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sábado, julho 12, 2025

De que forma a Igreja Católica e seus representantes usam o próprio tempo diante do fenômeno das migrações?

Há tempo de sobra para o liturgismo formal, para o ritualismo estéril, para os paramentos ostensivos. Mas esse tempo se releva escasso e calculado para os pobres, migrantes e outros grupos em situação vulnerável

Por Pe. Alfredo J. Gonçalves

Diz o ditado popular que “com o andar da carroça, as melancias vão se acomodando”. Mas isso dura tão somente até a próxima barreira. No passo a passo do cotidiano, a cada obstáculo corresponde um solavanco, e este representa um sobressalto, seguido de uma nova reacomodação. Se assim não for, facilmente a travessia se converte em uma caminhada monótona e sonolenta. São as pedras a serem vencidas diariamente pelo caminho que nos colocam em permanente movimento. Por que preferimos a inércia? Por que o receio das crises e obstáculos? Por que nos sentimos mais seguros numa rotina que raramente traz surpresas, ou, quando as traz, não passam de pequenos arranhões, sem o poder de modificar o sossego e a tranquilidade?

Semelhante comodismo leva a evitar o outro ou diferente, o estranho ou forasteiro. O desconhecido tem o poder de nos manter de sobreaviso. Toda novidade que nos tira da zona de conforto, por mais que possa trazer benefícios, é vista como ameaça. Preferimos uma rotina insonsa, mas conhecida, a qualquer evento imprevisível sobre o qual não temos controle. No dia a dia domesticado e repetitivo reside uma espécie de paz viciada, quando não um mutismo tóxico. Ocorre o mesmo com a água: quando em movimento, é capaz de purificar-se e tornar-se límpida, cristalina, deixando para trás os resíduos impuros e nocivos. Ao contrário, quando imóvel, corre o risco de acumular detritos, gerando lixo e sujeira, o que a faz apodrecer. De resto, tudo o que se acumula por muito tempo, tende a apodrecer.

Não é diferente com o tempo. Tempo acumulando, reservado unicamente para o gasto e o desfrute pessoal, individual, converte-se em tédio. Quer dizer que também o tempo se depura e purifica no uso constante de laços, relações e intercâmbios. Com ele é que se costura o tecido social. Quando cercado, impossibilitando o acesso de outros, transforma-se em tempo latifúndio. Vazio, abandonado, improdutivo! Nada produz porque não se abre à semente que vem de fora. Mas existe, ainda, o que se pode chamar tempo investimento, aquele que é utilizado somente para gerar lucro sobre lucro. Tempo convertido em capital: se e quando aplicado, deve tornar-se uma fonte de rendimento dobrado. Seu uso permanece irremediavelmente subordinado à lei da acumulação de capital. Sendo assim, o tempo é meticulosamente dividido em fatias, e estas distribuídas de acordo com a possibilidade de maior retorno.

Basta um olhar aos relatos evangélicos, por mais superficial que seja, para verificar que só o tempo gratuito é capaz de criar relações genuínas, profundas e duradouras. O tempo de Jesus, sendo o tempo do Pai, passa a ser gratuitamente distribuído aos pobres e excluídos, indefesos e marginalizados. Por isso é que, sempre com os olhos fixos no Evangelho, a caravana do Mestre jamais atropela quem grita por socorro, venha o grito de onde vier. Jesus se detém em atenção à pessoa que sofre e espera. A parábola do Bom Samaritano ilustra bem esse aspecto. Enquanto os dois funcionários do templo (sacerdote e levita) não podem “perder tempo” com o caído à beira da estrada e da vida, o samaritano coloca seu tempo à disposição daquela urgência. Dor, fome e solidão não podem esperar. “Vai e faz o mesmo” – conclui o Mestre (Lc 10, 25-37). Daí que tempo latifúndio e tempo investimento engendram, respectivamente, multidões famintas ou explorados. A forma de utilizar o tempo condiciona o tipo de relacionamento que estabelecemos através dele.

Cabe a pergunta: de que forma a Igreja e seus representantes usam o próprio tempo diante do fenômeno das migrações? Estas, como demonstram rostos, rotas e números, se tornam cada vez mais intensas, complexas e diversificadas. O saudoso Papa Francisco jamais se cansou de alertar para o quadro frio e desolador dessas multidões desenraizadas. Igualmente o atual pontífice, Leão XIV, retomando a preocupação pastoral de seu antecessor, faz emergir a necessidade de abater muros e criar pontes, de passar da hostilidade ao diálogo, da indiferença à solidariedade. “Igreja em saída”!…

O tempo no interior da própria Igreja, das congregações, das pastorais ou movimentos, entretanto, parece medido, demasiadamente calculado, regrado pela matemática. Há tempo de sobra para o liturgismo formal, para o ritualismo estéril, para os paramentos ostensivos, para certas devoções no mínimo estranhas e intermináveis, para as redes digitais, para um moralismo não raro desencarnado… Mas falta tempo para os pobres, para os migrantes, para os grupos vulneráveis e descartáveis, para a visita em suas casas, para o fortalecimento das organizações populares, para a defesa de seus direitos básicos, para o resgate da dignidade humana aviltada, para uma postura profética diante dos opressores cada vez mais milionários e bilionários…

Sobre o autor

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, é assessor do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM) na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)


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