Direitos aprovados via Lei de Migração,ainda são inacessíveis para migrantes no Brasil
Por Raquel Jevarauskas e Renata Rossi Ignácio
A Lei de Migração (Lei nº 13.445/17), com destaque para o artigo 3º, assegura o acesso igualitário e livre da população migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, moradia, assistência jurídica integral pública (de maneira mais conhecida, destacam-se os trabalhos da Defensoria Pública da União e do Ministério Público Federal no que tange à regularização, controle judicial e outros procedimentos migratórios), trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social.
Na prática, entretanto, é sabido (especialmente pela sociedade civil que lida com o tema e os órgãos públicos citados) que são impostos diversos obstáculos para que a população migrante tenha acesso de fato aos seus direitos, obstáculos que impedem uma efetiva integração social dessas pessoas à vida local. Apesar de a regularização migratória ser o ponto de partida para essa integração, muitas vezes o que vemos é a dificuldade de acesso até a serviços e direitos que não demandam a regularização para o seu gozo. O direito à moradia, à educação, ao trabalho, à saúde, à assistência social, dentre outros direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais são direitos fundamentais básicos assegurados a todas as pessoas que estão no Brasil, sendo nacionais ou imigrantes, de modo que as pessoas em situação de mobilidade deveriam ter igual acesso a políticas públicas básicas, que lhes garantam uma vida digna, desde o momento de chegada ao Brasil.
Entretanto, casos práticos demonstram como a realidade na teoria e na prática são díspares. No último ano, a pandemia exacerbou e agravou os impedimentos enfrentados pela população migrante no acesso aos serviços públicos, de modo que a xenofobia e o racismo estruturais, as ameaças e a falta de assistência e humanidade nos atendimentos passaram a ser vistas com mais frequência. Uma das questões de destaque é o acesso aos serviços bancários, movimento conhecido como “bancarização” e, como visto, tido como direito pela Lei de Migração. Antes do início da pandemia, a inserção laboral das pessoas imigrantes já era extremamente dificultada pelos obstáculos impostos pelos bancos, que não aceitavam, discricionária e infundadamente, seus documentos. Com o início da pandemia, esse movimento teve aumento expressivo no contexto da disponibilização do auxílio emergencial à população vulnerável.
Sem embargo, considerando que muitas pessoas migrantes e em condição de refúgio, em momento anterior à crise causada pela COVID-19, já não tinham o acesso a esse direito, a impossibilidade de acessar o auxílio aumentou as desigualdades e o nível de pobreza dessa população em situação vulnerável. Mesmo as pessoas migrantes que conseguiram abrir as suas contas tiveram dificuldades em acessar o auxílio pela discricionariedade do governo ao analisar seus documentos.
Caso emblemático recente é o de L.K.C.U, mulher venezuelana que, apesar de cumprir todos os requisitos para receber o benefício financeiro, teve o seu auxílio emergencial negado pela Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social (DATAPREV) e bloqueado pela Caixa Econômica Federal (CEF) após receber a 4ª parcela no valor de R$600,00, com a justificativa de que os órgãos de controle haviam identificado “indícios” de que ela não atenderia aos critérios estabelecidos para a concessão do Auxílio Emergencial, sem nenhuma explicação de quais critérios estavam se referindo. Após o conhecimento deste caso, o Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC) orientou e amparou na concretização de seu direito após ingressar com ação no Juizado Especial Federal, processo este que tramitou por um período de 147 dias até a sentença do Juiz ser favorável .
Outro caso emblemático e preocupante que ilustra os empecilhos enfrentados no acesso aos serviços bancários é o de E.T.A.A., mulher venezuelana que sofreu um típico ato de xenofobia e racismo quando foi receber o seguro desemprego a que tem direito em uma agência da CEF. Funcionários públicos do banco questionaram a validade de seus documentos e se recusaram a atendê-la, sendo hostis e discriminatórios ao ameaçá-la e coagi-la a se retirar da agência. E.T.A.A, após ser atendida e direcionada pelo CDHIC, entrou com uma ação judicial através da Defensoria Pública da União e, após uma audiência que retratou a triste realidade de opressão e exclusão que as pessoas migrantes enfrentam no Brasil, conseguiu uma indenização de R$ 4.000,00 por danos morais pelo banco, ao invés do valor estipulado de R$ 62.700,00 previsto na petição inicial. Isso demonstra a banalização da xenofobia, e a falta de compreensão dos abalos psicológicos que causa às vítimas, que envolve constrangimento, vexame e humilhação. O valor baixo de indenização ilustra que o dano foi considerado leve, e a própria autora do crime, CEF, ao longo da audiência deixou claro que não havia entendido a dimensão dos impactos psicológicos que a humilhação vivenciada no banco havia causado à E.T.A.A., citando em alguns momentos que não havia sido “nada”, que “não haveria motivo” para a ação.
Por fim, destaca-se o caso de E.J. que está sendo acompanhado pelo CDHIC desde o mês de abril de 2020, e que também comprova a dificuldade da população migrante de acessar os seus direitos em diversas esferas. Neste primeiro momento, é importante citar que a emissão da 1ª via do seu Cadastro de Pessoa Física (CPF) só foi possível após 40 dias de tentativas em diálogo com a Receita Federal, considerando que as burocracias tecnológicas excluem não apenas a população migrante, mas sim, um número que ultrapassa 17 milhões de nacionais.
Durante o acompanhamento da equipe multidisciplinar do CDHIC, E. J. conseguiu fazer a solicitação do auxílio emergencial e, após a aprovação do benefício, enfrentou diversos obstáculos e violações de direitos para conseguir usufruir do auxílio. Por motivos pessoais, precisou mudar de cidade e saiu do Pará – onde já tinha conseguido sacar 03 parcelas do benefício social – com destino ao Acre, para buscar melhores condições de vida. Durante a sua estadia no estado do Acre, o CDHIC foi acionado e informado que todas as Agências da Caixa Econômica Federal que estavam no mesmo território que o E. J. se negaram a liberar o seu auxílio emergencial devido a sua indocumentação. Neste período, a organização social enviou um ofício às agências da cidade juntamente com os ofícios e notas técnicas da Defensoria Pública da União que informam sobre o acesso ao benefício social independentemente de regularização migratória.
Indignado com a realidade excludente de acesso, E.J. precisou viajar até o estado de São Paulo para conseguir ter acesso pleno ao seu benefício após 05 meses tentando dialogar com as agências bancárias do estado do Acre. A violação de direitos humanos se repete todos os dias em diferentes níveis e em diferentes grupos minoritários.
Estes são apenas alguns dentre milhares de casos que retratam a discriminação, xenofobia e dificuldades enfrentados pelas pessoas migrantes ao tentar acesso os serviços bancários e o acesso à justiça no Brasil. Apesar de os casos de L.K.C.U. e E.T.A.A. serem considerados uma “vitória” por terem entrado na justiça e terem recebido sentença favorável ou indenização por danos morais, são poucos os casos de pessoas migrantes que fazem jus ao acesso à justiça, seja por falta de informação em relação aos direitos que possuem, seja por medo, seja por barreiras e falta de estímulo institucionais.
A Constituição Federal de 1988, a Lei de Migração e os tratados internacionais de direitos humanos em matéria migratória determinam que cabe ao Estado assegurar direitos como o do acesso à justiça e devido processo legal. As pessoas migrantes já tinham dificuldade em acessar esses direitos, mas com a pandemia isso se dimensionou – exemplo claro é a Portaria nº 652 de 2021, que carrega vícios de ilegalidade, assim como as 27 Portarias que a precederam. Preocupa, em especial, o artigo 8º, o qual determina como sanções para o seu descumprimento a inabilitação do pedido de refúgio e as deportações imediatas. Sanções como essas são totalmente inconstitucionais, ilegais e inconvencionais, pois não garantem o direito à defesa e ao devido processo legal, estando em desacordo com os procedimentos administrativos estabelecidos na Lei de Migração brasileira e em tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.
Restam evidentes as violações e desafios enfrentados pela população imigrante no Brasil. É indispensável que se garantam direitos como o da bancarização e o direito de acesso à justiça para essa população, para que haja a sua efetiva integração em território nacional. Válido lembrar que, segundo a jurisprudência internacional, os imigrantes, mesmo os indocumentados, possuem os direitos à ampla defesa e ao devido processo legal. Ainda, a Lei nº 13.445/17 evidencia, em seu artigo 4º, que é garantida a prestação de assistência social e humanitária a pessoas migrantes, independentemente de sua situação jurídica ou regularidade migratória, e o inciso XIV aponta especificamente o direito à abertura de conta bancária a todas as pessoas migrantes.
A Defensoria Pública da União, na Nota Técnica (NT) nº 9, também ressaltou a necessidade da garantia de assistência social a todas as pessoas que cumprirem com os requisitos, independente da nacionalidade ou situação migratória, incluindo o acesso a abertura de conta bancária e o acesso ao auxílio emergencial; especificamente em relação às pessoas venezuelanas, a NT traz que “quanto ao acesso de pessoas migrantes indocumentadas a serviços bancários em geral, considera-se aplicável o mesmo entendimento já firmado quanto ao direito de percepção de auxílio-emergencial por meio de atendimento presencial junto às agências da CEF – Caixa Econômica Federal. Ou seja, a instituição bancária pode utilizar como documento de identificação suficiente a cédula de identidade venezuelana para a abertura de conta desde que a pessoa migrante possua CPF, possibilidade já descrita no item anterior, e não há vedação legal ou regulamentar a essa hipótese”.
A discriminação, o racismo e a xenofobia enfrentados nos atendimentos em serviços públicos são normalmente disfarçados ou calados, sendo necessário expor esses casos para abordar a importância da proteção dos direitos e a construção de políticas inclusivas e igualitárias, especialmente em tempos de calamidade pública em que pessoas são ameaçadas e até mortas nas ruas, em estabelecimentos comerciais, em suas casas, ou em inúmeros outros espaços públicos e privados, reforçando a urgência de uma abordagem com um recorte racial e étnico.
A luta pela efetivação dos direitos básicos, através de serviços públicos não discriminatórios, e o enfrentamento ao racismo e xenofobia são desafios centrais. A Lei de Migração evidencia a “universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos”, bem como o “repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e quaisquer formas de discriminação”. Reconhece também a migração e o desenvolvimento humano no local de origem como direitos inalienáveis de todas as pessoas, de modo que as políticas migratórias brasileiras não podem criminalizar a migração ou impedir o acesso aos serviços públicos em virtude de critérios discriminatórios. A lógica da discricionariedade e a impossibilidade de vislumbre da ampla defesa e do contraditória deveriam ter sido abolidos desde a revogação do Estatuto do Estrangeiro, mas na prática o que se vê é a perpetuação da estigmatização e uma resposta à migração como uma ameaça à soberania e à ordem pública nacionais.
Casos como o de E.T.A.A., L.K.C.U. e E.J. devem ser debatidos, sendo apenas exemplos de situações enfrentadas recorrentemente pela população migrante residente no Brasil. No cenário de um governo de extrema direita, que se pauta em políticas anti-direitos humanos, cabe à sociedade civil, academia, órgãos públicos e mídia unir esforços para combater e visibilizar a xenofobia e racismo estruturais que se perpetuam no país. Segundo a congolesa Hortense Mbuyi, representante do Conselho Municipal de Imigrantes em São Paulo, “O Brasil recebe, mas o Brasil não acolhe”.
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