Por Pe. Alfredo J. Gonçalves
Neste outono da pandemia Covid-19, digamos assim, os três conceitos do título – cura, cuidado e cultivo – requerem especial atenção. Mas o requerem de forma particular para as pessoas que, já antes excluídas, invisíveis e descartáveis, tornaram-se ainda mais vulneráveis no transcurso do flagelo. De acordo com dados do IBGE, o país atingiu no último mês de abril o recorde de extrema pobreza, com 14,5 milhões de famílias nessa situação, o que representa um número superior a 40 milhões de pessoas. O montante de famílias na miséria é o maior desde o início dos registros disponíveis do Ministério da Cidadania, a partir de agosto de 2012. Isso sem levar em conta os que se encontram no mercado informal através dos “bicos” mais insuspeitáveis, bem como os chamados “desalentados”.
Evidente que essa vulnerabilidade recai, em primeiro lugar, sobre os ombros dos migrantes e refugiados, com efeitos desastrosos para aqueles que estão privados da documentação regular nos países em que a pandemia improvisamente os surpreendeu. Conceitos como “imobilização forçada” ou “fronteiras engessadas” já se fazem ouvir por parte de alguns estudiosos do tema. Praticamente proibida a migração legal via aeroporto, com todos os papéis em dia, caravanas e multidões de forasteiros passaram a pressionar as fronteiras entre os países, de tal forma que essas zonas fronteiriças acabaram se convertendo, por vezes, em campos de espera incerta e indefinida, o que gerou situações de extrema precariedade. Líbia, Grécia, Turquia, México, Guatemala, Colômbia, são alguns dos exemplos emblemáticos.
Voltemos ao título. A cura tem a ver com doença. E esta, por sua vez, representa algum tipo de disfunção, seja ela de caráter físico, mental, emocional, psíquico ou espiritual. No caso dos que se encontram longe da terra natal e da família, as feridas são inúmeras e não raro com poucas chances de cicatrizar. Desnecessário acrescentar que a situação mais trágica é aquela vivida pelas vítimas do tráfico de seres humanos. Mesmo sem cair no sensacionalismo de apresentar tão somente os casos mais extremos, os migrantes e refugiados, pelo fato de se moverem “fora de casa e da pátria”, além das dificuldades para equilibrar as necessidades cotidianas, ainda têm de lidar com a quebra das referências que os sustentavam no país de origem. Outra visão de mundo, outra cultura e outros valores se apresentam como obstáculos a serem superados. Daí os rostos desfigurados, como espelho vivo de vidas e de sonhos interrompidos.
O cuidado representa a tentativa de prevenir contra a vicissitudes e adversidades da existência de qualquer ser humano. No caso dos migrantes e refugiados, evidentemente, tais turbulências barram o caminho de forma redobrada. As sombras e tempestades sempre se lhes apresentam com maior violência e impacto. Na exata medida em que a legislação migratória de cada país fecha a porta de uma permanência regular, cerra igualmente a porta do acesso ao mercado de trabalho. E esta última porta, por seu lado, quando impossibilitado o seu cruzamento, impede a abertura de uma série de outras vias, ligadas à saúde, à educação, à participação política e aos direitos humanos básicos. Em todas as direções que se dirija, o migrante encontrará barreiras insuperáveis. Não bastasse isso, tende a virar “bode expiatório”, tropeçando diversas formas de hostilidade, como preconceito, discriminação, racismo e xenofobia.
O cultivo comporta a preparação do terreno e da devida nutrição para um crescimento sadio e equilibrado. O princípio vale para as plantas e os animais, mas vale também, e sobretudo, para os seres humanos. Depois da existência quebrada, das referências fragmentadas e dos sonhos interrompidos, como recomeçar a vida em solo estranho? Tendo cortado as raízes originárias, as quais muitas vezes permaneceram por longo período expostas às intempéries, qual o melhor modo de replantá-las em novo terreno? O cultivo, neste caso, requer a delicadeza de quem lida com flores, com crianças ou com vasos partidos. Mais do que isso. Se a habilidade para juntar e colar os cacos de um objeto quebrado deve ser extrema, quanto maior habilidade e criatividade para cimentar os fragmentos doloridos de uma personalidade batida pelos ventos da migração! Vê-se bem que cura, cuidado e cultivo não são gavetas incomunicáveis. Antes, são dimensões que caminham de mãos dadas, uma reforçando e enriquecendo a outra.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, é vice-presidente do SPM