Se a geografia une os dois continentes, a história os separou de uma forma irremediável
Por Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs
Em Roma
Os números são reais e ao mesmo tempo simbólicos. Sempre revelam algo a olho nu, sem dúvida, mas costumam esconder o essencial. Rasgam o véu de situações aparentemente ocultas, mas o mesmo véu invisível tenta dissimular a realidade. Por exemplo, o modo como os governos em geral entendem a mobilidade humana e promovem leis anti-migratórias. Descortinam-se os efeitos sociais de superfície, enquanto procura-se encobrir as causas e as correntes econômicas profundas e subterrâneas.
Desta vez foram 177 imigrantes à deriva das águas do Mediterrâneo. Provenientes da Líbia, foram resgatados em águas malteses pela nave U. Diciotti da Guardia Costiera italiana, em 16 de agosto de 2018. Durante 5 dias, próximo à ilha de Lampedusa, os migrantes se viram prensados por uma queda de braço entre o governo de Malta e da Itália, uma nação jogando o “problema” para a outra. O capitão da nave faz apelo à corte de Bruxelas, em vista de um acordo com os países europeus. Estes, porém, limitam-se a um estridente silêncio! Daí a ameaça de reconduzí-los à Líbia, mas easse país não ofrece segurança aos migrantes. No dia 21 de agosto, a nave atraca no porto italiano de Catania para “escala técnica”, mas o Ministro Matteo Salvini proibe o desembarque. Três dias depois, dia 25 de agosto, intervém o Ministério Público: todos os imigrantes devem desembarcar e Matteo Salvini é indagado por sequestro de pessoas.
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Imagem simbólica da política migratória mundial, cada vez mais restrita e intolerante. Um punhado de imigrantes à deriva entre dois continentes tão próximos e tão distantes! Olhando para trás, deparam-se com a África, fazendo vir à tona a lembrança da pobreza, da violência e a da guerra… O medo, a fuga, a família fragmentada, os obstáculos sem fim, o cansaço. Olhando para a frente, vislumbram a Europa, onde, misturada a uma teimosa esperança, batem-se com a intransigência e a indiferença de governos que promovem políticas anti-migratórias. Como o Primeiro Ministro italiano, Giuseppe Conte, o qual, em visita à Casa Branca nos dias 30 e 31 de julho, num encontro com Donald Trump, foi elogiado por este último pela forma como vem conduzindo a questão das migrações na Itália.
Os próprios imigrantes temem o retorno à Líbia. Gastaram os últimos centavos que possuíam para a travessia do Mediterrâneo e, além disso, sabem o que lhes espera naquele país. O passado recente persiste sobre suas cabeças como um sombrio pesadelo. Campos de refugiados em condições desumanas e extremamente precárias, maus tratos e serviços que beiram a escravidão pura e simples. Mas, se lá ficou o pesadelo, na Europa restam as ruínas de um sonho ameaçado pela incerteza. E pior ainda, correm notícias da morte de companheiros que os precederam. De fato, no dia 6 de agosto/2018, na região de Foggia, sul da Itália, um furgão repleto de imigrantes bate de frente com um caminhão: 12 mortos. Os “braccianti” (trabalhadores sazonais migrantes que fazem a colheita do tomante) retornavam de um turno de 12 horas diárias. Outros 4 haviam morrido dias antes, num acidente idêntico. Segundo testemunhas, os furgões que transportam os trabalhadores temporários circulam em péssimas condições de segurança.
Europa e África, dois continentes tão próximos e tão distantes. Entre ambos, apenas as águas do mar Mediterrâneo. A distância de uma costa a outra não passa de uns 15 quilômetros no estreito de Gibraltar. Entretanto, se a geografia os une, a história os separou de uma forma irremediável, seja através do colonialismo que traficou enormes riquezas de um continente para o outro, seja através da famigerada escravidão afro-americana que traficou milhões de seres humanos como mão-de-obra para o trabalho do eito e da mina nas terras novas do ultramar. Hoje como no passado, as mesmas águas que os avizinham também os ditanciam. Águas traiçoeiras, onde, de acordo com dados da ONU, somente no ano em curso, 1,5 mil imigrantes se afogaram e foram sepultados.
Em séculos remotos – escreve o historiador Fernand Braudel, no livro Il Mediterraneo, lo spazio, la storia, gli uomini, le tradizioni, Ed. Bompiani, Firenze, 2017 – esse mar serviu de encruzilhada para intercâmbio de mercadorias, costumes, culturas e valores entre povos e nações muito diversos, enriquecendo uns e outros. Serviu igualmente como campo de tensões políticas, confrontos e batalhas, que deixaram milhares de mortos. Não é de hoje que o Mediterrâneo é tido como cemitério. Nos tempos atuais, além de encruzilhada dos povos, suas águas poderíam converter-se em uma “ponte” para a travessia de pessoas e famílias que buscam futuro mais promissor e uma nova pátria. Segue sendo, poém, um “muro” cada vez mais intransponível. Para concluir com o sonho manifestado com insistência pelo Papa Francisco, permanece o desafio de passar da “globalização da indiferença à cultura da solidariedade”, o que exige mudanças profundas e urgentes nas relações internacionais em geral, e em particular na legislação migratória de cada país.