Entre os que passam ou já passaram pela instituição há tanto pessoas de outras cidades paulistas e do país como cidadãos de diferentes nacionalidades
Por Rodrigo Veronezi
Em São Paulo (SP)
A Hospedaria do Brás foi desativada no fim da década de 1970, mas o espaço onde ela funcionou continua a pleno vapor. Cerca de 40% do prédio é ocupado atualmente pelo Museu da Imigração de São Paulo; nos demais 60% funciona desde 1996 o Arsenal da Esperança, um local tão carregado de histórias como o antigo ponto de chegada dos migrantes a São Paulo.
Fundado pelo religioso brasileiro dom Luciano Mendes de Almeida e pelo italiano Ernesto Olivero, o Arsenal da Esperança acolhe, por noite, cerca de 1.200 homens em situação de rua. O local é gerido pela Sermig, uma fraternidade católica italiana sediada em Turim e fundada por Olivero em 1964 que tem como espírito “ser um lugar de fraternidade, aberto à acolhida e ao encontro com quem quiser procurar o sentido da sua vida”.
O Arsenal pode até não ser tão conhecido como o Museu da Imigração, mas quem visita a Festa do Imigrante certamente deve conhecê-lo “por tabela”. Sim, porque a maior parte das instalações do evento utilizam o refeitório, o pátio e um dos pavilhões utilizados pelo Arsenal como dormitórios. Durante a festa também é possível conhecer parte dos alojamentos – o visitante mais desatento costuma confundir as beliches com uma instalação do Museu.
Ou talvez esse visitante não esteja tão errado assim, já que pode-se dizer, sem exagero, que o Arsenal, de certa forma, dá continuidade ao que era feito pela antiga Hospedaria. Entre os que passam ou já passaram pela instituição há tanto pessoas de outras cidades paulistas e do país como cidadãos de diferentes nacionalidades, a exemplo do que aconteceu ao longo dos 91 anos de funcionamento da antiga Hospedaria do Brás.
Atualmente estima-se que cerca de 10% dos atendidos pelo Arsenal sejam migrantes de outros países, especialmente de nações africanas – em 2014, essa proporção chegou a cerca de 25%. Um dado que em parte refletia a intensidade dos fluxos internacionais em direção a São Paulo e ao Brasil naquele momento, puxado pelo megaeventos que se aproximavam – Copa do Mundo e Jogos Olímpicos – e por uma economia ainda em crescimento.
Um exemplo da passagem de pessoas de diferentes origens pelo Arsenal foi a exposição temporária “Cartas de Chamada de Atenção”, que ficou em cartaz no Museu da Imigração no segundo semestre de 2015. Ela reproduziu cartas escritas por imigrantes de onze países do continente africano que passaram pela casa: Angola, Burkina Faso, Gâmbia, Guiné Bissau, Guiné Conacri, Mali, Nigéria, Quênia, República Democrática do Congo, Senegal e Togo.
“Essa casa resgatou a vocação original deste espaço. Milhões de pessoas passaram por aqui. Onde há acolhida, há sentimentos de esperança”, destaca o padre italiano Simone Bernardi, que atualmente coordena o Arsenal da Esperança.
De acordo com dados do próprio Arsenal, entre 1996 e o começo deste ano já foram 57 mil pessoas atendidas.
Alguns números do Arsenal
O dia começa cedo no Arsenal, por volta das 4h da manhã. E seus números dão uma ideia do tamanho do trabalho tocado diariamente pela entidade.
Todas as madrugadas são preparados 1.200 lanches para o café da manhã – ou seja, uma média de 8.400 lanches por semana, 36 mil por mês e 485 mil por ano.
Ao mesmo tempo, são 1.200 camas ocupadas e arrumadas diariamente (o que inclui 1.200 lençóis, 1.200 cobertores e 1.200 fronhas).
Para manter esse funcionamento, cada ocupante do abrigo deve fazer sua parte e precisa deixar a cama devidamente arrumada. Dessa forma, além do acolhimento, o Arsenal busca dividir responsabilidades com os abrigados.
Para manter essa estrutura, o Arsenal recorre a múltiplas fontes de receita. Bazares de roupas são organizados frequentemente com parte das doações recebidas (que também vão para as pessoas atendidas pela instituição). O voluntariado tem importância fundamental nessa estrutura.
A relação com o entorno
“Não queremos que o Arsenal seja um gueto, um simples albergue. Queremos que outras pessoas conheçam o local. Assim, a casa se torna um ponto de encontro. Isso faz bem para a casa”, explica Bernardi sobre como a instituição procura se relacionar com a vizinhança.
Uma relação que o próprio Bernardi admite que nem sempre é fácil. Já no começo da tarde é possível um fila de homens se formando na calçada em frente ao Arsenal. O objetivo é tentar garantir um lugar para passar à noite na casa.
O missionário explica que essa presença precoce se deve ao contexto de crise econômica, que gera maior dificuldade para as pessoas conseguirem trabalho. Nesse contexto, chegar cedo para garantir pelo menos uma cama para dormir e um desjejum ao acordar soa como uma vitória.
Essa aproximação conta com atividades o ano todo, que mesclam ações culturais e de zeladoria e cidadania. Uma delas é um mutirão de limpeza promovido na vizinhança pelos próprios abrigados
Na época do Carnaval, voluntários e ocupantes do Arsenal organizam um bloco de carnaval chamado Batuca Bresser, que desfila pelas ruas Visconde de Parnaíba e Doutor Almeida Lima, que rodeiam a antiga hospedaria.
“Essa casa [Arsenal] movimenta todo o seu entorno”, frisa Bernardi.
A movimentação pode ser sentida até mesmo a quilômetros de distância da antiga hospedaria de imigrantes. Um exemplo foi o do técnico em eletricidade Fernando de Julio, que vive em Araras (SP). Ele ficou sabendo do Arsenal da Esperança e usou parte do seu período de férias para servir de voluntário na casa.
“Não imaginava que existia todo esse trabalho por aqui”, disse ele, em tom de admiração. “Usar parte das minhas férias para ajudar nessa tarefa é uma satisfação enorme”.
História que virou livro
As histórias e vivências do Arsenal já renderam inclusive um livro, escrito por Bernardi e lançado no final de 2017. Intitulado “O Bom Samaritano e a Hospedaria“, ele faz uma analogia da famosa parábola cristã do Bom Samaritano com a experiência da casa.
A inspiração veio a partir do malinês Adama Konate, de fé muçulmana e que viveu no Arsenal da Esperança em seus primeiros meses no Brasil, em 2012 -Adama levou ao Arsenal um desconhecido que ficou ferido após ser vítima de um assalto.
Mesmo já estabelecido em São Paulo, Adama não esquece o que viveu em sua passagem pela casa e visita o Arsenal periodicamente. “Fui muito bem acolhido, me senti em casa. Só tenho a agradecer a eles”.