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sexta-feira, dezembro 20, 2024

Conquistas e desafios para uma educação sem fronteiras

Experiência da Unila com haitianos e outras nacionalidades traz ensinamentos sobre como a universidade pode se beneficiar de projetos que fomentam diversidade e, ao mesmo tempo, integração cultural e social

Por Amanda Rossa
De Foz do Iguaçu (PR)

Um projeto pedagógico internacionalista e interdisciplinar, com editais de ingresso para estudantes brasileiros, mas também de outros países da América Latina e Caribe. Foi com esse princípio que em 2010 nasceu a Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana), com campus em Foz do Iguaçu (PR).

A localização é estratégica, pois a cidade está exatamente na famosa Tríplice Fronteira – entre Brasil, Paraguai e Argentina – e procura aplicar essa diversidade cultural e plurinacional em seu corpo docente e nos estudantes.

Educação e integração regional

Embora o projeto pedagógico da universidade previsse que a proporção de discentes brasileiros e não brasileiros fosse de 50%, atualmente há uma proporção de 3 estudantes não brasileiros para cada 7 estudantes brasileiros. A universidade, que conta atualmente com 29 cursos de graduação e 4 programas de Pós-Graduação, possui dois tipos de processo seletivo estudantil para alunos de outros países: um para o ingresso de não brasileiros e outro específico para haitianos – que era chamado de Pró-Haiti mas teve seu nome alterado para desvinculação de um programa de mesmo nome, criado pela CAPES em 2010.

Símbolo da Unila é uma representação da América Latina e Caribe, traçada por linhas contínuas – em alusão à integração pretendida pela universidade.
Crédito: Amanda Rossa/MigraMundo

De acordo com relatório de 2016 (acesse aqui), entre os anos de 2015 e 2016  ingressaram 71 estudantes haitianos na Unila, número que será acrescido pelos selecionados para início das atividades acadêmicas em 2018. Comandada atualmente pela Pró-Reitora e Professora de Relações Internacionais, Karen dos Santos Honório, a equipe da Pró-Reitoria de Relações Institucionais e Internacionais (PROINT) também conta com a participação das servidoras técnico-administrativas Marianna de Campos Ferreira e Silva, Fabíola Belini e o estagiário haitiano Fouchard Louis, acadêmico de Relações Internacionais, que realizam a seleção de estudantes internacionais.

Até 2014, o acesso de alunos não-brasileiros na Unila ocorria pela seleção de estudantes de forma indireta, por meio das embaixadas e dos órgãos de governo, que faziam a divulgação, a seleção e enviavam os resultados para universidade. Tal processo foi substituído em 2015 por seleção direta, realizada totalmente pela universidade através de uma banca de seleção composta por docentes e técnicos-administrativos que avaliam a documentação enviada online pelos candidatos.

“Podemos dizer que o processo seletivo internacional realizado totalmente pela Unila é fruto de um amadurecimento institucional. A Unila já surge internacionalizada e tem uma proposta muito nova no Brasil, mas que não é novidade em outros países”, pondera Karen.

Segundo a Pró-Reitora, a realização de processos seletivos diferentes para haitianos e outros estudantes não brasileiros se justifica por motivos históricos. “Quando o Pró-Haiti surge em 2014, tem um contexto muito específico de uma diretriz do MEC e a vinda de haitianos ao Brasil após a Minustah (Força de Paz criada pela ONU para atuar no Haiti e que tinha o Exército brasileiro como líder) e o terremoto de 2010. A Universidade precisa ter dispositivos especiais para acolher pessoas em situações diferentes e entendendo a Unila como uma universidade pública e federal, é um instrumento de inclusão e integração social para esses migrantes que estavam vindo para o Brasil.”

Um dos pontos principais do processo seletivo é a comprovação de histórico e é feito um ranqueamento das notas do ensino médio, forma pela qual as colocações são listadas pela banca de seleção.

Projeto bilíngue e interdisciplinar

Como uma universidade internacionalista pode lidar com experiências linguísticas tão distintas em seu corpo discente e docente? Sabendo que o idioma costuma ser uma barreira no acesso à direitos para migrantes e refugiados, perguntamos sobre o papel do idioma nos processos seletivos, adaptação e equivalência de currículos e diplomas.

MIGRAMUNDO: Como tem sido a adaptação linguística dos estudantes na UNILA?

Karen dos Santos Honório: Temos um ciclo comum que envolve três áreas principais, a primeira de ética e ciências, a segunda de fundamentos da América Latina e a terceira de línguas. Aos estudantes brasileiros, é ofertado um curso de espanhol e aos “hispano-hablantes” é oferecido curso de português durante três semestres, até porque o corpo docente da universidade é diverso. Só que viemos percebendo que um dos eixos da UNILA, justamente o bilinguismo, não dá conta das demandas. Os primeiros estudantes que vieram em 2015 pelo Pro-Haiti passaram por algumas dificuldades até pela novidade do processo, o que nos fez questionar que o bilinguismo não é mais suficiente,  porque a UNILA é plurilingue. Esse é o sensacional da UNILA, mas também o grande desafio. Temos os estudantes paraguaios cujo primeiro idioma é o guarani, estudantes bolivianos que falam aymará e quechua e também os haitianos falantes de francês e criolo. A própria instituição foi assumindo responsabilidades que ainda estamos aprendendo a dar conta, pois grande parte dos professores que dão aulas de idiomas tiveram formação para ensinar português para hispano-hablantes, mas como ensinar português ou espanhol para um francófono? Essas dificuldades de adaptação linguística e cultural foram muito sentidas pelos primeiros ingressantes haitianos e a universidade ainda está no processo de aprimorar o acompanhamento didático-pedagógico e psicológico. Por outro lado, os estudantes tem redes entre eles que acabam sendo muito mais efetivas que as redes institucionais. A comunidade haitiana na UNILA é fortíssima e acaba sendo uma rede de apoio para todos os haitianos no Paraná, de forma que a universidade aprende muito com essas experiências. O que temos procurado muito é envolver cada vez mais os estudantes na busca das soluções desses desafios que as vezes não são claros para a administração.

Uma dessas iniciativas é um programa de acolhimento aos ingressantes em 2018 que foi sugerido pelos próprios estudantes. O papel dos discentes também é decisiva no processo de seleção dos haitianos, que não prevê tradução de documentos e conta com a participação de um estagiário haitiano na PROINT, Fouchard Luís, do curso de Relações Internacionais.

MIGRAMUNDO: Os haitianos aqui no Brasil tem alguma dificuldade de acessar a universidade por não conseguir entender a linguagem ou as fases dos processos seletivos?  Há alguma iniciativa para tornar os sites institucionais disponíveis em outras línguas?

Fouchard Louis:  Então, acho que isso seria muito importante, mas não podemos esquecer que a universidade é bilingue (português/espanhol). Eu acredito que há muitos haitianos que tem muita dificuldade para ler e conseguir entender a documentação e nesse processo muitos haitianos ligam e dizem “eu tô com dúvida, qual documentação envio?”, e fico muito feliz em poder ajudar e traduzir para o francês e créole.

Símbolo da Unila, que faz referência ao objetivo de fomentar a integração latino-americana.
Crédito: Amanda Rossa/MigraMundo

MIGRAMUNDO: Você acha que em termos de localização geográfica os haitianos estão vindo mais para o Paraná e Foz do Iguaçu para estudar na UNILA? Existe um perfil dos estudantes que estão aqui, se já estavam no estado ou se vem de outros lugares, considerando que apenas é necessário comparecer pessoalmente para realizar a matrícula?

Fouchard Louis: Eu acredito que a maioria dos haitianos que estão na Unila não moravam no Paraná, vários deles estavam em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, porque o Brasil é tão grande né? Tem uma questão, cada haitiano sai do país por um motivo, mas eu acredito que um número muito grande veio para trabalhar e estudar. E para um haitiano que veio ao Brasil com esse projeto, não importa onde a universidade esteja, o mais importante é conseguir entrar na faculdade para estudar. Quando abriu o primeiro edital do Pró-Haiti em 2015 vários haitianos fizeram inscrição e eu me lembro que no dia do acolhimento dos haitianos após a matrícula, muitos que não foram selecionados ou não conseguiram fazer a inscrição, pegaram ônibus até a UNILA com a esperança de conseguir uma vaga. Isso mostra que muitos sairam do país com esse propósito, e vários dos que tentaram e não conseguiram entrar em 2015 ingressaram em 2016. Não saiu um processo seletivo depois desse (2017), mas eu acredito que agora, nesse processo (2018) vai ter muitos haitianos ingressantes que tentaram nos anos anteriores.

Karen dos Santos Honório: É importante também falar que a abertura de novos processos é a resposta a uma demanda dos estudantes haitianos da UNILA por novos processos seletivos, além de ser uma diretriz política em relação a inclusão desses estudantes na universidade.

Marianna de Campos Ferreira e Silva: Por exemplo, nesse processo seletivo em aberto temos candidatos haitianos inscritos de Piauí, Goiás, Mato Grosso, São Paulo, Minas Gerais, Pará, Amapá, além de pessoas do Paraná..então há candidatos daqui, mas também de outras regiões, o que mostra que as pessoas vêm justamente por saber que tem o acesso na universidade.

MIGRAMUNDO: Em relação aos editais anteriores, como vocês avaliam a questão de assistência estudantil, evasão e permanência, foi possível preencher todas as vagas? Já existem formandos?

Marianna de Campos Ferreira e Silva: Mesmo nos processos seletivos anteriores, sempre conseguimos preencher as vagas e sempre temos inscritos. Tivemos alguns casos de evasão, atualmente temos 58 estudantes, mas ainda não temos formandos. A primeira turma será do Fouchard, dos ingressantes em 2015.  

Karen dos Santos Honório: Entendemos que existem ainda muitas dificuldades. Sabemos que o acesso é importante mas é necessário ter políticas que possibilitem que os estudantes permaneçam, como moradia e assistência estudantil, também estamos preocupados em viabilizar mecanismos que possibilitem que os estudantes venham e consigam ficar aqui, e isso não só para os estudantes não brasileiros mas também para os brasileiros. Esse é o desafio do momento, que os novos estudantes haitianos venham mas tenham minimamente uma rede de acolhimento que não seja só material, é um processo que ainda temos um longo caminho a trilhar. Uma das nossas diretrizes é criar políticas que atendam os estudantes de forma universal, como as políticas de assistência estudantil e acesso a bolsa, de forma que a nossa diversidade nos una, que ela não possa nos separar.

MIGRAMUNDO: Quanto a processos de revalidação de diplomas e adaptação de currículos-  sabemos que esse é um grande desafio dos migrantes e refugiados no Brasil especialmente nas universidades com modelos curriculares mais tradicionais. Por ter um projeto interdisciplinar, a UNILA possui algum tipo de iniciativa nesse sentido?

Karen dos Santos Honório: Em questão de acesso para docentes, todos eles ingressam via concurso público, então as fases e documentos são iguais para os brasileiros. Para a  revalidação dos diplomas de docentes temos a aplicação da legislação do Mercosul que  torna mais fácil a revalidação. Para docentes de fora do Mercosul, a revalidação é o que o marco pede, segue o percurso normal. A UNILA tem um grupo de trabalho sobre revalidação de diplomas para que também sejamos uma universidade que revalide diplomas mas isso não dependende só da nossa vontade mas da existência de programas de mestrado e doutorado, então ainda é um tema incipiente. Em relação ao processo seletivo internacional para cursos de graduação, os estudantes são avaliados através da pontuação apresentada do histórico escolar e da documentação apresentada de cada país.

MIGRAMUNDO: Estivemos acompanhando o projeto de transformação da UNILA em Universidade do Oeste do Paraná no último ano, que não teve prosseguimento. Como essa proposta repercutiu internamente nos processos de admissão de não-brasileiros e haitianos na universidade?

Karen dos Santos Honório: Houve mobilização total de todos os setores da universidade, até porque a possibilidade de transformação da UNILA na Universidade do Oeste do Paraná solapava qualquer possibilidade da UNILA ser UNILA. Então a mobilização foi completa por parte de todos os setores, tanto servidores, professores e estudantes, assim como a comunidade de Foz do Iguaçu, mas temos o respaldo de a UNILA ter sido criada como uma política de estado prevista no Artigo 4º da Constituição Federal e foi aprovada de forma unânime no Congresso Nacional através de lei federal, portanto ela já nasce com esse objetivo de ser internacional. Essa é a missão dela, então da nossa parte, nos mobilizamos para manter o que cada um trouxe para cá, muitos falam de que são projetos inovadores e progressistas em termos do ensino superior brasileiro, mas no cenário internacional, sabemos que tais propostas não são atípicas, de pensar o conhecimento regional em sintonia com a produção de conhecimento mundial.

Fouchard Louis trabalha na tradução das inscrições do processo seletivo de 2018, formulários foram recebidos somente pela via digital e aceitos em francês e em créole.
Crédito: Amanda Rossa/MigraMundo

O resultado preliminar do processo seletivo de 2018 foi divulgado em 1º de fevereiro, e aguarda agora o envio de documentação, com previsão de resultado final em 7 de fevereiro.  A Pró-Reitora reitera a importância da contribuição  dos novos estudantes para construção do conhecimento e deixa uma mensagem aos novos acadêmicos.

“Os estudantes e as estudantes são muitos bem-vindos e a UNILA está de braços abertos para contribuir com a formação dessas pessoas, mas também para que elas contribuam para a nossa formação. O principal objetivo da UNILA, além de formar indivíduos que sejam ativos na sociedade e que façam a diferença no nosso país e nos seus países, é buscar a integração latino-americana pela via do conhecimento e das trocas culturais e linguísticas. Temos muitos desafios e muitas coisas a construir e contamos com os novos estudantes para construir a universidade junto conosco.”

A presença haitiana na universidade

O estudante de Relações Internacionais e Integração, Fouchard Louis, se emociona ao falar de sua trajetória. “Nós haitianos acreditamos que a única maneira que podemos mudar o mundo é através da educação, principalmente no nosso país. Quando eu entrei na universidade em 2015 eu tive muitas dificuldades dentro da sala de aula, quando ia fazer apresentações, tinha medo de falar errado, mas fui superando pouco a pouco os desafios e isso me motiva cada dia mais. Hoje estou no último ano do curso. Nelson Mandela disse que a educação é a arma mais poderosa para mudar o mundo, e eu sinto isso na UNILA e estou muito orgulhoso de fazer parte de projetos de pesquisa e extensão. Também estou dando aula de francês e criolo para brasileiros onde eu moro e sinto que é a minha forma de contribuir, de dar a minha participação dentro da comunidade brasileira. Depois da minha formatura, eu tenho a missão de ajudar o meu país.”

Fouchard contou que ao chegar ao país fez vestibular na Universidade Federal do Paraná, mas tive dificuldades por conta do idioma e considerou a prova “mais como uma experiência”. Sua determinação foi testada pelas altas mensalidades cobradas pelas universidades privadas e chegou a pensar em desistir: “Pensei, não vou dar conta, não vou conseguir não”. Então, contas que um dia estava pesquisando sobre universidades e descobriu a UNILA pela internet. “Liguei e soube que abriria um edital em 2015 e no mesmo dia soube que havia outros haitianos procurando saber sobre a seleção e trocamos informações.” Hoje, auxiliando no processo seletivo, Fouchard certamente retribui muito do apoio compartilhado por seus compatriotas.

Ter um corpo docente e discente tão internacional certamente deixa marcas na universidade. Uma das revindicações dos estudantes na universidade tem sido a manutenção do programa de acesso para haitianos, e também há diferentes opiniões sobre o modo de acesso. Pierre Stephat, acadêmico de Economia, argumenta”Somos também parte da América Latina e portanto devemos fazer parte da integração latino-americana e caribenha na mesma proporção dos estudantes dos outros países. O modo de seleção deveria ser geral e igual para todos os estudantes.” Tal divisão se justifica, contudo, por razões históricas, tendo sido os modos de acesso criados em momentos distintos. Previsto desde 2014, o modelo de seleção então chamado de “Pro-Haiti” foi criado por influência de um programa homônimo, vinculado à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Ministério da Educação) em 2010 como forma de graduação-sanduíche e convênio de cooperação técnica e acadêmica após o terremoto que abalou o país, vitimando cerca de 300 mil pessoas. O programa da CAPES previa que os estudantes viessem ao Brasil para dar continuidade aos estudos em nível superior iniciados no Haiti e interrompidos em função do sismo, requisito que foi modificado pelo programa da UNILA, o qual passou a admitir somente haitianos que estivessem no Brasil, vindos à partir de 2012 em um dos maiores fluxos migratórios registrados no país neste século. O programa Pró-Haiti original foi extinto. Estima-se que entre 2012 e 2016, cerca 75 mil haitianos ingressaram no país, muitos deslocando-se entre os estados do sul e sudeste em busca de emprego, tendo sido absorvidos como mão-de-obra da indústria frigorífica e de construção civil, a despeito de terem formação superior em diversas áreas e serem usualmente falantes de vários idiomas como francês, inglês e espanhol, além do criolo haitiano e o português aprendido no Brasil.  Homens e mulheres que tem muito a contribuir para o Brasil, tanto como trabalhadores como quanto estudantes e acadêmicos e que costumam compartilhar de uma incomum paixão e orgulho pela sua história.

Um desses apaixonados é o acadêmico de Economia, Desenvolvimento e Integração, Stephat Pierre, que me conta entusiasmado sobre história, epistemologia, cultura e política. Estudante da UNILA desde 2015, Stephat iniciou seus estudos em Minas Gerais, mas não conseguiu prosseguir pelo preço das mensalidades em uma universidade particular. Apesar das dificuldades, sua determinação foi inabalável por uma sede por conhecimento contagiante, que se expressa especialmente quando fala sobre o seu país.

“O Haiti é o primeiro país que conseguiu sua liberdade na América Latina toda e por isso, ajudou os processos de independência em todo o continente”, pondera, com brilho nos olhos. “O Haiti pega a epistemologia branca e quebra essa ideia. Qual era a epistemologia dominante? Que os negros não tinham capacidade de pensar por si próprios e eram inferiores, mas mostramos que estavam errados. Quando um grupo de escravos haitianos derrota uma tropa de quase 33 mil soldados franceses bem armados e treinados, o Haiti mostra à América Latina o caminho da liberdade, o caminho da igualdade e que todos nós somos iguais e capazes. Após a independência, o Haiti abriu suas portas e pagou a mercadores pela liberdade de africanos traficados para o Caribe, determinando que qualquer pessoa que pisasse em nossa ilha seria livre. É vergonhoso que toda vez que alguém refere aos ideais de liberdade, fraternidade e igualdade, cite a Revolução Francesa”, fato histórico que explica a ausência da cor branca da bandeira colonial francesa na bandeira haitiana, que foi rasgada como protesto contra a hipocrisia dos ideais revolucionários que valiam para a metrópole, mas não para as colônias.

Stephat conta que participa de grupos de pesquisa e extensão sobre a história e cultura haitiana na UNILA e que há uma agenda de eventos previstos para 2018. “Faremos um congresso internacional em 18 de maio, dia da Bandeira Haitiana, e também um evento em 14 de agosto na data da Cerimônia de Bois Guacayman, data comemorativa religiosa no Haiti, que é, na verdade, uma assembléia comemorativa da insurreição da Revolução Haitiana”. Também está previsto o projeto de uma cartilha sobre a Revolução Haitiana que será distribuida em escolas da rede pública no Brasil, que costuma ser negligenciada nos currículos escolares mas teve grande relevância no século XIX.

A participação de haitianos nos processos de independência dos Estados Unidos e da Grécia, com remessas de dinheiro e de militares e a recepção de refugiados pelo país na segunda guerra, além dos bloqueios econômicos pelos Estados Unidos e a França são episódios importantes, que contribuíram para a situação atual do país e podem despertar o interesse dos estudantes, ampliando seus conhecimentos e compreensão sobre o mundo atual, despertando também sua alteridade pelos haitianos no Brasil. Após sua independência, em 1804, a França obrigou o Haiti a pagar uma indenização pela sua libertação em valor que seria equivalente hoje a 17 milhões de euros. Na mesma época, a França havia vendido parte de um território então pertencente a ela, o estado de Louisiana, hoje nos Estados Unidos, por metade desse valor. Forçado a pagar a dívida colonial por ocupações militares norte-americanas e Francesas, o Haiti contraiu empréstimos de ambos os países, situação que aliada aos  embargos econômicos que duraram até meados do século XX minou pouco a pouco suas possibilidades de subsistência econômica frente a impossibilidade de vender produtos agrícolas. O resultado de séculos de exploração colonial e neocolonial pode ser visto na atualidade, agravado por recentes situações de catástrofes naturais sofridas pelo país.

Stephat, estudante de Economia, Desenvolvimento e Integração é apaixonado pelo seu país: “chorei ao ver Trump chamar o Haiti de país de merda”. Crédito: Amanda Rossa/MigraMundo

Em tempos como os nossos, o conhecimento e a falta dele podem libertar ou também destruir a capacidade humana de alteridade. Stephat comenta um caso ocorrido em 12 de Janeiro de 2018, que coincidentemente marca o aniversário de criação da UNILA, 8 anos atrás, mesmo dia em que um terremoto devastou o Haiti vitimando cerca de 300 mil pessoas, o que também afetou o seu PIB em -121%. Nesse mesmo dia, em 2018, Donald Trump chamou o Haiti e outros países africanos e latino-americanos de “países de merda” em um debate sobre imigração na Casa Branca, em Washington. “Eu amo meu país e as coisas que eu sinto pelo Haiti eu não consigo explicar. Quando eu vi o presidente dos Estados Unidos chamar o meu país de um país de merda, não é sentimentalismo, e não é academicismo, mas chorei e chorei muito. Por isso que é tão importante valorizar e fazer conhecer nossa história e nossa cultura”, conclui.

Sobre seus planos para o futuro, Stephat quer fazer pós-graduação para retornar e trabalhar em seu país: “Todas as condições estiveram prontas para eu ser uma pessoa ruim e para passar nessa vida sem que percebessem minha existência. Mas eu tenho força para conseguir aguentar muitas coisas e você vai estar muito orgulhosa de mim.”

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