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sábado, novembro 23, 2024

Especial Anônimas: o perigo mora ao lado

Esta é a terceira parte do Especial Anônimas, uma série de cinco perfis de mulheres refugiadas que vivem em São Paulo. Os textos foram feitos pela jornalista Lu Sudré, mais nova colaboradora do MigraMundo, para o livro “Anônimas”, publicado por ela como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Jornalismo da PUC-SP, em 2015. As histórias e imagens foram cedidas com exclusividade para o MigraMundo.

A série traz histórias de mulheres refugiadas que lutam para reconstruir as próprias vidas longe da terra natal. Os nomes das personagens são fictícios, para preservar a identidade de cada uma delas, ao mesmo tempo em que é possível abrir um pouco a mais a mente sobre as migrações a partir de seus relatos, dramas e superações.

Chichi: o perigo mora ao lado

Por Lu Sudré

Os africanos que vendem ouro no centro de São Paulo podem se frustrar com o número de “hoje não” que recebem, mas Chichi garante que é um bom negócio na África. Era o que ela fazia na Nigéria para complementar sua renda e ajudar nas despesas da casa, onde morava com seus pais. O ouro vinha de longe, lá dos Emirados Árabes, de Dubai, lugar que ela visitou algumas vezes para comprar a mercadoria e revender nas feiras de Zaria, em Kaduna.

Foi com as joias que conseguiu comprar um carro, o que facilitou muito a vida da família. Além de vendedora, trabalhava em uma empresa que produzia peças para os caixas eletrônicos dos bancos nigerianos. Chichi enganou sua vontade de ser médica quando começou a faculdade de Bioquímica. Para alguém formada nessa área, o ideal mesmo seria trabalhar em um hospital ou em uma empresa alimentícia, mas ela sabe que nem tudo é como a gente quer e agarrou a chance que apareceu.

Há oito meses vive no Brasil. Para solicitar o refúgio, precisou muito da ajuda da Cáritas, mas até que foi fácil conseguir o protocolo. Difícil mesmo foi perceber que tinha se enganado: achou que aqui falava-se inglês mas deu com a cara na porta. “Cheguei e não entendi nada do que as pessoas falavam. Jurava que aqui também falavam inglês. Isso tornou tudo mais difícil”.

Chichi – nome que escolheu para ser identificada – não aparenta ser estrangeira à primeira vista. Usa tênis, calça jeans, camiseta polo listrada. Seus cabelos, longos e lisos, geralmente ficam soltos. Usa uma tiara para que os fios não fiquem caindo no rosto. Presta muita atenção na aula de português do projeto Trilhas da Cidadania. Introvertida, sorri timidamente quando o professor lhe pergunta algo. Não é muito de falar ou de chamar atenção, como ela mesma define.

Todas as segundas e quartas pela manhã vai ao Museu de Arte Sacra para assistir às aulas. Romântica inegável, anda sempre com um livro de romance na bolsa. O livro da vez é Romeu e Julieta. “Essa versão é em inglês. Ainda não estou pronta para ler tudo em português. Quem sabe daqui alguns meses”, diz esperançosa, enquanto folheia as páginas do livro.

Filha única, tinha o pai como seu herói. Claro que ama a mãe, mas com seu pai era um chamego só. Quando começou a trabalhar pensou em mudar de país mas permaneceu a pedido do patriarca da família. O trabalho como bioquímica lhe rendia um salário de 1200 dólares, o que em Naira, moeda nigeriana, era o suficiente. Aqui no Brasil o que ganha por mês não chego nem perto. Até agora, está trabalhando como professora de inglês. Dá aula só para duas turmas e acha que seus dias estão contados por não dominar o português. A cada aula é uma mímica diferente para ajudar seus alunos a desvendar os termos que ela diz em inglês mas não sabe como falar em português.

Até que gosta do Brasil, mas seu sonho é morar nos Estados Unidos. Tem a sensação de que as pessoas aqui não gostam de estrangeiros, mas mesmo com todas as dificuldades, está melhor do que estaria na Nigéria. Chichi é mais uma vítima da guerra emplacada pelo Boko Haram. “Eu tive problema com um deles. Um homem que me fez perder muitas coisas, me fez perder a paz e ter que lidar com a morte”.

Desde que se tornou refugiada sua rotina mudou completamente. Em Zaira, saía de casa todos os dias às oito da manhã. Seu turno de trabalho acabava às quatro da tarde. Depois ia para as feiras de rua vender suas joias. No máximo cinco e meia já estava voltando para casa. Ficava pouco tempo nas feiras por uma questão de segurança. “Moro na parte norte da Nigéria. Andar a noite na rua é muito perigoso, o Boko Haram poderia me sequestrar ou estuprar. Voltava pra casa com a luz do sol porque meu pai sempre me pedia para tomar cuidado”.

Chichi e seus pais viviam com medo. Assim como todos os outros cristãos que moram na parte norte da Nigéria, poderiam ser alvo do grupo terrorista. Mas, além disso, eles tinham um motivo específico. Conheciam um homem que havia se convertido ao islamismo, se incorporado ao Boko Haram e que morava próximo à casa deles. Por muito tempo este homem havia acompanhado o cotidiano dos três, principalmente do seu pai.

O perigo morava ao lado e tem o mesmo sangue que Chichi. Seu tio, irmão do seu pai, passou a acreditar que a única lei que deveria ser seguida era a Sharia. Tentou coagir seu irmão a também se incorporar ao grupo terrorista. As brigas e ameaças começaram quando seu pai disse a ele que preferia estar morto do que ser um extremista islâmico.

O perigo morava ao lado e tem o mesmo sangue que Chichi. Era seu tio, que tinha aderido ao Boko Haram. Crédito: Lu Sudré/Especial Anônimas
O perigo morava ao lado e tem o mesmo sangue que Chichi. Era seu tio, que tinha aderido ao Boko Haram.
Crédito: Lu Sudré/Especial Anônimas

Por muito tempo tentaram ignorar a presença deste homem mas não foi possível. Ela se pergunta todos os dias como alguém pode querer obrigar outra pessoa a se converter a alguma religião. Acredita em Jesus Cristo e na Ave-Maria, mas não forçaria ninguém a acreditar também. Para ela, religião é uma coisa que vem do coração de cada um.

Sentada no banco de madeira, no jardim do Museu de Arte Sacra, conta da primeira vez que entrou e visitou a capela. Tirou muitas fotos das santas que ali estavam, sentiu uma paz que não sentia há tempos. Aos poucos, seguindo um momento de introspecção, fala sobre o motivo que lhe fez sair da Nigéria.

Era um dia comum para Chichi. Acordou e foi trabalhar. Recebeu uma ligação no meio do expediente e atendeu despretensiosamente, não tinha como imaginar que naquela manhã perderia seu herói. “Meu tio apareceu na minha casa com seus amigos. Insistiram pro meu pai que ele tinha que se tornar muçulmano e ele disse não. O prenderam no quarto e bateram nele, muito. Muito mesmo. Quando me avisaram no trabalho, não tive como socorrê-lo. Já tinham o levado para o hospital, mas ele não sobreviveu”.

Assassinaram seu pai, que estava próximo de completar 59 anos. Sua mãe também não estava em casa mas tem certeza que foi seu tio, que já vinha fazendo ameaças há tempos. Muitos vizinhos confirmaram. “Doeu muito. Ainda dói. É alguém que você ama muito e não está mais perto de você. Eu até a polícia, mas eles não fizeram nada. Ninguém pode fazer nada contra eles”.

Chichi nunca fala seu nome, refere-se a seu tio como este ou aquele homem. Ela sabe que, naquelas condições, não era alguém de quem ela poderia se esconder. Depois de denunciá-lo, soube que teria que fugir. O homem sabia o que ela fazia, quem a conhecia, onde era seu trabalho. Quando seu pai morreu, não teve outra saída. Tem certeza que se estivesse vivo a protegeria. Mas na ausência dele, ninguém mais pode fazer isso.

A mãe dela, também senhora de idade, se escondeu em outro país da Nigéria. Conversam por telefone. O que mais queria era ver sua mãe. Se sente sozinha aqui. Sua cabeça fica vazia por não ter o que fazer. Não porque ela não quer, mas porque não conseguiu trabalho. “Eu quero vê-la salva. Quando eu estiver bem aqui vou trazê-la para ficar comigo. Mas ainda não. Não quero que ela sofra comigo”, comenta, acrescentando que mal consegue comer aqui, imagine alimentar outra boca.

Apesar do coração apertado com a saudade, está tranquila. Sua mãe é forte e consegue cuidar dela mesma. Quando saíram da Nigéria, pegaram um pouco de roupa e todo o dinheiro que tinham. Chichi trancou a casa e pediu para alguns dos vizinhos tomarem conta, mas não tem certeza se a casa ainda está lá. Garante que se voltar para a Nigéria dará um jeito de verificar.

a moça de 33 anos deixa transparecer seus anseios de menina. Com seu jeito brando, se refugia também nos romances que lê. Crédito: Lu Sudré/Especial Anônimas
a moça de 33 anos deixa transparecer seus anseios de menina. Com seu jeito brando, se refugia também nos romances que lê.
Crédito: Lu Sudré/Especial Anônimas

Vendeu seu carro para comprar sua passagem de avião. Se deixasse lá, com certeza roubariam. Tinha uma amiga nigeriana refugiada no Brasil, e ao contar o que tinha acontecido com ela lhe deu a ideia de solicitar o refúgio aqui. “Chorei durante dias por causa da morte de meu pai. Ela me disse que eu precisava mudar de ambiente, pelo menos a moradia já estava garantida”, diz aliviada. Conhece o drama de outros refugiados em busca de um teto.

Tem a esperança de que o novo presidente, Muhammadu Buhari, controle a situação. De qualquer forma, só volta a Nigéria se estiver casada e ter a certeza de que seu país voltou a ser um lugar seguro.

Está morando em uma kitnet perto do metrô Santa Cecília, no centro da capital. A moradia é bem precária mas enquanto não arranjar outro trabalho, não tem outra opção. Já tirou a Carteira de Trabalho e vai à mutirões de emprego. O motivo que lhe impede é sempre o mesmo: a língua. “O problema é que vocês, brasileiros, falam muito rápido e com muitas gírias. Se falar devagar eu consigo entender,  mas ninguém tem paciência”, desabafa.

A outra nigeriana com que mora, trabalha na área da limpeza. Chichi quer trabalhar em uma empresa ou continuar a ser professora, mas é provável que consiga algo só na área de limpeza. Quer tentar a revalidação do diploma para conseguir uma vida melhor. “O único trabalho que dão para as pessoas de fora são desse tipo. Varrer a rua, limpar o chão. Eu sei que posso mais do que isso. Vou pegar meu certificado do curso e mostrar pra eles.”

Não tem certeza de nada sobre o futuro, mas quer casar o quanto antes. Há alguns anos atrás viajou para os Estados Unidos e conheceu um rapaz, que ficou horrorizado quando soube que ela viria para o Brasil. Mas, sabe que o dólar está muito alto e que vai ser difícil pra que eles se encontrem de novo. Que seja brasileiro, nigeriano ou americano, mas quer entrar de vestido e véu branco na igreja.

Enquanto conversa sobre sua vontade de casar, a moça de 33 anos deixa transparecer seus anseios de menina. Com seu jeito brando, se refugia também nos romances que lê. Pode não ter muita coisa na kitnet apertada, mas visita muitos mundos por meio de seus livros. Só lê coisas que a deixam feliz. Quem sabe, um dia, ela possa viver as histórias pelas quais tanto se encanta.

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