Por Bianca Medeiros
Do ProMigra
Debaixo dos holofotes e dos muitos diálogos realizados pela diplomacia internacional, a COP 30 foi saudada como o momento em que o Brasil, e por extensão a Amazônia, poderiam finalmente ocupar o centro das negociações climáticas. Acontece, porém, que, como diria o antigo ditado, “na prática, a teoria é outra”. Embora seja um dos eventos mais importantes sobre clima do mundo, a presença das inúmeras delegações na Amazônia e, por consequência, toda a pompa e elegância que se esperam de um evento desse porte deixaram de lado quem mora e vive do espaço que hoje está sendo olhado pelo mundo todo. Mas vamos aos poucos.
Ao mapear criticamente os dez principais eventos preparatórios para a COP 30, percebe-se que sob a cortina de discursos inclusivos subsiste uma engrenagem de interesses corporativos, colonialidade epistêmica e exclusão sistemática dos verdadeiros protagonistas socioambientais. A engrenagem não apenas move o espetáculo da COP, mas mostra, com ironia trágica, o quanto a justiça climática ainda é um slogan distante, capturado por elites decisórias e protegido pela estética do capitalismo verde. Senão vejamos:
Eventos pré-COP 30
No Fórum Dinapec Pré-COP (Campo Grande, MS), sob o rótulo da “Carne Carbono Neutro”, um dos maiores fóruns do agronegócio brasileiro pulou de cabeça na onda da sustentabilidade. O discurso: cortar emissões para conquistar mercados – ou pelo menos parecer que corta. Estratégias de certificação, como a “Carne Baixo Carbono”, serviram de exemplo de “greenwashing” institucionalizado: mantêm a lógica da pecuária industrial e do desmatamento, enquanto produzem narrativas convenientes para fundos verdes internacionais. As críticas dos cientistas são contundentes: transformar emissões em commodity apenas aprofunda a financeirização da natureza e reforça as assimetrias socioambientais, seguindo o script do “capitalismo verde” denunciado por autores como Leff e Fearnside.
Já no 16º Diálogo Climático de Petersberg (Berlim) foram discutidos os bastidores da chamada bioeconomia internacional em que apareceram de forma crua: gigantes industriais europeus negociaram acesso privilegiado a matérias-primas amazônicas e mercados de carbono, enquanto discutiam soluções energéticas supostamente limpas – carvão fora, hidrogênio verde dentro. O REDD+ – programa global de compensação – foi denunciado como mecanismo de grilagem e apropriação dos territórios indígenas. O que está em jogo, como bem aponta o pensamento de Nancy Fraser, é a renovação da colonialidade do poder por meio de projetos que repetem o velho extrativismo sob selo verde.
Aconteceu também a Reunião Ministerial do Clima de Copenhague com o conceito de“Capitalismo verde: parte 2” – promessas de fundos e transferências financeiras para países do Sul Global que seguiram carregadas de condicionalidades desconectadas das realidades locais. Especialistas denunciaram: fundos climáticos mais servem para reciclar lucros de multinacionais. O Sul permanece devedor, o Norte legisla a agenda, e a COP 30 caminha para reforçar uma ordem ambiental internacional tão desigual quanto a própria ordem econômica mundial, reforçando a crítica estrutural de Ikeme e dos teóricos da justiça global.
A “Bonn Climate Conference”, na mesma perspectiva, expôs, mais uma vez, o impasse histórico do financiamento climático. Delegados de 200 países se debruçaram sobre documentos e indicadores, mas esbarraram num velho dilema: quem paga a conta da crise ecológica global? Países ricos travaram o avanço do financiamento para adaptação climática, frustrando o GGA (Global Goal on Adaptation). Nos corredores, o clima era de ceticismo – milhões continuam à mercê dos eventos extremos enquanto o sistema financeiro internacional lucra com a própria crise que ajudou a criar.
No desespero da participação da própria Amazônia no debate, a Cúpula dos Povos da Pan-Amazônia (Belém). Em contraposição à liturgia oficial, povos indígenas, quilombolas e movimentos de base realizaram uma cúpula paralela exigindo justiça ambiental e reparação radical. A denúncia: os acordos bilaterais, como o Mercosul-União Europeia, perpetuam a exportação de commodities sob verniz sustentável. Aqui, a crítica vai além da retórica e encosta no nervo teórico do debate ambiental: não há justiça climática possível sob a lógica imperialista e desenvolvimentista, como analisa Fraser em “Justiça distributiva e colonialidade do poder”.
O evento Climate Week Nova York e Mobilização Empresarial Global foi promovido como um dos mais influentes do calendário climático, serviu para alinhar o mainstream corporativo europeu e norte-americano às estratégias de compliance ambiental e metas ESG. O resultado: as grandes corporações ditam o ritmo da transição energética, enquanto comunidades periféricas e países dependentes têm pouco espaço para questionar o consenso tecnocrático – um sintoma da “governança global multiescalar” capturada por interesses privados.
Outro evento importante foi o Fórum Amazônico de Engenharia, Agronomia e Geociências (Manaus) com a retórica da infraestrutura “sustentável” voltando a circular, mascarando o avanço do modelo de grandes obras na Amazônia. Soberania territorial, direito à consulta prévia e impactos socioambientais seguem na pauta – agora secundarizados por debates técnicos e “soluções” que o teórico Enrique Leff qualificou de reducionistas e assimilacionistas. Isso porque o saber técnico se sobrepõe ao saber tradicional, repetindo a negação epistêmica já denunciada por Quijano.
Ou seja, faltando poucos meses para a COP, crescem as críticas à estrutura da cidade anfitriã: falta de leitos, preços extorsivos e especulação hoteleira criam um apagão logístico que ameaça expulsar a sociedade civil do debate – uma ironia cruel para uma conferência cujo mote é “inclusão”. O aumento (até dez vezes) dos preços em hotéis de Belém provocou pedidos para transferir parte do evento para outras cidades e pressão aberta de países do Sul Global. Sem controle público, os interesses privados transformam um evento de justiça climática em vitrine de desigualdade e colonialismo interno.
Em eventos paralelos como o Congresso ESG, grandes empresas posicionaram-se como protagonistas dos discursos ambientais, enquanto territórios amazônicos tornavam-se palco para o marketing verde de megacorporações de energia, mineração e agronegócio. O problema teórico é flagrante: quem legitima a governança global são as mesmas entidades que concentram terra, recursos e poder, invertendo o vetor emancipatório da justiça climática e confirmando as análises de Piketty e Fraser sobre a apropriação corporativa das agendas de direitos e sustentabilidade.
Para onde vamos? O futuro que a COP 30 promete (e aquele que se esconde)
Na maturidade da crise climática e na iminência da COP 30 em Belém, o futuro prometido pelo sistema internacional é ostensivamente um horizonte de justiça climática plural, de pactuação inclusiva e de ambição renovada – enquanto, em paralelo, a realidade das decisões, das práticas institucionais e dos interesses hegemônicos revela um presente marcado pela reprodução das exclusões, pela colonização dos saberes territoriais, pela financeirização da natureza e pela dependência do capital fósseo internacional.
O discurso oficial, preconiza que o Brasil irá liderar uma nova era climática promovendo “adaptação justa”, “governança participativa” e “transição ecológica” – mas as práticas reais evidenciam o fechamento dos círculos decisórios à elite governamental e aos setores empresariais porque a quase totalidade dos ministérios federais promove políticas que elevam emissões, enquanto apenas a pasta do Meio Ambiente tenta mitigar os danos.
É uma governança fatiada e contraditória, onde, ao mesmo tempo, se autoriza a abertura de novas fronteiras crescentes de exploração petrolífera na foz do Amazonas, incentiva o agronegócio e aprofunda os subsídios à mineração – contradições que colocam o Brasil como símbolo da hipocrisia institucional na diplomacia climática. Enquanto a liderança nacional se exibe na tribuna internacional, a floresta, os povos e os territórios continuam sendo moeda de troca e recursos para políticas extrativistas.
No âmbito global, a conferência opera sob a égide do consenso processual: um formato institucional que legitima a voz dos Estados vulneráveis, mas que, na prática, privilegia atores com poder econômico e força política para travar ou direcionar negociações. O resultado é uma “democracia formal”, onde muitas vozes podem falar, mas poucas decidem. Ou melhor, só um grupo seleto que decide e, geralmente, são aqueles que pouco conhecem o meio ambiente.
A persistência dessa governança multilateral excludente – onde cidades, comunidades locais e povos indígenas implementam políticas sobre as quais pouco foram consultados – é o retrato do fracasso em adequar as soluções à complexidade do problema.
Tanto é que um dos sintomas mais evidentes da falência política da COP 30 é a transformação da natureza amazônica em commodity climática. As dinâmicas de governança ambiental seguem os interesses do mercado internacional, condicionando a proteção da floresta e de seus povos à lógica do preço do carbono e dos fundos de adaptação.
Ferramentas como mercados de carbono e fundos de investimento, sob a retórica da “transição justa”, acabam por perpetuar práticas de financeirização do ambiente, transferindo recursos públicos para bancos privados enquanto os territórios permanecem vulneráveis ao avanço do agronegócio, da mineração e das grandes infraestruturas.
Os impactos na mobilidade humana
O espaço da COP 30, tanto na materialidade do evento quanto nas redes de decisão, tem sido criticado por reproduzir o racismo ambiental e a colonialidade epistêmica.
Essa exclusão sistemática não é apenas simbólica: ela tem implicações diretas na mobilidade humana na Amazônia e em outras regiões vulneráveis. Eventos extremos, como secas prolongadas, inundações e perda de produtividade agrícola, já estão deslocando comunidades inteiras, forçando migrações internas e transfronteiriças que configuram o que a literatura especializada chama de “migração climática” ou “mobilidade induzida pelo clima” (BLACK ET AL., 2011; BOAS, LINNÉR & MASSEY, 2019).
O paradoxo é que, enquanto a COP 30 se apresenta como fórum de adaptação e resiliência, não há mecanismos concretos que vinculem a proteção climática à proteção de migrantes ambientais, nem dispositivos internacionais efetivos no âmbito da ONU que articulem políticas de acolhimento, reparação e reassentamento seguro.
Mas veja bem, ignorar a mobilidade climática é perpetuar uma injustiça dupla: deixar os territórios vulneráveis à mercê do mercado e não assegurar direitos básicos às populações que são obrigadas a se mover para sobreviver.
Fato é que a Amazônia, ao mesmo tempo epicentro da crise ecológica e da COP, carrega um futuro de deslocamentos que não está sendo politicamente reconhecido nem juridicamente protegido. Essa omissão priva a conferência de enfrentar um dos impactos mais tangíveis da crise: a transformação das rotas migratórias, das fronteiras e das próprias dinâmicas demográficas regionais.
Dentro da lógica do capitalismo verde, a mobilidade forçada tornar-se-á mais um indicador usado em relatórios, mas não um problema a ser resolvido — e isso expõe, com clareza, o déficit ético e jurídico da governança climática global.
Outro ponto importante a ser destacado, é a estrutura física precária de Belém, os preços abusivos das acomodações e o despreparo logístico se associam à negligência institucional para com a participação das comunidades locais, dos povos originários e dos movimentos sociais, sabotando de antemão o potencial emancipatório do evento. São muitos os relatos de que essas populações seguem como “atores de segunda ordem”, figurando no marketing internacional, mas ausentes do processo real de decisão.
Do ponto de vista teórico, a crítica formal é contundente. Stengers, Leff, Fraser e Bullard defendem que a justiça climática exige uma “cosmopolítica do cuidado”, ou seja, uma ética internacional fundada na corresponsabilidade, na valorização dos saberes tradicionais, na pluralidade dos modelos de desenvolvimento e na reparação efetiva das injustiças históricas do capitalismo verde. O que se vê, porém, é um espetáculo onde os saberes indígenas e as práticas sustentáveis autóctones são celebrados como retórica, mas ignorados na elaboração dos planos nacionais e globais.
Ou seja, o verdadeiro horizonte de transformação política climática não está nos acordos firmados pelos Estados e corporações, mas sim na capacidade de subversão dos territórios ocupados, dos movimentos sociais insurgentes e da ciência comprometida com a justiça radical.
Caminho para o futuro ou oportunidade perdida?
O exemplo latino-americano mostra que mudanças estruturais só acontecem quando os sujeitos subalternizados assumem o protagonismo: quilombolas, indígenas, periféricos, juventudes urbanas – todos reivindicam não apenas políticas paliativas, mas uma revolução na ordem decisória, rompendo a lógica do mercado e instituindo uma nova ética política.
Se persistirem a financeirização, o espetáculo diplomático, a colonização dos saberes e a exclusão sistêmica, a COP 30 será lembrada como mais uma oportunidade histórica perdida para a ação climática real. Os sinais são claros: retrocesso institucional, resistência dos setores fósseis, ausência de medidas vinculantes e prevalência das promessas vazias.
Pelo contrário, a emergência cosmopolítica do cuidado, pautada por rupturas democráticas, protagonismo dos territórios insurgentes e coerência ética entre discurso e prática, pode forçar o sistema a assumir metas vinculantes e transformar a governança climática internacional.
A escolha está à porta, e o tempo, como reforçam Mehling e Alcântara, é cada vez mais curto: ou a COP 30 inaugura um novo ciclo de liderança democrática, reparatória e radical, ou será mais um capítulo do fracasso anunciado das diplomacias ambientais no século XXI. Que pena!
Sobre a autora
Bianca da Silva Medeiros é Doutoranda em Direito na Universidade Nova de Lisboa – UNL, mestre em Ciências da Sociedade com ênfase em direitos humanos, sociedade e cidadania ambiental pela Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Oeste do Pará – Ufopa. Especialista em Direito Constitucional Aplicado e Relações Internacionais com ênfase em Direito Internacional Público. Pesquisadora, Consultora Jurídica e Gestora de Projetos no Terceiro Setor. Amazônida, latina, filha da educação pública e defensora dos direitos humanos. Também é integrante do ProMigra.
Referências
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Black, R.; Bennett, S.; Thomas, S.; Beddington, J. (2011). “The effect of environmental change on human migration”. Global Environmental Change, 21, Supplement 1, S3–S11.
Boas, I.; Linnér, B.-O.; Massey, D. (2019). “Climate migration myths”. Nature Climate Change, 9(12), 901–903.
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G1, conferência preparatória COP30
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Jornal do Futuro, colapso climático como negócio
Jornal UNESP, governança e desastres climáticos.
Leff, E. (2021) Descentralização epistêmica no Antropoceno.
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Mehling, A. (2025) Governança climática internacional: fragmentação e rivalidades.
Nexojornal, justiça climática interseccional.
Panrotas, COP30 e preços abusivos
Piketty, T. (2024) O capitalismo em debate na economia ambiental.
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Sassen, S. (2022) Urbanização predatória e justiça climática.
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Stengers, I. (2019) Cosmopolítica: ciência, cuidados e responsabilidades.
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The Conversation, colonialismo interno e infraestrutura
Veja, infraestrutura COP30 e exclusão popular Waters, M. C. (2025). “Preparing for climate migration and integration”. Journal of Ethnic and Migration Studies, 51(1), 1-25.
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