Por Júlia Lyra
Do Grupo Migra
Ao desembarcar em terras pernambucanas em novembro de 2018, logo após a eleição daquele cujo filho, ainda em campanha, ameaçou entrar em guerra com o país vizinho, Saray acreditava que o pior tinha passado.
Ela havia sido contemplada pela estratégia de interiorização na modalidade abrigo-abrigo e seria acolhida diretamente pela ONG SOS Aldeias Infantis em Igarassu, na Região Metropolitana do Recife (RMR). Lá, ficaria alojada em uma das dez casas equipadas da instituição e teria todas as despesas essenciais custeadas até que algum membro de sua família alcançasse a autonomia financeira necessária para se desligar do programa.
Por isso, diante das pequenas vitórias que conquistou no Norte, desde manter seu filho a salvo das ruas de Boa Vista a reencontrar-se com o seu esposo – que não havia tido sucesso na empreitada de arranjar um emprego na Venezuela — migrar para Pernambuco certamente estava entre as mais promissoras.
A migrante sabia que não seria fácil, “para nós, venezuelanos, o Brasil não é”, afirma, mas não imaginava que fosse para tanto. Quando entrevistamos Saray, ela comentou que tinham sido duas as ocasiões em que trabalhou no país. “Por pouco tempo”, como bem fez questão de ressaltar.
À primeira vista, uma das oportunidades era bastante promissora. Tratava-se de uma vaga numa conhecida empresa de eventos no Recife, pagava bem e cumpria o horário determinado, garantiram os empregadores. Para Saray, isso significava, enfim, um recomeço digno no qual ela poderia conciliar as incumbências de esposa, mãe, filha e irmã, pagando contas e enviando remessas para ajudar a família que ficou.
Não tardou muito e a labuta diária se provou o exato oposto das promessas feitas na entrevista. “A empresa gostava muito de explorar as pessoas. Eles falaram que ia ser das 6h da manhã até às 17h, depois que ia ser após às 17h, depois que a pessoa teria que trabalhar até de madrugada. Eu não descansava nada e tenho meu filho pequeninho, ele precisa de sua mãe”, descreve.
Não bastasse o exaustivo regime de trabalho, no qual os brasileiros que chefiavam o local não tinham “nenhuma consciência de que éramos seres humanos, não robôs”, uma esgotada Saray tinha de aguentar o total desprezo e falta de empatia para com a sua condição de mulher e mãe migrante.
“Você não podia falar nada porque tudo para eles é ‘você precisa, você estava passando fome na Venezuela e a sua família ainda está necessitada’”, relembra Saray.
Acabou que depois dessa nenhuma outra oportunidade surgiu para a venezuelana. Como a situação financeira também não andava boa para o seu esposo e o subsídio do programa de acolhimento na Aldeias tinha encerado logo no início da pandemia, em junho de 2020 a família resolveu tentar a sorte num novo ponto do mapa. Foram para Porto Alegre, no extremo sul do país, onde o marido conseguiu um emprego como operário de obra. Ela permanecia desempregada.
A vida interditada
Ao contrário de Saray e de sua própria parentela, ambos acolhidos pela ONG Aldeias Infantis, Maria não tinha casa nem qualquer outra forma de apoio financeiro quando chegou a Igarassu. Precisava pagar o aluguel e as contas, além de cumprir com o desejo de ajudar a família que havia deixado na Venezuela. Arranjar um trabalho, portanto, era prioridade absoluta.
Em março de 2019, uma recém-chegada Maria teve a sorte de estar no lugar certo, na hora certa. Ela descreve a situação com a rapidez que foi: enquanto fazia uma visita rotineira à sobrinha, “uma gente chegou na Aldeia procurando uma mulher para trabalhar na sua casa, eu estava lá e aceitei”.
Por tudo o que viveu, a venezuelana estava satisfeita com o seu primeiro e fortuito mês morando em Pernambuco. Havia encontrado um emprego de cuidadora de idosos na capital e, com o salário que recebia, os três filhos tinham a barriga forrada para ir à escola. Além disso, o do meio, portador de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), foi redirecionado pelo SUS e continuou com os remédios e tratamento que já recebia em Roraima.
Pouco depois, o filho mais velho, que tinha conseguido um posto vendendo pizzas no sinal, foi promovido a mestre pizzaiolo no mesmo estabelecimento recifense. Surgia a oportunidade de que Maria precisava para alçar voos maiores. Com o dinheiro fixo do salário, ela resolveu investir: comprou uma meia dúzia de manequins e começou a viajar todo mês para comprar roupas, bonés e relógios em Caruaru, no Agreste do estado.
Assim a mulher começou a repassar as peças aos filhos mais novos, incumbidos de vendê-las na comunidade venezuelana formada no entorno da Aldeias. O negócio funcionava à base de fiado e era voltado para clientes que estavam, em sua maioria, desempregados, mas que lançavam mão do Bolsa Família para realizar suas compras no fim do mês. Na outra ponta, o valor arrecadado, mais o emprego do primogênito na pizzaria, permitia à família pagar as contas de luz, água e o aluguel de R$ 400.
A motivação para empreender, entretanto, estava longe do enriquecimento. Na verdade, “o sonho de todo venezuelano é chegar aqui, trabalhar, se estabilizar e poder ajudar a vinda de mais familiares”, defende Maria. E foi exatamente isso o que ela fez: juntou dinheiro e usou parte do que conseguiu com as vendas para trazer venezuelanos ao estado e ajudá-los com as despesas até que se estabelecessem.
“Tudo se complicou quando veio o dia da tragédia”, emenda a migrante. Ela estava se organizando para sair da casa onde trabalhava na capital, rumo a Igarassu, quando recebeu uma mensagem amorosa do filho do meio. O menino queria convencer a mãe de levar alguma comida para eles almoçarem juntos. Enquanto aguardava a matriarca, resolveu bater uma pelada com familiares e amigos na sede da ONG Aldeias Infantis, até que foi interpelado por uma prima para ir buscar doações na vizinhança.
Junto com outros dois venezuelanos, ele se dirigiu a um beco nos arredores para pegar os móveis que seriam destinados a mais uma família recém-chegada. Perto dali, um brasileiro estava enfurecido após ter descoberto pelas redes sociais que o filho de seis anos a quem chamava de seu era de outro. Decidiu, naquele mesmo dia 10 de novembro, sair de casa para tirar satisfações com uma arma na mão. Acabou chegando à rua onde estava o trio.
Em estado visivelmente alterado, o homem fez algumas perguntas e recebeu respostas que não entendeu. Falavam outra língua, diria depois à polícia. Com medo das ameaças, todos correram e ele começou a atirar. O filho de Maria ainda tentou fugir, mas tropeçou e caiu no chão. Lá ficou, atingido na cabeça e nas costas. Os outros venezuelanos também foram baleados, mas conseguiram escapar do imóvel.
Quando Maria chegou em casa, tudo havia mudado. Precisou se ausentar do trabalho por seis dias e, como não conseguia mais voltar, pediu demissão. Entrou em estado depressivo. Já o filho Carlos faltou por uma quinzena e acabou sendo demitido. Sem salário, ambos deixaram de ajudar os parentes.
Depois da morte do menino, a venezuelana viu sua saúde mental piorar. Resolveu se mudar para a comunidade do lado oposto da BR-101 Norte, onde era mais desconhecida. Queria fugir da dor e das lembranças do ocorrido, evitando não só circular pelas proximidades do local do crime, mas também o encontro com os parentes do assassino, que ainda moram naquela região.
Se antes o maior objetivo de Maria era se estabilizar no Brasil para ajudar os seus a mudar de vida, o infortúnio a fez mudar de meta para uma bem mais “modesta”, ainda que igualmente grandiosa: cremar o corpo do filho. Em sua ânsia multiplicadora, a matriarca diz que não veio com três para voltar com dois. Quer ter consigo as cinzas para dar ao filho um último regresso para a terra natal. Precisa juntar R$ 4 mil para isso.
“Eu sei que só Deus sabe por que as coisas acontecem, mas as vezes é difícil de entender o porquê. Ás vezes sinto que não sei se se fiz bem ou fiz mal em sair da Venezuela e vir para cá. Penso que se tivesse ficado na Venezuela, mesmo com a dificuldade, as coisas não teriam sido assim”, pondera.
Acompanhadas pela crise
Angelina e Carmen percorreram caminhos distintos até chegarem a Pernambuco. Angelina saiu de Ciudad Guayana sozinha, numa condução, para se encontrar com o marido, Jorge, em Boa Vista. Já Carmen partiu da Ilha de Margarita com a família completa numa camionete particular. Uma foi “adotada” por um casal de brasileiros que a abrigou em sua própria casa durante quatro meses, enquanto a outra percorreu uma rota de mais de 5 mil quilômetros até parar em Porto Alegre, onde viveu cerca de um ano sob o teto de uma tia do esposo gaúcho.
Em comum, ambas são mães de uma nova geração de brasileiras que aqui nasceram em decorrência da crise que assola a terra de suas genitoras. Fazem parte de uma centena de venezuelanas que atravessaram a fronteira para ter seus filhos em melhores condições e cujas vidas ajudam a contar um dos capítulos mais dramáticos deste ciclo migratório.
A descoberta da gestação de Angelina, no meio de 2017, veio cercada por sentimentos opostos. De um lado, felicidade extrema, pois, havia passado mais de um ano tomando medicação para tratar seus ovários policísticos até conseguir engravidar. Mas também foi motivo de muito receio e aflição diante do contexto.
Tudo ia piorando muito rápido. Conflitos diplomáticos, desabastecimento de comida e energia, inflação e desemprego foram alguns dos elementos que a mulher elencou para explicar a crise no seu país até chegar ao ponto que, enquanto grávida, lhe concernia em especial. “A situação da Venezuela é muito complicada. Com respeito à saúde de lá é horrível. Maternidades fechadas, hospitais com falta de medicamentos e insumos básicos. Se você tem que ir ao hospital, precisa levar o que vai usar. Até um pedaço de algodão”.
A decisão de migrar logo foi cogitada. Num primeiro momento, Jorge decidiu procurar trabalho em Roraima, com a ideia de juntar dinheiro suficiente para pagar o parto num hospital particular e os materiais e medicamentos que a esposa fosse precisar no país natal. Acabou que a tentativa fracassou e ele se viu desempregado apenas num novo endereço. Para dar à luz com segurança, restou à grávida seguir a recomendação que a médica do pré-natal havia lhe dado meses antes: “melhor ir embora”.
Em Boa Vista, apesar do clima geral tenso, o casal de venezuelanos acabou contando com a valiosa ajuda de dois brasileiros que haviam conhecido o marido de Angelina numa igreja. Foram acolhidos na casa deles mesmo sem ter muita proximidade. “A irmã fez de tudo com a gente. Deu comida, não pagamos energia, aluguel, nada. Eu de verdade agradeço muito a ela, e até hoje tenho contato. Ela fala que é avó da minha filha e se apegou muito a nós”, conta.
As duas famílias acabaram se separando quando, em junho de 2018, os migrantes acolheram a proposta que meses antes haviam recebido do pastor Josenildo Virgulino, presidente da Ação Missionária para Áreas Inóspitas (AMAI), para ir morar em Carpina, na Zona da Mata Norte pernambucana. Naquela época, o pastor estava contatando instituições religiosas de Roraima para trazer missionários venezuelanos a sua base e assim ajudá-los fornecendo alojamento e alimentação, dentre outras despesas.
Prestes a completar o tempo limite de seis meses de estadia, Jorge conseguiu um bico na gráfica de um brasileiro que costumava levar doações e participar dos cultos realizados na instituição. O dinheiro de duas diárias não era muito, porém dava a oportunidade que o casal precisava para conquistar o mínimo de independência. Por isso, logo no começo eles partilharam uma casa com outra família que havia sido acolhida pela ONG, até que o venezuelano foi promovido a ficar de segunda a sexta. Era o que precisavam para dar conta de um aluguel integral.
Para Angelina, porém, a questão do emprego não ficou resolvida até hoje. O diploma da faculdade de pedagogia, onde era bolsista, não foi reconhecido no Brasil. Ela ainda tentou levar, por meio de uma amizade, sua documentação para um mutirão organizado pela Compassiva, ONG que ajuda refugiados no processo de revalidação, mas não obteve sucesso. Enquanto não consegue reconhecer a licenciatura, Angelina dá aulas particulares de espanhol.
Quem também não conseguiu o reconhecimento do diploma universitário foi Carmen. Apesar de ter deixado de trabalhar como geógrafa desde os tempos em que morava na Venezuela, por motivações pessoais e também de ordem política, a migrante percebeu que, para se sustentar no Brasil, precisará contar com mais de uma fonte de renda.
“Minha ideia é ter geração de renda de verdade. Continuar com o ateliê e ter uma nova entrada de dinheiro pela profissão. Acho que vai me ajudar muito trabalhar como professora ou pesquisadora, que é o que realmente sou”, explica Carmen. Atualmente, ela e o esposo vivem do artesanato de vidro que produzem em Olinda, onde residem com as duas filhas pequenas.
Para a artesã, de fato, as finanças fazem parte do que mais pesa na balança de aspectos negativos vividos em Pernambuco. Sobre a decisão de estar aqui ela é bem clara: “tem seus lados positivos e outros não. Eu acho que estou bem e gosto daqui, isso é muito importante. Mas o dinheiro é muito limitado”.
É por isso que, apesar de bem adaptada aos costumes, ao clima e à culinária locais, semelhantes às de sua origem e razão pela qual escolheu sair de Porto Alegre após um ano morando lá, a venezuelana não deixa de lamentar as limitações que o lado financeiro impõe. A começar pelo adiamento dos reencontros familiares por prazo indeterminado, mesmo antes do cenário de pandemia.
Outra razão pela qual melhorar de vida tornou-se imperativo para Carmen também é de ordem familiar. Como a escassez e o descompasso no câmbio são grandes na Venezuela, ela contou que enviar remessas para os pais aposentados faz parte da sua lista de despesas essenciais. “Tenho que mandar dinheiro para eles, sobretudo para a minha mãe, para que ela consiga comer fruta, ir para o médico, comprar remédio. Eles ganham em bolívares, mas tudo custa em dólares”, reforça.
A depender dos rendimentos do negócio, por outro lado, é somente através da ajuda da estirpe brasileira que o casal de artesãos consegue dar conta de suas próprias despesas. Motivo por que Carmen afirma nunca ter deixado a difícil situação da qual fugiram para trás, fosse ela em Margarita ou no Rio Grande do Sul. “A verdade é que você sai de lá com uma crise e você não deixa a crise lá, a crise acompanha você”.
*Os nomes das entrevistadas foram alterados para preservar a sua identidade
Reportagem é a segunda parte da série “Terra-mãe: histórias e percursos de migrantes venezuelanas em Pernambuco”, fruto do livro-reportagem homônimo produzido pela jornalista Júlia Lyra em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Também marca o início da parceria do Grupo Migra, da UFPE, com o MigraMundo
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