Voluntários brasileiros no país relatam conflitos com a população mais pobre, situação de miséria e descaso por parte do governo
Por Beatriz Trevisan* e Luiza Tozzato*
Em São Paulo (SP)
Pedro Pilecco, 19, estudante de engenharia química da Universidade Federal de Santa Maria (UFMS), no Rio Grande do Sul, aterrissou no Cairo em 2017 para um trabalho voluntário junto a crianças pobres. Lá, ajudou em orfanatos e deu aulas de inglês para filhos de refugiados. O intercâmbio foi organizado pela agência Aiesec, uma organização não governamental administrada por estudantes, que promove programas de trabalho voluntário no mundo inteiro. No Egito, Pilleco atuou junto à ONG Tadamon, um Centro Multicultural de Refugiados.
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O estudante brasileiro ficou impressionado com a situação de pobreza dos refugiados árabes e africanos que chegam ao Egito fugindo de guerras, perseguições ou da fome. Milhares de pessoas, em sua maioria fugindo da Síria, mas também do Iraque, Etiópia, Somália, Sudão do Sul e Eritreia, vivem hoje nas periferias da capital egípcia e em campos improvisados. Pilecco observa que o apoio dado pelo governo ao orfanato egípcio era “de primeiro mundo” se comparado ao atendimento às crianças refugiadas. “Elas não recebiam nada”, lamentou. “Os egípcios não são ‘braços abertos’, não gostam muito dos refugiados, tanto que eles vivem segregados e não são bem tratados”.
Segundo dados do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), o número de refugiados no país aproxima-se dos 300 mil, sendo que cerca de 60 mil deles ainda aguardam na fila de solicitação de asilo. Os dados do ACNUR contrastam com o anunciado em 2016 pelo presidente Abdel Fatah al-Sissi, que alertou para a quantidade de 5 milhões de refugiados no Egito. No entanto, essa soma se mistura com outros migrantes no país – em sua maioria sudaneses e muitos vivendo na região há gerações.
O professor de história e atualidades Daniel Pereira, que acompanha a situação para suas aulas no Curso Pré-Vestibular Poliedro, explica que o Egito é um dos países mais estáveis da região e tem uma economia diversificada, o que acaba atraindo um número maior de imigrantes. “A quantidade de pessoas que estão chegando no Egito é muito maior do que o país pode suportar. O que resulta na história já conhecida: o governo não dá o suporte necessário a essa parcela da população, fazendo com que eles sejam dependentes de ONG’s”, comenta.
A taxa de desemprego no Egito é de 11% da força de trabalho, mas, de acordo com a ONU, 30% da população vive na pobreza, e a chegada de estrangeiros gera grande tensão, principalmente nas áreas mais carentes. O Cairo possui uma das maiores populações refugiadas urbanas do mundo, e ela se concentra justamente nas regiões mais marginalizadas, levando a disputas por recursos com os vizinhos egípcios. Há relatos de conflitos e de racismo. “Na verdade, essa imagem de local onde há emprego é uma ilusão, então o refugiado acaba disputando espaço na economia justamente com a população mais pobre”, explica Pereira.
Tasnim Mohamed, 22 anos, estudante egípcia de artes plásticas, membro da equipe da Aiesec Egito, diz que o trabalho da Tadamon é dar apoio aos refugiados no primeiro ano de vida no país. A organização oferece abrigos, escolas e serviços médicos e psicológicos. “O governo egípcio não tem um papel importante para os refugiados, toda a ajuda que eles recebem é do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) e das ONGs locais”, explica Tasnim.
A voluntária egípcia diz que os refugiados têm histórias de vida muito tristes. Uma das que mais a marcou foi a da etíope Farida, hoje com 30 anos. Ela se perdeu de sua família quando tinha 7 anos, foi estuprada até os 15, teve um filho, mas o perdeu na guerra civil do seu país. Tentou atravessar o mar em busca de uma nova vida no Oriente Médio e acabou sendo sequestrada e largada na Arábia Saudita. De lá, se refugiou no Egito onde vive há cerca de 2 anos. Encontrou ajuda na Tadamon. Na ONG, Farida participou de sessões de acompanhamento psicológico e empoderamento feminino. No início, não conseguia nem falar. “Em uma das sessões, ela desenhou um mapa do caminho que queria seguir. Pedimos para pendurá-lo na parede de sua moradia, então ela riu dizendo ‘não tenho uma parede ou até mesmo um tijolo, então vou pendurá-lo na ONG'”, contou Tasnim.
As dificuldades de Farida no Egito mostram o cenário vulnerável dos refugiados. Tal situação foi agravada por uma lei aprovada pelo parlamento em 2017 e ratificada pelo presidente reeleito, Abdel Fatah al-Sissi. A nova legislação regulamenta a atuação das ONGs e proíbe o financiamento externo – o que, para grupos ativistas e para a Anistia Internacional, é uma forma de repressão dos direitos humanos porque restringe a ajuda humanitária e o trabalho voluntário.
Tasnim diz que a lei criou várias dificuldades para a Tadamon e outras organizações locais. “Se o governo descobrisse qualquer levantamento de fundo, principalmente estrangeiro, colocava a ONG sobre investigação e podia levá-la a fechar. Lembro de isso ter acontecido com outras organizações”.
Marcelo Mariano, 22 anos, formado em relações internacionais pela PUC-GO, trabalhou no Cairo em 2017 como voluntário na Tadamon. Ele acredita que trabalho voluntário seja efetivo e auxilia bastante na situação, mas não é “nem de longe o suficiente”, porque deveria haver maior cooperação do governo.
O professor Daniel Pereira esclarece que as ONGs são alvos de muita desconfiança de governos. “Em especial dos governos autoritários, porque elas podem ser usadas como uma forma de espionar e podem também servir de fachada para outros tipos de organizações políticas. Além de poderem trazer ideias de fora que nem sempre são bem vistas”.
As suspeitas se estendem também a voluntários estrangeiros. Pilecco sentiu a pressão. Segundo ele, os refugiados podem ser mais hospitaleiros que os egípcios. “Eles não entendiam que a gente era voluntário e ia trabalhar em uma ONG de refugiados, então não eram tão receptivos”.
O racismo também é um problema frequente. Pilecco conta que, ao chegar ao Egito, uma voluntária brasileira negra foi levada para uma sala separada no aeroporto e obrigada pelos agentes de segurança a retirar a roupa. “No entanto, o exemplo mais claro de racismo aconteceu quando um egípcio cuspiu nela no metrô”, relata. “Quando comentei com meus colegas egípcios na ONG, eles disseram que cuspir em negros era uma realidade recorrente lá”.
A estudante de direito da USP Julia Borges, 20 anos, que também atuou como voluntária no país, sentiu como a cor de pele é determinante para a integração na região. Lembra que as reclamações sobre isso eram constantes na ONG. Segundo ela, uma das explicações para o racimo frequente é o fato de o Egito não se enxergar como um país africano, embora esteja na África Mediterrânea. A discriminação contra os negros já é vista como comum. Júlia salienta que a maioria das pessoas acolhidas pela ONG era negra e encontrava na Tadamon uma espécie de refúgio da extrema hostilidade que sofriam.
A egípcia Tasnim confirma. “Os negros africanos levam tempo para se encaixar na comunidade egípcia e enfrentam racismo por serem diferentes da população local. Os sírios podem ter negócios aqui, especialmente na indústria de alimentos. Eles conseguem acesso à educação no país e o fato de falarem árabe os favorece”.
Beatriz Trevisan e Luiza Tozzato são estudantes do terceiro ano do curso de Jornalismo na Universidade Mackenzie