Por Pe. Alfredo J. Gonçalves
Da mesma forma que outras dimensões da existência humana, o fenômeno migratório também é campo de ambiguidade e contradição. Os deslocamentos massivos de pessoas, em sua grande maioria, costumam ser provocados por crises, ao mesmo tempo que eles mesmos podem causá-las. Toda e qualquer crise, por sua vez, seja de queda ou de ascensão, representa um campo minado. Nela, a quietude é quebrada, instala-se o movimento e a mudança. De igual maneira que a água, através do movimento, tende a se tornar mais torva ou mais limpa, a chamada “crise migratória” descortina horizontes tanto para novas oportunidades quanto para viciados e novos oportunismos.
Tudo começa pelos caminhos e pelas fronteiras. Uns e outras, no transcorrer da travessia, são normalmente crivados de pedras e espinhos, ao mesmo tempo árduos e inóspitos. Terra de todos, e terra de ninguém; terra de variadas línguas e linguagens, várias artes e moedas, vários costumes e credos, vários hinos e bandeiras! Jogos de comércio e mercadorias circulam como o vento. Ali se cruzam e recruzam distintos povos, culturas e nações. Encruzilhada rica e complexa, múltipla e plural, o que requer redobrada atenção e estratégia. Daí os olhos abertos, os bolsos fechados e os sorrisos medidos. Os outros deixam de ser amigos ou inimigos, são apenas diferentes. Valores e contravalores colidem, fundindo-se ou entrelaçando-se diferenciadamente. O que não faltam são atalhos, em geral batidos por riscos imprevistos.
Os complexos limítrofes, quer sejam mares, desertos ou florestas, oferecem grande variedade de escolhas e, contemporaneamente, reduzidas chances de acerto. Olhares perspicazes (quando não vorazes) espreitam por toda parte. Enquanto houver um dólar a ganhar, um que seja, haverá alguém disposto a tudo. Tráfico, de um lado, e solidariedade, de outro, tropeçam reciprocamente, sendo que aquele tende a ser mais veloz e sagaz do que esta última. Não são poucas as mãos que se estendem: umas desejosas de oferecer ao caminhante alguma alternativa para recomeçar, outras colhendo sorrateiramente a oportunidade de faturar com sua ingenuidade ou desconhecimento. Em poucas palavras, nos momentos de recuperação ou de decadência, oportunidades facilmente se convertem em oportunismos.
Paradoxalmente, muitas vezes a própria rede de apoio aos migrantes, que pode ser familiar, conterrânea ou de amizade, reproduz essa ambiguidade, o que nem sempre é feito de má fé. O desejo de ajudar na travessia ou na chegada, com a vontade de apoiar, pode acabar infantilizando o recém-chegado. Em lugar de mostrar o leque de opções e favorecer uma escolha madura, termina por reduzi-lo a mero dependente daqueles que já estão integrados e estabelecidos. Outras vezes, prevalece justamente a intenção pura e simples de explorar a mão-de-obra dos novatos, mantendo-os “prisioneiros” de um sistema de produção e comércio clandestino, subterrâneo, e manipulado pelos migrantes mais antigos, tenham eles ou não relações estreitas de parentesco. Ao invés de descortinar novas oportunidades aos que acabam de desembarcar, cultiva-se um tipo perverso de oportunismo, onde a inexperiência os torna mais vulneráveis.
Mais grave é que, enquanto essa rede familiar ou próxima ao migrante sofre de certa ambiguidade, causando uma dependência que pode determinar negativamente seu projeto migratório, outras redes vão se criando e se multiplicando pelas estradas e fronteiras com o único objetivo de extorquir até o último centavo o minguado dinheiro que porventura ele traz consigo. Uma vez mais, o oportunismo de uns acarreta a desgraça de outros. Convém ter presente, de outro lado, que ambos os tipos de rede podem se cruzar em algum ponto da trama, a primeira contribuindo veladamente com a segunda. O fato é que, quando o indivíduo, com ou sem a família, se põe em marcha, faz mover uma série de oportunistas de que ele é a principal vítima. Infelizmente, as rotas dos migrantes ou os corredores migratórios raramente escapam a esse tráfico humano. Ele infesta o caminho como os mosquitos infestam o sono e a paz.
Felizmente, por outro lado, o mesmo ato de migrar também abre oportunidades para avanços históricos. Aqui o migrante figura como profeta, sujeito e protagonista da trajetória humana. Ao atirar-se à estrada, consciente ou inconscientemente, fazer marchar a própria história humana. Na terra de onde nasceu, levanta a denúncia dos países incapazes de conferir trabalho e dignidade a seus cidadãos; nos lugares de passagem e de trânsito, põe a nu o preconceito, xenofobia, discriminação e intolerância de populações hostis; no destino, desnuda a assimetria que leva aos deslocamentos forçados e clama por mudanças estruturais.
Sobre o autor
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, é assessor do SPM
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