Algumas técnicas básicas têm sido usadas por agentes humanitários para acessar populações que se encontram em situação vulnerável em meio à pandemia e que são alvo de violência doméstica, incluindo refugiados e outros migrantes.
É o que mostraram cinco agentes humanitários durante o Congresso Humanitário de Berlim , durante o painel “Uma pandemia de sombras: Covid-19 e violência de gênero”, na última quarta-feira (28). Baseados no Quênia, Líbano e Afeganistão, eles falaram de aprendizados e deram dicas aplicáveis a outras nações, como o próprio Brasil.
A comunidade internacional reconheceu que a violência doméstica é um dos principais problemas entre a população de refugiados, inclusive no Quênia, onde estão alguns dos maiores campos de refugiados do mundo.
Para responder a esse desafio, ONGs utilizam encontros com psicólogos, assistência médica, formação de assistentes sociais e rodas de conversa. Porém, com a pandemia, essas ações deram espaço a outras técnicas para ajudar as vítimas.
“É como diz o ditado, ‘old é gold’ (em inglês, o que é velho é ouro)”, afirmou Maria Ofwona, oficial de proteção de refugiados da organização HIAS, no Quênia. Ofwona trabalha com refugiados vítimas de violência doméstica, incluindo membros de comunidades LGBTQ, minorias étnicas e mulheres com doenças crônicas.
WhatsApp e pôster
Segundo a agente humanitária, com o confinamento, as vítimas ficam isoladas em casa com o criminoso (o própro marido, na maioria dos casos). Sem celular próprio, a vítima não consegue contactar a organização.
“E mesmo se conseguisse, ela não poderia falar, porque está dentro de casa”, explica ela. Por isso, a organização usa técnicas simples e antigas para chamar a atenção das vítimas e dar-lhe informações úteis de como, por exemplo, pedir socorro e a quem se dirigir.
Uma das estratégias é colar pôsteres do lado de fora do prédio da organização (atualmente fechado por causa da pandemia). “Muitas ao saírem para fazer compras, podem passar em frente ao nosso prédio. Ao lerem o pôster, elas saberão nosso número, para onde ir e com quem falar da comunidade em caso de problemas”, explica.
Outra técnica utilizada são grupos no WhatsApp para cada comunidade de refugiados. “Lá, compartilha-se muita informação, mas não podemos falar especificamente sobre violência doméstica porque todos estão lá, inclusive os criminosos. Então usamos uma linguagem codificada”, afirmou. E é através dos códigos que as/os líderes da comunidade comunicam ao staff quem está em situação de violência doméstica.
“A comunidade é e sempre foi uma importante fonte de recursos para a ação humanitária”, complementou Lina AbiRafeh, diretora executiva do Instituto Árabe para mulheres no Líbano, primeiro instituto de pesquisa criado sobre mulheres libanesas no mundo árabe.
AbiRafeh alertou para o fato de que muitos refugiados não têm acesso à internet, mesmo que uma parte considerável more em áreas urbanas, pois o campo não lhes parece mais uma boa alternativa de vida, eles continuam à margem da sociedade local.
Um exemplo é o Líbano, um dos países que mais acolhe refugiados no mundo, acumulando o mesmo número de acolhimento que a União Europeia inteira. Apesar disso, o governo local não reconhece essa população como refugiada, o que os coloca à margem da sociedade, não tendo direito a trabalho nem acesso ao sistema de saúde.
“A população síria de refugiados vive em condições horrorosas no Líbano, isso há muito tempo, mas com a pandemia tudo ficou pior. Isolados, nós não conseguimos acessá-los. E por falta de recursos, não temos o que dar”, afirmou Linda, que dirige uma organização baseada na capital do país.
“Eu tenho a impressão que sempre temos que escolher quem ajudar e quem deixar para trás”, acrescentou sobre a problemática da restrição de recursos ainda mais pontiaguda no país com o novo coronavírus.
Líderes comunitários podem ser extremamente eficazes para fazer a ponte entre organizações locais e internacionais e as pessoas isoladas. “Eles conhecem a comunidade, as pessoas, os bairros e a legislação local. E serão neles que as vítimas normalmente confiarão para falar sobre uma situação de violência”, afirmou Ofwona, da ONG HIAS.
No Afeganistão, o conflito e as barreiras culturais são verdadeiros obstáculos para acessar às vítimas. “É muito complicado por aqui, um país que vive atualmente unm conflito e as barreiras culturais pesam sobre as mulheres”, afirmou Mohammad Forogh, surpevisor para o setor de Saúde Mental da organização Médicos Sem Fronteiras no país.
“A cultura diz que é uma vergonha admitir uma mulher nos hospitais ou que é proibido você falar em violência doméstica, principalmente em um contexto onde o homem tem mais direitos que a mulher”, acrescentou.
Engajando homens
Um outra técnica usada durante o confinamento é incentivar os homens da comunidade a falarem sobre o assunto. “Nós passamos informações através das lideranças comunitárias, que os incentivam a comunicar e a pensar sobre o assunto”, afirmou Ofwona, da HIAS.
Mas, segundo ela, um dos problemas se dá quando a vítima é um homem – o que é comum entre os somalis, por exemplo. Algumas tribos rivais usam o abuso sexual como arma de guerra para destabilizar a outra tribo, além da ideia de que através desta violência o rapaz “se tornará mais homem”.
“Um homem que foi violado na adolescência ou infância, o que é normalmente o caso, raramente vai falar, porque ele tem medo de ser taxado como gay”, explicou Ofwona.
No Afeganistão, segundo Mohammed, da MSF, a simples menção do assunto é um desafio. “O homem é muito respeitado na cultura local e não se pode falar que homens batem em mulheres”, explicou.
“É um assunto muito sensível, mas a nossa presença na região trouxe uma vitória para nós : ao atendermos vítimas de violência podemos registrá-las como tal. Antes não podíamos”, acrescentou.
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