O debate e a mobilização devem continuar. Esses podem ser encarados como os principais legados da primeira Coferência Nacional de Migrações e Refúgio (Comigrar), que começou na última sexta-feira (30) e foi encerrada neste domingo (01) na Casa de Portugal, em São Paulo. A manutenção do debate serve tanto para corrigir imperfeições no processo de construção da conferência como para dar continuidade ao que ela já permitiu alcançar.
A Comigrar foi uma conferência consultiva, e não deliberativa. Portanto, não seria possível sair do evento com respostas prontas sobre temas de primeira necessidade para a população migrante, como a revisão da legislação migratória e o direito ao voto do imigrante – o Brasil é o único país sul-americano que não permite qualquer tipo de participação formal dos migrantes em seu processo eleitoral.
“É interessante a gente deixar registrado que estávamos aqui como meros consultores em uma conferência consultiva, não deliberativa. Então acredito que temas como a aprovação do projeto de lei no Congresso [revisão da legislação migratória] estão mais para o futuro e vamos batalhar para que tudo isso seja aprovado”, diz a advogada boliviana Ruth Camacho sobre a Comigrar.
Ampliação do CASC
A mesa de encerramento da conferência foi presidida pelo Secretário Nacional de Justiça, Paulo Abrão, que citou três grandes legados entre os principais do evento. “O primeiro é o de ouvirmos as razões uns dos outros e o modo de se enxergar a questão. Temos agora um conjunto de propostas que tiveram um olhar plural e sob diferentes perspectivas; o segundo é o ambiente de mobilização em torno da questão migratória no Brasil, porque algumas mudanças não ocorrem de dentro para fora e dependem de mobilização social; o terceiro é o fato de que houve aqui uma articulação entre diferentes setores, o que potencializa nossa agenda”, avalia o secretário.
O grande ator concreto do último dia da Comigrar foi a ampliação do Comitê de Acompanhamento pela Sociedade Civil sobre ações de Migração e Refúgio (CASC-Migrante) da Secretaria Nacional de Justiça. Criado em dezembro do ano passado, ele terá agora como tarefa adicional acompanhar o processo pós-conferência. Outros nove representantes foram eleitos a partir da Comigrar e vão se juntar aos membros iniciais do grupo.
“Era uma reivindicação de que os canais de participação e o CASC fossem ampliados. Ouvir os migrantes, as associações de defesa dos direitos humanos, os grupos culturais de migrantes e os brasileiros no exterior é o passo número um do governo. E que isso se reflita nas elaborações das políticas para os migrantes”, analisa Cleyton Borges, do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC) e um dos integrantes originais do CASC.
Uma das novas integrantes do Comitê é a professora Bela Feldman Bianco, da Associação Brasileira de Antropologia, que criticou o fato de a Comigrar ter abrigado também, durante o sábado (31), uma Feira de Boas Práticas Contra o Tráfico de Pessoas. “É importante separar a migração do tráfico. A minha crítica é que muitas vezes se junta isso, inclusive no contexto da Comigrar”.
Além da ampliação do CASC, a Comigrar também teve em sua abertura, na sexta-feira, a assinatura de um Termo de Compromisso entre a União, a Prefeitura paulistana e os governos de São Paulo e do Acre para atendimento e integração dos imigrantes. A medida é uma resposta às lacunas que ficaram evidentes com a vinda dos haitianos para a capital paulista nas últimas semanas.
Durante o sábado ocorreram as oficinas temáticas e os grupos de trabalho que ficaram encarregados de analisar as propostas formuladas pelas conferências prévias. Elas serão reunidas, junto com as observações feitas na Comigrar, em um caderno de recomendações que será lançado em breve pela Secretaria Nacional de Justiça.
Um local de mobilização
A possibilidade de integração e intercâmbio foi também o principal destaque apontado pelos participantes da Comigrar, embora ainda exista uma certa insegurança sobre quais os próximos passos das discussões. “Será que essas coisas todas vão chegar ao Congresso Nacional ou ficarão presas por lá? Essa é a minha grande preocupação, mas aposto que o Brasil está passando por uma grande mudança e que pode beneficiar os estrangeiros que aqui vivem”, opina o haitiano Esdras Hector, que vive no Brasil desde 2011 e veio à Comigrar como observador convidado pela ONG Conectas Direitos Humanos.
Uma dessas mudanças é a revisão da atual legislação migratória do país, ainda regida pelo Estatuto do Estrangeiro, da época da ditadura militar e carrega a visão do imigrante como uma potencial ameaça ao país. “Temos uma lei da ditadura. Para os imigrantes, a ditadura ainda não acabou. Este é um momento de mobilização por uma lei mais justa e que ela seja aprovada rapidamente”, destaca Bela, uma das novas integrantes do CASC.
Para Paulo Illes, coordenador de políticas para imigrantes da Prefeitura de São Paulo, A Comigrar foi uma oportunidade para as pessoas se encontrarem, trazer novas ideias e discutir propostas para uma política nacional de migração. “Acho que a partir daqui cabe ao movimento social acompanhar esse processo e de como ele será aplicado”.
A continuidade do debate é defendida também por Hugo Salustiano, estudante de Relações Internacionais da USP e integrante do projeto de extensão Educar para o Mundo, que trabalha diretamente com a questão dos direitos dos migrantes. “É gratificante ver pessoas de todo o Brasil reunidas aqui discutindo sobre migração. Para depois da conferência a gente espera que a mobilização continue, agora vendo que a Comigrar aconteceu. E que o espírito das propostas aqui sejam de fato implementados, assim como outras conferências. O debate não pode terminar aqui”.
Falta de tempo
Por se tratar de um tema complexo e com grande complexidade de atores envolvidos, a falta de tempo para se analisar as propostas foi um dos pontos criticados pelos participantes da Comigrar. Mas mesmo em meio às críticas é destacada a oportunidade de se discutir a questão migratória.
“É preciso ter mais espaço para debater o tema depois. É um processo que não acaba aqui. A conferência é um processo e gostaríamos muito que ela fosse mais participativa”, opina Tania Bernuy, diretora do CDHIC.
A irmã Rosita Milesi, do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) e também integrante do CASC, também citou a falta de tempo para se analisar as propostas e priorizá-las, mas entende que agora é hora de a sociedade dar continuidade às discussões da Comigrar. “Agora a sociedade em geral (tanto em sua dimensão de Estado como na de sociedade civil) deve reunir esse conjunto de propostas e analisar no contexto como implementá-las e priorizá-las. Nesse sentido é um grande apelo à sociedade, agora já em etapas mais locais, para tornar a adoção desses propostas algo mais efetivo.
Para o professor universitário Ailton dos Santos, militante de longa data em questões de direitos humanos, a conferência foi fundamental por trazer vários erros na parte migratória aos quais o Brasil precisa dar uma resposta, mas considera que ela ficou aquém do que se esperava. “Ela trouxe uma série de propostas que já eram discutidas há muito tempo – até mesmo na Conferência Municipal de São Paulo. Acho que faltou, dentro da metodologia, um melhor gerenciamento das propostas apresentadas. Mas considerando o tamanho do Brasil e toda sua complexidade, prefiro ver a Comigrar com mais otimismo e que numa próxima conferência a gente possa avançar mais”.
Migrantes fazem contatos entre si
Os intercâmbios não ficaram restritos às organizações da sociedade civil já existentes. Os próprios migrantes que estavam presentes na conferência também aproveitaram o momento para trocar ideias entre si e até mesmo para lançar sementes de futuras ações conjuntas.
Durante as discussões do sábado, um grupo de migrantes de países africanos que vivem em diferentes regiões do Brasil se reuniu espontaneamente para discutir problemas comuns entre eles. “Essas conferências abrem muitas portas para nós, migrantes, e facilitam nossa comunicação. Já criamos um grupo com todos os africanos que estavam aqui para começarmos a trabalhar em cima disso”, relata o senegalês Massar Saar, integrante do Conselho Participativo da subprefeitura da Sé, em São Paulo.
O boliviano Ronald Soto, também conselheiro participativo no bairro paulistano de Santana, cita a Comigrar como uma nova experiência para amadurecimento dentro do debate sobre migrações novo. “Para mim foi bom e positivo, mais uma experiência. Faltou um pouco de tempo para discutir os temas. E como todo começo, falta amadurecer um pouco mais. Mas pouco a pouco estamos alcançando nossos objetivos”.
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