Atualizado às 16h45 de 23.fev.2023
“A elevação do nível do mar não é uma ameaça apenas em si, é um multiplicador de ameaças”. O alerta vem do Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres. E esses e outros sinais das mudanças climáticas estão espalhados mundo afora, com potencial para provocar migrações forçadas de proporções bíblicas, nas palavras do chefe da ONU. Ao mesmo tempo, também ajudam a retomar o debate global sobre uma reformulação do conceito de refúgio, que contemple os chamados refugiados climáticos.
Em última instância, a elevação do nível do mar ameaça a própria existência de países e comunidades que vivem em localizações de baixa altitude. Segundo Guterres, são mais de 900 milhões de pessoas incluídas nessa conta.
“Nós testemunharíamos um êxodo em massa, em escala bíblica, e veríamos uma competição cada vez mais feroz por água doce, terra e outros recursos. Países como Bangladesh, China, Índia e Holanda estão todos em risco. Megacidades em todos os continentes enfrentarão sérios impactos, incluindo Lagos, Maputo, Bangkok, Daca, Jacarta, Mumbai, Xangai, Copenhague, Londres, Los Angeles, Nova York, Buenos Aires e Santiago”, afirmou o Secretário Geral.
O alerta foi dado pelo Secretário-Geral durante reunião do Conselho de Segurança da ONU, no último dia 14. Guterres citou o relatório mais recente da Organização Meteorológica Mundial (OMM), indicando que os níveis médios globais do mar subiram mais rapidamente desde 1900 do que em qualquer século anterior nos últimos 3 mil anos. O que significa uma escalada de graves consequências.
“A elevação do nível do mar ameaça vidas, compromete o acesso à água, alimentos e cuidados de saúde. A invasão da água salgada pode dizimar empregos e economias inteiras baseadas na agricultura, pesca e turismo. Pode danificar ou destruir infraestruturas de transporte, hospitais e escolas, especialmente quando esse aumento do nível do mar vier acompanhado pelos eventos climáticos extremos ligados à crise do clima”.
Um cenário preocupante
Dados compilados pela OMM mostram que o oceano aqueceu mais rápido no século passado do que em qualquer outro momento nos últimos 11.000 anos. Como consequência, geleiras e mantos de gelo derreteram e tivemos o maior aumento dos níveis médios globais do mar em 3.000 anos. Segundo a Agência Espacial dos Estados Unidos, a NASA, a Antártica está perdendo uma média de 150 bilhões de toneladas de massa de gelo anualmente e a calota de gelo da Groenlândia está derretendo ainda mais rápido – perdendo 270 bilhões de toneladas por ano.
O Acordo Climático de Paris estabelece uma meta para limitar o aquecimento da Terra a 1,5ºC. Contudo, de acordo com a OMM, mesmo que esse objetivo seja atingido, os níveis da água do mar ainda aumentariam significativamente em todo o mundo, o que implica novas fontes de instabilidade e conflito.
O Caribe, por exemplo, vem registrando uma devastação dos meios de subsistência locais, especialmente nos setores de turismo e agricultura. As inundações e a erosão costeira na África Ocidental danificam constantemente a infraestrutura de algumas comunidades. No norte do continente, a invasão da água salgada contamina a terra e aquíferos, contribuindo para a competição dos já escassos recursos. O derretimento do Himalaia agrava as inundações no Paquistão. E em Fiji, Vanuatu e Ilhas Salomão as mudanças climáticas forçam cada vez mais realocações.
Diante desse cenário extremamente preocupante, o chefe da ONU declarou que é necessário abordar a crise climática como causa principal do aumento do mar e lembrou que a redução das emissões de carbono e o apoio ao fundo climático de US $100 bilhões para perdas e danos garantem a justiça climática.
Segundo Guterres, é fundamental buscar compreender as razões centrais da insegurança, desde a pobreza, discriminação e desigualdade até os desastres ambientais, para podermos agir sobre elas. O que inclui, por exemplo, ampliar os sistemas de alerta precoce para preparar e proteger as comunidades mais vulneráveis.
Refugiados ambientais
O Secretário Geral destacou ainda as implicações do aumento das águas para as estruturas legais e os direitos humanos. Segundo ele, o direito internacional precisa estar voltado para o futuro e preencher as lacunas nas estruturas existentes. “Isso inclui a lei internacional de refugiados”.
A declaração chama a atenção diante do debate existente no direito internacional quanto à categorização de migrantes ambientais como refugiados.
De acordo com o relatório da ONU de 2020, The Human cost of disasters: an overview of the last 20 years (2000-2019), elaborado pelo Escritório das Nações Unidas para Redução do Risco de Desastres, as mudanças climáticas quase dobraram a ocorrência de desastres naturais nos últimos vinte anos. Ainda em conformidade com o relatório, ao menos 7.348 desastres naturais ocorreram entre os anos 2000 e 2019, o que resultou na perda de 1,23 milhão de vidas e afetou 4,2 bilhões de pessoas, além de custar à economia global em torno de 2,97 trilhões de dólares (GUERRA, 2021, p. 538).
Apesar desse quadro, migrantes deslocados por motivos climáticos não são considerados refugiados, como explica Erika Pires Ramos, doutora em Direito Internacional e cofundadora da Rede Sul-Americana para Migrações Ambientais (RESAMA).
A categoria do refúgio foi estabelecida pela Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e pelo Protocolo de 1967. E nenhum desses instrumentos internacionais contempla questões ambientais. Mesmo em definições ampliadas, como é o caso da Declaração de Cartagena e da Lei Brasileira de Refúgio, tais questões não são tratadas expressamente. Este é um tema que deve ser discutido porque o migrante ou deslocado ambiental é, sim, uma categoria com necessidade de proteção internacional, mas que não goza, do ponto de vista obrigatório e global, de um instrumento vinculante que lhe confira direitos”.
A pesquisadora afirma que, diante dessa resistência da comunidade internacional em revisar as definições do refúgio, a manifestação do chefe da ONU pode ser vista como positiva, contudo é insuficiente se não for acompanhada de ações concretas.
“A adoção de convenções e tratados internacionais depende da vontade política dos Estados. Não se trata de uma questão apenas jurídica, é política também. Ou seja, é necessário um comprometimento para que os direitos humanos se concretizem de uma forma mais clara e específica. E estamos em um momento crucial para isso, considerando-se a crise climática e seus impactos sobre a mobilidade humana. Precisamos passar de uma vez do discurso para a ação e para instrumentos que gerem obrigações vinculantes”, afirma Ramos.
O caso de Kiribati
Outro país que se vê seriamente ameaçado pelo aumento do nível dos oceanos e pelo aquecimento global é Kiribati. A situação é grave a ponto de Ioanne Teitiota, um nacional do arquipélago do Pacífico Sul, ter pedido refúgio na Nova Zelândia, onde vive desde 2013. Ele alegou ter sido forçado a migrar devido à situação instável que a elevação do mar tem causado em sua terra natal, levando ao desaparecimento de ilhas e inviabilizando a atividade econômica em outras.
O caso chegou ao Comitê de Direitos Humanos da ONU, que se manifestou sobre a questão em janeiro de 2020. O Comitê concordou com a decisão da Nova Zelândia de não conceder o refúgio, sob o argumento de que há tempo hábil para reverter as consequências das mudanças climáticas em Kiribati. E que, portanto, Ioanne não correria risco iminente de vida.
No entanto, este entendimento do Comitê gerou um precedente importante na abordagem dos deslocamentos forçados: a de que degradações ambientais causadas por mudanças climáticas e desenvolvimento insustentável constituem grave violação aos direitos humanos. O Comitê da ONU ainda declarou que “sem esforços nacionais e internacionais robustos, os efeitos das mudanças climáticas nos estados podem expor os indivíduos a uma violação de seus direitos desencadeando assim as obrigações de non-refoulement (não-devolução) dos Estados”.
Embora decisões elaboradas pelo Comitê da ONU não possuam força legal, especialistas consideraram que ela estabelece um importante precedente global na questão dos deslocados por questões climáticas. Um tema que se torna cada vez mais urgente, como ficou evidente no alerta de Guterres, três anos depois