender com vocês para avançar no atendimento aos nossos povos indígenas e a vocês”.
Preconceito e discriminação
No entanto, uma dificuldade em especial apareceu com força nos relatos dos venezuelanos indígenas e não indígenas presentes à audiência: o preconceito que sofrem no Brasil.
“Não é brincadeira que estamos aqui. Não é legal estar em um país onde você é xingado por falar espanhol. Somos discriminados por seremos venezuelanos”, relata Merlina Ferreira, graduada em psicologia na Venezuela e há um ano vivendo no Brasil. “Sofremos muito com a discriminação aqui, as mulheres são taxadas de prostitutas”, lembrou o venezuelano Freiomar Villena.
A frequência dos relatos de discriminação espantou os presentes à audiência pública. “A sociedade roraimense precisa refletir sobre isso. É inaceitável lidar com os níveis de discriminação registrados. É um registro que o Estado brasileiro não pode desconhecer e tem que adotar medidas para evitar.”, afirmou o Procurador Federal dos Direitos do Cidadão Adjunto, João Akira Omoto, que liderou a missão em Roraima e conduziu parte dos trabalhos da audiência pública.
O procurador lembrou ainda que parte desse preconceito é baseado em informações distorcidas veiculadas tanto pelos meios de comunicação como pelas autoridades. “A Polícia Federal apurou que não havia registros de criminalidade cometidos por venezuelanos até dezembro de 2016 em Roraima. É necessário que essas informações sejam divulgadas com clareza na sociedade. E o que tem circulado não condiz com os dados registrados”.
Avaliação e próximos passos
A partir dos depoimentos dos migrantes, autoridades públicas reconheceram falhas no acesso e atendimento nos serviços públicos e prometeram ações e articulações para tentar mudar as situações apresentadas.
“A expectativa agora é que essa articulação realmente aconteça e que venha uma resposta dos órgãos públicos para a sociedade civil, em forma de uma efetiva prestação de serviços”, afirmou Ana Carolina Bragança, procuradora da República em Roraima e procuradora substituta regional dos direitos do cidadão, que conduziu parte dos trabalhos da audiência.
Akira lembrou que a ausência de representantes da Prefeitura de Boa Vista atrapalhou um pouco o objetivo da audiência, mas espera ver essa situação mudar em breve de um jeito ou de outro. “Confesso que estou estarrecido com a ausência do município e com essa falta de disposição em dialogar. Espero que esta lacuna seja preenchida pela intervenção da administração federal, mas eu já coloco desde já à disposição o Ministério Público Federal para, se necessário, buscar a adoção de medidas administrativas e judiciais para fazer valer a adoção de políticas públicas adequadas”.
Outra contribuição da missão, segundo Akira, foi a oportunidade de seus integrantes – incluindo diversos organismos que atuam diretamente na temática migratória – conhecerem de perto as situações vividas pelos venezuelanos no Estado. “Ter vindo aqui e feito uma observação in loco com certeza vai qualificar muito nossos debates em todos os fóruns que se fizerem necessários”.
As informações e sugestões coletadas durante a missão do MPF serão sistematizadas e devem ser divulgadas em breve.
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