Por Marcia Vera Espinoza
(Escola de Geografia, Queen Mary University, Londres)
Gisela P. Zapata
(Dep. de Demografia, Universidade Federal de Minas Gerais)
Luciana Gandini
(Instituto de Investigaciones Jurídicas, Univ. Nacional Autónoma de México)
Na América Latina, os impactos da Covid-19 têm tido ampla repercussão. As medidas de confinamento e distanciamento físico implementadas para mitigar a propagação do vírus levaram as economias à beira do colapso e impactaram negativamente as estratégias de subsistência das pessoas, testando a liderança governamental e exacerbando as desigualdades estruturais que historicamente afetaram a região.
As populações migrantes e refugiadas estão entre as mais afetadas pela pandemia na América Latina. Como parte de um projeto regional e interdisciplinar em andamento, destinado a explorar os impactos da Covid-19 e das respostas governamentais sobre a vida de migrantes e refugiados[1], argumentamos que as medidas tomadas, particularmente o fechamento de fronteiras e o confinamento, exacerbaram a precariedade e a vulnerabilidade vivida por muitos migrantes na região.
Isto se deve aos altos índices de informalidade e insegurança laboral, condições de vida precárias e de superlotação, acesso limitado a serviços de saúde e previdência social destas populações, entre outros fatores. Portanto, não só as populações migrantes e refugiadas são mais vulneráveis aos riscos associados ao vírus, mas as respostas governamentais à crise também aprofundaram as desigualdades e disparidades pré-existentes entre elas e a população nativa, no que diz respeito aos direitos trabalhistas, de habitação e de saúde.
Neste contexto, a pandemia está reconfigurando a já mutável dinâmica da mobilidade na região e produzindo novos padrões de migração com causas e consequências concomitantes: uma espécie de “mobilidade na imobilidade”.
Em particular, o contexto sem precedentes de restrições fronteiriças e medidas de mitigação da pandemia levou a dois processos contraditórios, distintos mas inter-relacionados: o retorno e a mobilidade forçada.
Por um lado, a exacerbação das já precárias condições de vida das pessoas migrantes os tem levado, em muitos casos, a ações extraordinárias para garantir sua subsistência, resultando em retornos massivos – muitos deles a pé – para seus países de origem em contextos de crise ou estratégias de re-emigração para outros destinos, a nível nacional ou internacional.
Por outro lado, a região também tem testemunhado padrões de imobilidade involuntária/forçada, fomentados por medidas como o aumento das deportações expressas – muitas vezes sem o devido processo – e pelas limitações aos movimentos transfronteiriços e à busca de proteção internacional impostas pelo fechamento de fronteiras.
Exemplos destas novas tendências são abundantes. Alguns dos primeiros a retornar do Chile foram migrantes de origem boliviana e peruana, quando as medidas de confinamento resultaram em fechamento de postos de trabalho e perda de empregos. Incapazes de retornar aos seus países de origem por causa do fechamento da fronteira, essas pessoas ficaram presas em cidades fronteiriças esperando a oportunidade de voltar.
Um grupo de 50 peruanos começou a caminhar de Santiago do Chile para o norte do país, determinados a percorrer mais de 2.000 quilômetros para atrair a atenção da mídia e a ajuda do governo peruano a fim de chegar ao seu país de origem – recentemente, Bolívia e Peru acordaram repatriar alguns dos seus cidadãos em coordenação com as autoridades chilenas.
Episódios semelhantes também têm sido documentados entre migrantes de origem paraguaia no Brasil, com centenas deles presos na ponte que liga os dois países nas Cataratas do Iguaçu, sem máscaras e em condições sanitárias precárias.
O retorno mais dramático tem sido o dos venezuelanos. A pandemia da Covid-19 atingiu a América Latina em meio ao maior deslocamento humano da história recente da região, que, desde 2014, já levou mais de 5 milhões de pessoas a fugir da crise social, econômica e política do país.
Com a Covid-19 ameaçando sua subsistência, milhares de migrantes residentes na Colômbia, Equador, Chile e Peru, que dependiam do trabalho informal para sobreviver, estão empreendendo perigosas viagens de volta a seu país de origem, mesmo quando o país continua atolado em uma crise aparentemente interminável.
Dadas as medidas obrigatórias de distanciamento físico implementadas no país, a Unidade de Migração do governo, em coordenação com os governos locais, estabeleceu um “corredor humanitário” para garantir o retorno seguro e voluntário daqueles que desejam retornar à Venezuela.
Por sua vez, os Protocolos de Proteção ao Migrante – também conhecidos como Programa de Permanência no México (um acordo que permite aos Estados Unidos de enviar os solicitantes de asilo não-mexicanos de volta ao México enquanto tramitam os seus processos) — tem consequências ainda mais graves: Mais de 14 mil solicitantes de asilo – a maioria da América Central – estão presos em 11 cidades fronteiriças no norte do México devido à atual suspensão do programa. Muitos deles não têm onde morar porque os abrigos reduziram sua capacidade para cumprir as medidas de higiene e distanciamento impostas pela pandemia.
Aqueles que foram deportados dos Estados Unidos estão em uma situação parecida. Apesar do fechamento das fronteiras e da suspensão do tráfego não essencial devido a um acordo entre os Estados Unidos e o México, as deportações não pararam durante a pandemia.
Atualmente, parte dessa população de deportados está se deslocando para outras cidades mexicanas em busca de melhores condições de vida, inclusive abandonando seus pedidos de asilo e se expondo a maiores condições de vulnerabilidade.
“América Latina hoje tem cerca de 12 milhões de migrantes e refugiados, em grande parte como resultado das crescentes restrições migratórias adotadas nos países do Norte e da crescente externalização das fronteiras”
Embora algumas dessas dinâmicas também são observadas em outras partes do mundo, nos países da América Latina elas parecem tomar um rumo perigoso, além de gerar questionamentos sobre seus impactos na vida de migrantes, incluindo refugiados, principalmente em quesitos como o acesso efetivo a direitos sociais e econômicos, perspectivas de integração, além das possíveis mudanças na governança da migração regional no pós- pandemia.
A nova normalidade pós-pandêmica
Quando a pandemia da Covid-19 chegou à América Latina, a dinâmica da governança migratória regional e os padrões de mobilidade já estavam mudando, pois muitos países se transformavam de países emissores e de trânsito em países de recepção.
Hoje, a região tem cerca de 12 milhões de migrantes e refugiados, em grande parte como resultado das crescentes restrições migratórias impostas pelos países do Norte e da crescente externalização das fronteiras. Embora a América Latina tenha sido amplamente elogiada por sua resposta ao êxodo venezuelano, considerando que 80% dos migrantes e refugiados venezuelanos se estabeleceram ali, a região também testemunhou a implementação de medidas ad-hoc, a falta de aplicabilidade das atuais estruturas de proteção e a crescente securitização da migração, seguindo tendências de governança semelhantes às do Norte.
As perguntas que surgem são: como os padrões de migração e a governança migratória na América Latina mudarão após a pandemia? Os governos aproveitarão a oportunidade, sob o argumento de conter o vírus, para institucionalizar políticas como a militarização, o fechamento de fronteiras e a imobilidade forçada?
Alguns sinais iniciais são preocupantes. No Chile, o governo e alguns meios de comunicação têm associado a Covid-19 à migração irregular, levando a um aumento de ataques xenófobos contra a população migrante no país. O governo de Sebastián Piñera também chamou de “urgente” a discussão imediata de um novo projeto de lei de migração no Senado.
A sociedade civil e a academia têm alertado para os riscos de discutir uma lei dessa relevância em meio a uma crise sanitária e sem a participação substancial das organizações da sociedade civil ou com maior consenso.
Além disso, como recentemente alertaram a ACNUR e a OIM, a pandemia também exacerbou os já crescentes níveis de discriminação, estigmatização, racismo e xenofobia contra venezuelanos, haitianos, centro-americanos e outros migrantes e refugiados em vários países como Colômbia, Peru, Brasil, Equador e México.
“As pessoas migrantes e refugiadas na América Latina enfrentam condições exacerbadas de precariedade e vulnerabilidade, como resultado das respostas à pandemia”
Dada a situação heterogênea de segurança jurídica e de acesso à proteção social em que se encontram migrantes e refugiados nos países da região, tem havido poucas políticas específicas para garantir plenamente os direitos dessas populações em meio à pandemia.
Embora alguns países, como Brasil e Uruguai, tenham permitido que a população migrante regularizada se beneficiasse dos programas socioeconômicos e de saúde implementados para minimizar os efeitos da pandemia, outros fecharam os olhos para práticas que limitam o acesso dos migrantes à proteção social e o exercício de seus direitos (como despejos residenciais ou falta de acesso a programas de emergência devido à seu status migratório irregular ou documentação vencida). Ao mesmo tempo, os procedimentos de migração e asilo, como autorizações de residência, vistos, entrevistas para solicitar asilo, entre outros, foram suspensos ou adiados na região.
É impossível saber quando e como voltaremos ao normal ou o que será o novo normal. O que é claro é que migrantes e refugiados na América Latina, incluindo aqueles que contribuem como trabalhadores essenciais no setor de saúde, na indústria alimentícia e nos serviços de entrega, enfrentam condições exacerbadas de precariedade e vulnerabilidade, como resultado das respostas à pandemia.
Esta população também tem sido exposta a novos riscos quando é deportada, tenta voltar para casa ou ir para outros destinos, apesar do fechamento das fronteiras. Este cenário tem destacado o papel fundamental das organizações da sociedade civil, dos governos locais e das organizações de migrantes para ajuda-los a suprir suas necessidades básicas, como alimentação e abrigo. As organizações internacionais também estão tentando aumentar a conscientização e arrecadar fundos para enfrentar esta crise.
Embora fundamental, nenhuma dessas ações pode ser um substituto para a ação estatal. Os governos da região têm fechado suas fronteiras e forçado a imobilidade. Mas a mobilidade continua na imobilidade e os Estados precisam repensar urgentemente suas respostas individuais e coordenar uma estratégia coletiva para incluir e proteger todas as pessoas que vivem em seus territórios.
*Texto Publicado originalmente em 26 Maio de 2020 na Open Democracy
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