Enquanto o governo italiano cogita fechar os portos do país para os barcos que chegam pelo Mediterrâneo, pessoas de diferentes origens procuram novos caminhos, longe de casa. Vão conseguir?
Por Victória Brotto
de Reggio Calabria (Itália)
“Há muitas pessoas chegando nos barcos nesses últimos dias. Se nós pudéssemos orar por eles, eu recebi a notícia ainda ontem à noite – e me informaram que há algumas mortes”, diz Ann, uma missionária escocesa da igreja Evangélica Batista Cristã no centro de Reggio Calábria, sul da Itália, durante o culto dominical. Ann ajuda como voluntária no porto da cidade a receber os migrantes resgatados do mar e a acolhê-los – quando há barcos resgatados pelas agências humanitárias, o telefone de Ann toca avisando o dia que os migrantes chegarão ao porto.
Depois de Lampedusa, Reggio Calabria é o porto italiano que mais recebe botes. “Eu peço pela África, Senhor, nos salve, oh Deus. Nós somos teus, em nome do poderoso nome de Jesus,” diz um congolês, em suas orações todo o domingo na mesma igreja de Ann. Logo depois de cada frase do congolês, outros cinco refugiados dizem “Amém” – e com eles o resto da pequena igreja.
No último dia 28 de junho, o governo italiano ameaçou fechar os portos para os botes de resgate com migrantes africanos. Para a Itália, recebê-los se tornou “insustentável”, disse o representante do país nas Nações Unidas, Maurizio Massari. De acordo com dados da ONU, mais de 1.000 pessoas chegaram aos portos da Itália nos últimos quatro dias, vindas do Norte da África pelo mar Mediterrâneo. Neste ano, já são mais de 73 mil – um aumento de 14% em relação ao mesmo período no ano passado. De acordo com o último balanço do Alto Comissariado da ONU para as Nações Unidas (ACNUR), 2.000 migrantes morreram ou estão desaparecidos.
Para a Itália, o resto da Europa está “fechando os olhos para o número de pessoas que chegam ao país”. “Se não houver uma solução a longo prazo, vamos fechar os portos”, disse Massari.
(Vivi em Reggio Calabria por quase todo o mês de junho, também como migrante, e decidi não escrever nada sobre a vida que esses refugiados deixaram para trás ou sobre suas jornadas nos botes. Muitos deles passaram por situações inomináveis – e apenas a chegada deles em terra segura é uma vitória imensa. Todos que cruzaram meu caminho me trataram com respeito e extrema seriedade. Muitos deles falavam pouco, o suficiente – e eu decidi, então, por bem, falar pouco (o fazer perguntas também encontra seu limite). Todos os dias me encontrava com eles na feira, nos arredores de minha casa, na frente da Biblioteca Pública da cidade, na Avenida Lungo Mare e, aos domingos, na igreja. O relato continua abaixo)
Na principal avenida turística da cidade de Reggio Calábria, uma moça senegalesa acha um canto de sombra, no chão, para sentar. Mais caída do que propriamente sentada, ela espera o amigo terminar de vender óculos escuros e proteção de celular para os turistas.
“Olá. Poderíamos conversar um instante?”, pergunto à jovem. Sua roupa inteira ainda era do Senegal – um lenço enorme cobria seu corpo franzino e, seus olhos opacos, extremamente fracos, cobriam sua feição. Com poucos dentes na boca, ela responde três palavras em um dos 36 dialetos senegaleses. “Ela não fala francês, me desculpe”, diz seu amigo sorridente a vender óculos escuros. O Senegal tem o francês como língua oficial, mas só é falado de forma corrente por uma minoria da população educada nas escolas da era colonial de origem francesa.
Num sol abrupto do meio-dia, a moça senegalesa desviava o olhar para longe, como se ninguém – nem ela mesma – estivesse ali. Sua pele era mais negra do que seus olhos e reluzia um sol diferente do da Itália, um sol que ela deixou para trás em seu Senegal.
“Buonggiorno”, diz um nigeriano sem muito sorrir na frente de um pequeno mercado no centro da cidade. Ele estende todos os dias um boné preto para os que passam. Nunca vi seu boné com moedas. A 500 metros, dois outros nigerianos conversam sentados na frente do prédio dos Correios e um outro caminha por entre os carros pedindo esmolas. Os dois que estão sentados travam uma boa conversa, sorriem e apontam para algo no celular. O outro, ouvindo ao longe, se distrai um pouco de seu ofício de pedinte e comenta algo em voz bem alta – tão alta que um dos carros no farol fecha o vidro. Os três caem na risada.
“Good morning, my friend!”, me chama um refugiado da Guiné em um outro farol, também no centro da cidade. Ele, que nunca me disse seu nome, é um pouco mais sofisticado – nada de passar com a mão estendida pelas janelas dos carros. Ele carrega consigo um rodinho e detergente para limpar para-brisas.
“Guiné. Nós somos da Guiné”, dizem três meninos de no máximo 20 anos recém-chegados do mar. “Quando vocês chegaram?”, pergunto. “Chegamos ontem.” Eles caminham pela areia da praia todos vestidos com a mesma roupa, calça e blusa azul-marinho de moletom. Faz um calor escaldante em Reggio Calábria, beirando os 40ºC e um deles tira a camiseta e amarra na cintura.
Quando procuro algo para anotar meu nome, automaticamente olho para um deles para ver se eles teriam papel e caneta – ou celular. Eles não carregam absolutamente nada. “Eles chegam sem nada”, ecoa a voz da missionária Ann em minha memória. Os três meninos não parecem estar com medo algum – ou “com paura”, em italiano – do novo país. Os três passam um bom tempo em pé, na areia, olhando o mar, um mar extenso e da mesma cor da roupa dos três. “Vocês estão com a mesma cor do mar”, digo. “Sim, mas já chega de mar”, diz um deles em francês. Combino com os três de nos encontrarmos ali, no mesmo lugar, às 10h no próximo domingo para irmos juntos à igreja.
Esses meninos do mar – e todos os outros refugiados que chegam à Reggio – já viraram algo natural de se ver pelas ruas. “Ah, esses são os refugiados. Mas não se preocupe, eles não fazem mal. Só pedem esmolas”, diz uma italiana. Meu amigo da Guiné, que “só pede esmolas” em um farol próximo de casa me acena feliz toda vez que me vê – trocamos alguns versos da Bíblia – e isso fez de mim sua amiga. Ele sempre está a sorrir nos faróis. “Good morning, my friend!”, ele exclama. Sua mochila e uma garrafa de água repousam na calçada.
No domingo seguinte, às 10h, me posto no mesmo lugar da Avenida Lungo Mare a esperar pelos três meninos de azul. Eles não aparecem e vou sozinha para o culto dominical. Naquele domingo, o moço do Congo está fazendo parte do coral. Durante as músicas – também cantadas em inglês – ele bate palma e dança em um ritmo próprio. “Tu és o meu refúgio, meu Deus”, diz, sorrindo de orelha a orelha. Outro congolês, no banco, levanta uma das mãos também nessa parte da música: “Tu és o meu refúgio”, diz a letra, “Meu esconderijo e minha rocha.” Eles parecem já ter encontrado uma casa.
Depois do desencontro de domingo, nunca mais encontrei os três meninos. Foi meu último domingo na cidade e quatro dias depois parti de Reggio. A moça senegalesa continuou a acompanhar seu amigo na venda de óculos escuros e proteção para celular. O meu amigo da Guiné me acenou no último dia com mais um “hello, my friend” – ele usava um colar com uma cruz.
[…] (Veja aqui reportagem do MigraMundo sobre a vida dos refugiados na Calábria, Itália) […]