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terça-feira, dezembro 24, 2024

Da necessidade da evolução da proibição de rechaço a um direito à permanência

A possibilidade de o governo brasileiro não conceder residência humanitária às pessoas refugiadas palestinas escancara a necessidade de superarmos o princípio do não-rechaço, também conhecido como "non refoulement"

Por Leonardo Bortolozzo Rossi
Do ProMigra

A partir do término da II Guerra Mundial, a própria sociedade mundial se viu diante da necessidade de reconstruir as relações internacionais, agora pautadas pela primazia dos direitos humanos. Com a evidência dos horrores dos regimes totalitários, entre os quais, a massa de refugiados gerada pelas políticas de extermínio do nazifascismo, o regime jurídico internacional dos refugiados foi substantivamente modificado.

Atualmente, uma das divisões básicas dos movimentos migratórios transnacionais trata-se do migrante econômico, isto é, aquela pessoa que, em tese, realiza um cálculo de custo-benefício acerca da sua decisão (ou não) de migrar. Até mesmo essa perspectiva é alvo de críticas, se a pensarmos sob uma visão do denominado “Direito Internacional do Terceiro Mundo”. Por sua vez, os refugiados merecem uma “camada” extra de proteção legal, a qual se dá na forma da regra da proibição de rechaço (do francês non refoulement).

Da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1951

Em 1951, no bojo da Organização das Nações Unidas, editou-se a Convenção relativa ao estatuto dos refugiados, tratado multilateral que versa sobre os direitos, garantias e obrigações desse grupo de pessoas no Direito Internacional, que reflete no comportamento dos Estados.

O conceito de refugiado encontra-se logo no art. 1º da Convenção de 1951, em que, se considera refugiada a pessoa que tem o temor de ser: “perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade”. As normas de Direito Internacional devem ser interpretadas como flexíveis, nesse sentido, o conceito abarcaria outras modalidades de perseguição, como a de gênero, na contemporaneidade.

Outra diferenciação em relação ao migrante econômico, está que o estatuto de refugiado se estende a eventual cônjuge, ascendentes e descendentes, e outros membros do grupo familiar que tenham relação de dependência econômica para com quem pleiteia o refúgio.

A norma que cria a maior proteção jurídica ao refugiado é a regra da proibição de não-rechaço, que está disposta tanto na Convenção de 1951 quanto na legislação brasileira sobre o refúgio (Lei 9.474/97). O artigo 33 da Convenção obriga que nenhum Estado expulsará ou rechaçará, de forma alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios que sua vida ou liberdade seja ameaçada. A regra do non-refoulement se trata, portanto, da obrigação jurídica internacional da vedação estatal de “devolver” aquele que pleiteia o estatuto de refúgio ao local em que seus direitos humanos eram violados (ou corriam risco de).

As incompletudes da proibição de rechaço

Não obstante, as violações ao princípio do não-rechaço são cotidianas, com exemplos nos mais diversos países, como o Reino Unido, a Turquia, a Jordânia e o Líbano. Embora a proteção do não-rechaço seja importante, constitui-se apenas a primeira etapa, isto é, trata-se de uma autorização de entrada naquele país em que se pleiteia o refúgio.

Entretanto, em virtude da edição de normas de caráter cada vez mais restritivas a direitos dos refugiados, especialmente no chamado Norte Global, sob justificativas de proteção à segurança nacional e do trabalhador nacional, as autorizações e concessões dos pedidos de refúgio são cada vez menores.

Os efeitos das decisões são devastadores, pois, embora os reclamantes tenham o direito de permanecer no país enquanto o pedido é processado, quando da sua negativa, caso não haja outra razão jurídica para a sua permanência, procede-se aos procedimentos de retirada compulsória. Ou, ainda, por não terem para onde migrar, decidem permanecer em condição de irregularidade administrativa, situação que potencializa a sua vulnerabilidade para as mais diversas formas de exploração, como o tráfico humano, trabalho forçado e todas as formas modernas de escravidão, somado ao temor contínuo da deportação.

As decisões são, na quase totalidade das vezes, definitivas. Não há a possibilidade da reversão para a concessão do refúgio. As tentativas de acionar o Poder Judiciário são frustradas, pela deferência às decisões tomadas administrativas. Portanto, são múltiplas as violências que se sujeitam os solicitantes de refúgio em todo o seu trajeto, desde a violação a direitos humanos básicos no seu país de origem até a possível negativa de acesso ao refúgio no país em que viverá a sua vida.

E, nesse sentido, conforme as pesquisas apontam há décadas, e, com o pano de fundo da eclosão de dois grandes conflitos nos últimos anos, temos pela necessidade de repensar a evolução da não devolução em um direito à permanência.

As notícias recentes de que o governo brasileiro não concederá residência humanitária às pessoas refugiadas da Faixa de Gaza escancaram a falha do princípio da proibição do rechaço, o qual deve ser completado por um direito de hospitalidade que compreenda a inserção completa do refugiado e sua família na sua nova sociedade.

Do não-rechaço a um direito à permanência

As incompletudes ao princípio do não-rechaço demonstram a necessidade de o repensarmos para a sua evolução em um direito à permanência. A noção que a obrigação estatal termina com o processamento do pedido do refúgio precisa ser afastada. Tal ideia combina com uma noção comunitária da justiça.

Em sua obra de 1983, Michael Walzer constrói sua ideia de justiça a partir de verdadeiras esferas, que são independentes entre si. As regras de admissão a uma determinada fronteira nacional são essencialmente distintas da garantia a direitos para quando o refugiado já está inserido no seio daquela sociedade. Contudo, a noção de esferas de justiça não se mostra aplicável na prática, pois, os Estados-nações modernos exercem suas políticas migratórias tanto no interior quanto nas fronteiras, com a impossibilidade de traçar sua completa cisão.

Caso o refugiado apenas tenha o pedido admitido, sem nenhum outro tipo de auxílio para a sua inserção naquela nova vida, o próprio instituto do refúgio perde seu sentido, com a maximização da sua vulnerabilidade.

É em tal cenário que o florescimento de um direito cosmopolita, ancorado nos ensinamentos kantianos, deve prosperar para a formulação de um verdadeiro direito à permanência do refugiado, em um real direito da hospitalidade, o qual respeite não apenas os direitos a ter seu pedido processado e atendido, mas à defesa da sua vida naquele novo Estado que o acolheu.

Sobre o autor

Leonardo Bortolozzo Rossi é doutorando e mestre em Direito pela UNESP/FCHS e membro do GT Acadêmico do ProMigra

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