Esta é a quinta e última parte do Especial Anônimas, uma série de cinco perfis de mulheres refugiadas que vivem em São Paulo, feitos pela jornalista Lu Sudré. Os nomes das personagens são fictícios, para preservar a identidade de cada uma delas, ao mesmo tempo em que é possível abrir um pouco a mais a mente sobre as migrações a partir de seus relatos, dramas e superações.
Por Lu Sudré (texto e fotos)
Acordou de manhã e se arrumou para uma ocasião especial. Depois de um ano no Brasil, sem entender bolhufas do que os brasileiros falavam, se encerraram as aulas de português que fez dela capaz de entender o básico. Era o dia da formatura no curso promovido pelo projeto Trilhas da Cidadania – A Língua Portuguesa pela Cidade, realizado pela Associação Cidade Escola Aprendiz, com o apoio da Editora Moderna, da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo e do Museu de Arte Sacra, local onde aconteciam as aulas.
Juliana não faz questão de esconder sua vaidade. Veio para a formatura nos trinques: Vestia um conjuntinho composto por uma calça cor de café, com uma estampa de cobra na lateral. Usava uma regata preta, com detalhes pratas e um terninho com a mesma estampa de cobra da calça. Os brincos e o colar combinavam: cor de ouro com detalhes marrons. As bijuterias douradas chamavam atenção, mas seu salto alto, preto com glitter prateado, é o grande destaque.
Suas unhas, pintadas com um verde-água, também não ficam para trás, assim como seus lábios carnudos, coloridos com batom vermelho. As sobrancelhas finas dividem espaço com a sombra dourada, da mesma cor dos detalhes de sua bolsa preta, de couro. A nigeriana, assim como Mate, também é nigeriana.
Apesar de serem muito diferentes, vieram para o Brasil pelo mesmo motivo: a insurgência do grupo Boko Haram. Depois de algumas semanas que chegou ao país, Juliana conseguiu trabalho por dois meses, mas logo a despediram. Foi contratada como professora de inglês, mas por não entender o português, não conseguia ensinar para os iniciantes, assim como não conseguia traduzir palavras.
Foi quando se deu conta que sem a língua, não conseguiria trabalho. Agora, depois de algumas semanas tendo aula no Museu de Arte Sacra, se sente mais preparada.
— Estou muito feliz. Ainda não domino a língua, mas agora sei o básico. Vou ganhar um certificado e levar para as pessoas me contratarem. Dizem que sou simpática, então, estou torcendo para conseguir logo.
E ela não está errada. Cumprimenta à todos, inclusive os seguranças, com um sorriso enorme no rosto. Juliana é daquelas mulheres que são alvo de todos os olhares por onde passa. Faz questão de salientar que o diploma de português não é o único. No final do ano de 2014, seis meses depois que chegou, Juliana fez um curso profissionalizante de pizzaiolo no Senac Aclimação. Nem imaginava que faria algo na área de gastronomia, mas foi a oportunidade que surgiu e não se arrepende. Afinal, ela mesma diz que está disponível para qualquer serviço e trabalharia como pizzaiola com prazer.
Quando era criança, chegou a pensar em ser enfermeira mas acabou estudando Psicologia da Religião, faculdade que não conseguiu terminar porque teve que sair da Nigéria. Juliana é encantada por essa área do conhecimento, acredita que a psicologia é a única coisa que pode entender o que o homem tem na cabeça, a partir da análise das interações humanas e do comportamento do ser humano.
Distraída, checa o celular de cinco em cinco minutos. Está esperando mensagem da sua irmã caçula, que apesar de estar na Nigéria, acompanha o dia de formatura da irmã mais velha pela internet. O combinado é que ela mande uma imagem posando com o diploma. Quando Juliana fala de sua família, é nítida a proximidade com sua irmã mais nova e devoção pela memória de sua mãe.
Quando o assunto é a família, a postura tranquila e descontraída muda. Até mesmo seu tom de voz. Ter vindo sozinha para o Brasil fez com que Juliana tivesse a saudade como um ponto fraco no seu bom humor. Seus pais tiveram sete filhos. Quatro filhos e três filhas, sendo ela a segunda filha mais nova entre as três. Há um ano e meio não vê nenhum deles. Reflexiva, tem noção que agora, com a distância, a relação deles não é fácil como costumava ser.
Atualmente, todos são casados, menos ela, fato que não deixaria seu pai muito feliz, como bem lembra. Mas o casamento não é algo que Juliana quer para agora. Nasceu em Sokoto, estado do noroeste da Nigéria. Na capital de 600 mil habitantes, também chamada Sokoto, fica a sede do sultanato, a mais alta autoridade religiosa muçulmana da Nigéria e região onde o grupo extremista Boko Haram comete muitos atentados.
Em maio de 2013, o então presidente cristão Jonathan Goodluck, impôs um estado de emergência no país. Mesmo com esforços do governo, a insurgência do Boko Haram não foi freada. De acordo com a organização Human Right Watch, que organiza informações sobre abusos contra os direitos humanos em mais de 70 países no mundo, o apoio do governo nigeriano para a formação de grupos de autodefesa armados, a maioria homens jovens para ajudar na apreensão de insurgentes islâmicos, trouxe uma dimensão nova e alarmante para seus esforços anti-Boko Haram.
Os jovens financiados pelo governo, se tornaram alvo de ataques do grupo extremista islâmico. Ainda de acordo com a organização, a conduta das forças de segurança do governo também está em jogo. Os combatentes ao grupo, cometeram prisões indiscriminadas, tortura e detenção de supostos simpatizantes, além de queimar propriedades que supostamente abrigavam integrantes da milícia.
Goodluck não pode contar a insurgência do grupo, e com o discurso de que impedirá as ações terroristas do Boko Haram, o muçulmano Muhammadu Buhari foi eleito no começo de 2015. Buhari, que já tinha sido Chefe de Estado da Nigéria após Golpe Militar em 1983, ainda não conseguiu alterar a situação.
Para Juliana, os muçulmanos do Boko Haram gostam de guerra e eram contra o presidente cristão da Nigéria. Por isso, criavam muitos problemas para os cristãos, como ela e sua família. Quando a crise se intensificou em Sokoto, com os saques, atentados, sequestros e assassinatos à aqueles que não concordavam com a Sharia, lei islâmica, eles tiveram que ir para outro estado. Mudaram-se para Kaduna, no centro norte do país, no segundo semestre de 2013.
— Achamos que estávamos indo para uma região melhor, mas foi lá, em Kaduna, que eles mataram meu pai e minha mãe. Eles jogaram bombas em todas as casas da vila, todos correram desesperadamente. Infelizmente, eu tive que correr pra sobreviver. Correr pela minha vida. Meus pais estavam lá, desmaiados. Gritei, mas acho que já estavam mortos. Eu queria ajudá-los, mas se eu parasse ali, naquele momento, também morreria.
A mãe de Juliana tinha 69 anos quando o ataque aconteceu. Seu pai, 72. A nigeriana sabia que seus pais, com idade avançada, não conseguiriam correr, muito menos depois de serem atingidos pela explosão das bombas. Ela lembra que estavam conversando na sala, quando ouviram pessoas gritando e os barulhos das bombas, que logo chegaram à eles.
“Isso aqui, é de quando tentava fugir”, diz ela, erguendo a calça e mostrando uma cicatriz enorme da ponta do pé a metade da perna, um pouco acima do tornozelo. Nas costas, diz ter uma cicatriz bem maior, de queimadura. Não deu tempo de escapar. Os integrantes do Boko Haram ainda entraram na casa, em busca de objetos de valor.
Apesar da forte dor causada pelos estilhaços da explosão, ela conseguiu pular a janela da casa, mas caiu do lado de fora. Desmaiou. As poucas pessoas da vila que conseguiu ver, estavam fugindo, assim como ela. Em meio há tanta coisa ruim, era preferível que a história tivesse terminado aí. Mas, a cicatriz no tornozelo e a morte dos pais não foi a única marca que o Boko Haram deixou em Juliana.
Ela não conseguia levantar. Estava sangrando, e, machucada devido à explosão, acabou se mexendo. Foi quando três homens do grupo fundamentalista se aproximaram. A nigeriana acha que se tivesse ficado parada, eles considerariam que ela estava morta e passariam reto mas viram que ela ainda estava viva, apesar de muito machucada. Juliana, que usualmente conversa de forma tranquila, passa a acelerar sua narrativa, como se quanto mais rápido terminasse, mais rápido fosse esquecer.
Eles a seguraram com força e a empurraram contra o chão. Perguntaram o que ela queria e a ela respondeu que seu único desejo era que eles a deixassem sair dali. Em seguida, outra pergunta. “Você é cristã?”. Sem saída, respondeu que sim. O homem, que pressionava seus dois braços enquanto ela estava deitada no chão, disse que não poderia fazer nada por ela. Juliana tinha a noção que mesmo se mentisse, não conseguiria escapar.
Se sentiu impotente por não ter forças para fugir. Sufocada e com dor, um dos homens sugeriu para os outros que eles saíssem dali. Por um segundo, ela achou que aquilo teria fim.
— Vamos fodê-la antes, disse um dos homens.
Os três a estupraram, um em seguida do outro.
— “O que eu poderia fazer? Eu estava deitada no chão, com sangue no meu corpo. Até hoje, quando lembro, digo para mim mesma: “Não!”. Eu não podia nem gritar. Porque se eu gritasse, todos os outros iriam saber que tinha alguém ali. Eles me disseram: se você gritar, está morta. Então, me calei.
Juliana se calou. Assim como as outras centenas de nigerianas, incluindo as adolescentes e crianças, que se calam diante do Boko Haram. Não gritou, porque além de estar ameaçada de morte, seu maior medo era que outros integrantes se aproximassem e também a estuprassem.
Ela tirava, com os dentes, o resto do esmalte que tinha nas unhas das mãos enquanto relatava o que tinha lhe acontecido. Hábito comum entre algumas mulheres, principalmente em situações de desconforto e ansiedade. Não é para menos. Contava ali, algo que apenas sua irmã caçula sabia. Em muitos países da África, como Nigéria e Congo, as mulheres vítimas de estupro sofrem preconceito, são consideradas “marcadas”.
Meio sem jeito por ter exposto algo tão pessoal, tenta pegar o caminho mais curto para o fim da conversa. Juliana sente sua voz entalada até hoje, o grito que não pode dar, o pedido de ajuda que não pode fazer. Só pensou em Deus. O estupro é apenas uma das atrocidades do Boko Haram.
Em informe anual publicado em abril de 2015, a ONU revelou que o grupo, assim como os extremistas do Estado Islâmico (EI, também conhecido como Daesh), usam a violência sexual como tática de guerra. Os ataques sexuais, não só na Nigéria, mas também no Iraque e na Síria, são atos “totalmente vinculados a objetivos estratégicos, à ideologia e ao financiamento de grupos extremistas”.
Ainda segundo o informe, o estupro é usado como implementação ao recrutamento de jovens, além dos casamentos forçados, escravidão e a venda de mulheres e meninas sequestradas, pontos elencados como centrais ao modus operandi e ideologia do Boko Haram. Outros especialistas dizem que a violência sexual é usada para chamar atenção da comunidade internacional. Juliana, assim como outras mulheres, viraram estáticas da ONU. Até quando?
— Eu ainda lembro do rosto dos três homens que fizeram isso comigo. Não acho que vou conseguir esquecer. Eu lembro, tenho certeza que reconheceria.
Depois do acontecido, Juliana acordou em um hospital. Foi encontrada desmaiada e foi socorrida por pessoas que, até então, não conhecia. Seus anjos da guarda, como se refere à eles, também eram moradores do norte da África, mas não eram muçulmanos, como faz questão de ressaltar. Sua maior preocupação quando acordou e estava internada, cheia de curativos, era a conta do hospital mas seus anjos da guarda tomaram conta disto também.
Antes de sair da Nigéria, se despediu deles, que mudaram-se para Abidjan, na Costa do Marfim. Sem seus pais, e com seus irmãos vivendo em regiões diferentes da África, ligou para um tio que vive nos Estados Unidos pedindo ajuda. Desde o começo deixou claro que não queria ir para terra do Tio Sam e sim para a terra do samba. Seu tio lhe arranjou a documentação necessária e algum dinheiro.
Gostava do Brasil desde sua infância. Diz que as terras de cá são bem sucedidas no futebol e no carnaval, se lembra de como os homens ficavam eufóricos vendo o Ronaldinho jogar. Aos poucos, deixa escapar que aqui era admirava o país por outros motivos. Sabia que muitas modelos importantes ao redor do mundo eram brasileiras, como por exemplo, a Gisele Bündchen e desde criança sonhava em modelar.
Realizou este sonho, dos 18 aos 23 anos. Foi quando aprendeu a usar salto alto. No começo foi difícil, mas hoje desafia qualquer um e diz que pode ficar muito tempo com eles nos pés. Pensava que se viesse para o Brasil antes, poderia treinar e ficar famosa. Seus pais eram muito religiosos para gostar da ideia. Queriam que ela cobrisse tudo. Roupa curta e decotada? Nem pensar.
Depois de muita insistência, ganhou permissão para disputar o concurso de Miss no estado de Delta, na África. O centro de São Paulo não sabe, mas uma Miss Delta State anda por suas ruas. Depois disso, seus pais a fizeram parar. Juliana amava desfilar e modelar. Agora se acha velha demais para a profissão. Pelo menos, diz que agora pode usar o que quer, quando ela quer. As vestimentas são parecidas com as das mulheres brasileiras, então, não se sente culpada.
Outra coisa que Juliana gosta aqui, é que as mulheres podem se separar. Na Nigéria não tem jeito. Se estivesse em seu país, com essa idade, solteira e sem filhos, acredita que perderia até mesmo o direito de ser considerada uma pessoa.
— Lá os maridos batem muito nas mulheres. Sei que aqui também, mas lá é absurdo. Aqui, se eu quiser ter um filho sozinha eu posso. Lá não. Você tem que casar, não tem outra opção. Prefiro o jeito brasileiro. Diz, caindo na gargalhada.
Juliana, atualmente, está namorando um nigeriano que conheceu aqui no Brasil. Ela o descreve como um homem forte, grande e bonito, porém um pouco ciumento para seu gosto. Ele já estava aqui há um ano antes dela chegar. Quando desembarcou nas terras tropicais, Juliana não conhecia ninguém e não tinha lugares para ir, ia apenas ao centro de São Paulo para fazer ligações para sua irmã, quando o avistou de longe pela primeira vez.
Começaram a conversar e marcaram de se encontrar algumas vezes. Logo começaram a se apaixonar. Juliana fala sobre o ciúmes dele, mas também não fica para trás. Não se incomoda com as brasileiras, mas ai de alguma africana se nele encostar.
Aos risos, não quis revelar o nome de seu amado, que a está sustentando por enquanto. Ele trabalha como estilista, desenha roupas para uma confecção. Apesar do momento difícil, ela diz que isso é passageiro. Quando trabalhava como professora, também comprava coisas para ele. É nítido que Juliana não quer depender de ninguém.
Quando chegou, a Miss Delta passava as noites em hotéis pequenos do centro da cidade, com ajuda de seu tio. Agora está morando no bairro Campos Elísios, em um cortiço. O problema, além do quarto pequeno, são os banheiros coletivos e a reação de algumas pessoas que vivem lá.
— Ás vezes, se você é da África, sofre com racismo. Sempre dou um sorriso e falo: “Oi, tudo bem”, para as pessoas que moram ali comigo. Mas sei que algumas pessoas não gostam de mim. Eles me olham com nojo. Se tento falar algo pra eles em português, me corrigem. Outras vezes, ignoram minha presença.
Apesar disso, acredita que as coisas estão indo bem. Está angustiada por conta do desemprego. Acha que as pessoas não a levam muito a sério quando diz que quer trabalhar, mas não vai desistir. Seu objetivo agora é conseguir trabalho em um banco. Disseram a ela que esse tipo de trabalho dá dinheiro e é o que ela precisa no momento.
Foi até o Centro de Apoio ao Trabalhador (CAT) e aguarda para comparecer em algumas entrevistas. Pensamento positivo é sua palavra-chave. De vez em quando, pensa que gostaria de voltar para a Nigéria mas acha que isso nunca será possível.
— Eu era muito próxima da minha mãe. Quando ela morreu, eu não sabia se ia sobreviver. Ela era tudo pra mim. E olha o que eles fizeram com ela… O Boko Haram não pode ser retirado da Nigéria. É como um tumor inoperável.
Quem vê a Juliana sorridente, não consegue imaginar um terço do que ela já passou. Embora as memórias estejam lá, com bom humor, ela reconstrói sua vida. Deixando as coisas no passado, e se preparando para o presente, Juliana corre em cima de seu salto, atravessa as crianças que estão visitando o Museu de Arte Sacra, e chega ao páteo onde estão seus colegas de curso.
Antes de começar a formatura, para qual Juliana estava muito ansiosa, o professor a lembra que ela vai ler uma redação que escreveu em português. Apesar do nervosismo, ela topa apresentar o trabalho. Seu texto é um agradecimento caloroso ao seu professor, que a ensinou o básico para se virar no Brasil.
No final da formatura, todos os refugiados se reuniram para cantar “País Tropical”, de Jorge Benjor. Cerca de 90% da turma é composta por homens. As vozes femininas são poucas mas a voz de Juliana se destaca como a mais alta e animada. Sabe a letra de cor, nem precisa segurar o papel.
Aos poucos, seu corpo se mexe, as palmas começam a bater em sincronia e ela começa a dançar de um lado para o outro, ainda que timidamente. Na hora da confraternização, a Miss Delta tira fotos com o celular e mostra sua redação para seus colegas.
— Faz tempo que não me sentia assim. Não ia em uma festa, com comes e bebes. Não tive dinheiro para comemorar meu aniversário desde que cheguei aqui. Mas agora estou feliz, porque moro em um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, né?