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terça-feira, dezembro 24, 2024

Museu da Imigração e Memorial da Resistência: vocação para temas espinhosos

Atual coordenadora do Memorial da Resistência e ex-diretora do Museu da Imigração fala das semelhanças e diferenças entre as duas casas

Por Adriana Marcolini
Em São Paulo (SP)

“O poder simbólico desses lugares é o principal ponto comum, assim como sua vocação para tratar de questões espinhosas”. É o que diz Marília Bonas, ex-diretora do Museu da Imigração do Estado de São Paulo e atual coordenadora do Memorial da Resistência, sobre as semelhanças principais entre as duas instituições.

Especialista em Museologia pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Museologia Social pela Universidade Lusófona de Lisboa, há mais de dez anos Marília atua em pesquisa, documentação museológica e gestão cultural. Foi diretora do Museu do Café, em Santos (SP), e do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. Desde junho deste ano é a coordenadora do Memorial da Resistência, na capital paulista.

Em entrevista ao MigraMundo, Marília faz um balanço sobre sua gestão à frente do Museu da Imigração, reflete sobre as mudanças ocorridas depois da restauração do prédio e fala sobre seus planos para o Memorial da Resistência.

MigraMundo: Como os museus entraram na sua vida? Você se lembra da primeira vez em que entrou em um museu?
Marília Bonas: Fui a museus desde pequena, mas lembro da primeira vez que fui porque quis: aos 10 anos, queria ver as bailarinas do Degas no MASP. Pra mim, sempre foi um ambiente mágico, suspenso, de fantasia, de desconhecido. Mais velha, ia sempre à Pinacoteca. E depois, na faculdade, percebi mesmo que queria trabalhar na área.


Você foi diretora-executiva do Museu do Café, de Santos, e do Museu da Imigração, de São Paulo, durante quase cinco anos. Como avalia sua gestão à frente dessas instituições? Quais eram seus objetivos ao assumir o cargo no Museu da Imigração? Eles foram alcançados?

No Museu do Café foram quase sete anos, e no Museu da Imigração, cinco. Meu objetivo, em ambos os museus, era criar uma cultura museológica estruturada, onde as áreas de pesquisa, preservação e comunicação museológica fossem a verdadeira força motriz da instituição, sempre conectadas às questões do patrimônio preservado ali e o mundo contemporâneo. E, claro, entender o que é um museu que assume sua função social para além de ações pontuais. Aprendi imensamente nessas duas instituições, principalmente de que o legado de qualquer gestão é a tomada de decisões de maneira horizontal, compartilhada, harmonizando a polifonia das áreas e dos públicos. No Museu da Imigração, o desafio, claro, era maior: quando criada, na década de 1990, a instituição era bastante focada para a memória de grupos de imigrantes das primeiras décadas de funcionamento da Hospedaria (do final do XIX ao XX). Antes do fechamento para o restauro, estava já prevista uma ampliação desse recorte patrimonial e o desafio foi consolidá-lo. Acho que isso é muito bem resolvido no que diz respeito aos novos imigrantes e há um esforço da instituição de discutir também a migração interna no mesmo nível de qualidade de pesquisas e ações como o de outros fluxos. É uma instituição lindíssima, com um trabalho a cada dia mais importante no contexto da onda conservadora do Brasil que, por mais irônico que pareça para uma sociedade tão diversa, a cada dia ganha tons xenófobos.

Fachada do Memorial da Resistência, em São Paulo.
Crédito: Divulgação


As visitas ao Museu da Imigração aumentaram depois da reforma? O perfil dos visitantes mudou?

O Museu da Imigração sempre foi uma instituição muito querida pela população da cidade, então houve, sim, um aumento de visitação, mas de uma maneira orgânica e continuada com o que eram as ações antes do restauro. O perfil, sim, mudou: houve crescimento da presença de jovens e públicos que antes não visitavam o museu.


O Museu da Imigração tem chamado a população a colaborar com a coleta de material para algumas exposições, como aquela sobre os cadernos de receitas culinárias trazidos pelos imigrantes. Durante a sua gestão como foi a receptividade do público para com ações desse tipo? A população se sente parceira do museu?

Dizíamos que o Museu da Imigração é uma das poucas instituições brasileiras que não sofre com a questão do pertencimento em relação à população. Quem ama, o considera seu – o que é incrível em termos de ação compartilhada, mas bastante complexo quando falamos de peso de representações identitárias. O público sempre foi muito receptivo, interessado e parceiro do Museu. E esses processos colaborativos têm um potencial muito grande em termos de estratégia de ação, em diversas áreas. Mesmo sendo ex-diretora de lá, participarei em outubro da proposta pública de construção da política de acervos, no Centro de Pesquisa e Formação do SESC, o que é inovador na área museológica brasileira.


Em junho de 2017 você assumiu a coordenação do Memorial da Resistência, em São Paulo. Enquanto o Museu da Imigração aborda a questão do acolhimento dos imigrantes, o Memorial traz à tona temas como o exílio, a tortura e a ditadura. Quais são as principais diferenças e semelhanças entre administrar as duas instituições?

O Memorial da Resistência nasceu da iniciativa de ex-presos políticos de reconhecer seu edifício como um lugar de memória – o que aconteceu também no Museu da Imigração. O poder simbólico desses lugares é o principal ponto comum, assim como sua vocação para tratar de questões espinhosas: o Memorial da Resistência fala da repressão e o Museu da Imigração fala das trajetórias de migrantes e imigrantes, que são repletas de desafios e preconceitos. A função social das duas instituições e seus entornos também são prioridades na gestão das duas instituições, então para mim foi um passo importante sair dessa relação com o Brás/Mooca e vir para relação com a Luz e a chamada Cracolândia, bem mais complexa. Em termos de diferença, o Memorial da Resistência atua numa escala muito menor e muito mais próxima dos sujeitos que viveram a experiência da ditadura – algo mais complexo pela dimensão do Museu da Imigração e do grande número de migrantes e imigrantes que passaram por lá.

Marília Bonas, que dirigiu o Museu da Imigração e agora está à frente do Memorial da Resistência.
Crédito: arquivo pessoal


Qual das duas instituições recebe mais atenção da mídia? No caso de uma delas atrair mais a mídia, por favor, explique por quê.

O Museu da Imigração. Além de o assunto ter um interesse maior de público e um lastro afetivo, o tema é possível de ser trabalhado sob diversas perspectivas, incluindo festas e eventos. O Memorial da Resistência trabalha com temas que muitos querem esquecer na sociedade brasileira; são temas muito menos trabalhados nas escolas e na mídia do que em outros países que passaram por uma ditadura.


Os acervos de ambos estão em constante formação? A construção de um acervo museológico é um processo ininterrupto?

A construção de um acervo museológico é sim um processo constante, por isso a necessidade de políticas para aquisição, pesquisa e preservação que sejam atualizadas permanentemente. No caso do Museu da Imigração, esta política está sendo desenvolvida. No caso do Memorial da Resistência, há um foco em lugares de memória da resistência e da repressão e testemunhos – mas há a discussão de uma coleção de objetos testemunhos no futuro.


Além do acervo, as ações educativas também são um dos pilares dos museus atuais. Como elas são elaboradas? Também são desenvolvidas no interior do estado? Há avaliações periódicas? Existem programas para professores do ensino médio?

Em ambas as instituições, vinculadas à Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, as ações educativas buscam trabalhar com públicos espontâneos, escolares e públicos-alvo (como deficientes ou pessoas em vulnerabilidade social). Há avaliações de satisfação, programas de formação de educadores (para ensino médio e fundamental) e guias de turismo e ações no interior, capitaneadas pelo Sistema Estadual de Museus.


As ações educativas do Memorial da Resistência contam com a colaboração daqueles que são o seu foco de atuação, como ex-exilados e ex-presos políticos? No caso do Museu da Imigração, a instituição se vale da colaboração de imigrantes nas ações educativas
?

O Memorial da Resistência conta com a contribuição direta e constante de ex-presos e exilados políticos, seja no programa regular “Sábado Resistente” – feito em parceria com o Núcleo de Preservação da Memória – ou nas rodas de conversa com ex-presos, realizadas após visitas mediadas pela equipe do educativo. O Museu da Imigração conta com a participação das comunidades especialmente nas ações culturais e eventos, como a Festa do Imigrante e o projeto Viva!.


As exposições do Museu da Imigração viajam para o interior? E as exposições do Memorial? Como tem sido a recepção do público?

Ambas as instituições têm exposições itinerantes que viajam para o interior do Estado a partir do programa do Sistema Estadual de Museus, com grande sucesso.


O Museu da Imigração e o Memorial da Resistência têm promovido intercâmbio com instituições de teor semelhante na América Latina, como o Museo de la Inmigración e o Museo de la Memoria (antiga Escuela de Mecánica de la Armada), de Buenos Aires? Há planos para que isto aconteça?

O Museu da Imigração tem um rol de parceiros internacionais muito fortes, como o Ellis Island Immigration Museum (Nova York) e o Museo de la Inmigración de Buenos Aires (Argentina), dentro outros. O Memorial da Resistência é uma das instituições mais importantes da Rede de Museus e Sítios de Consciência da América Latina (RESLAC), e conta com parceria direta com mais de 40 instituições, de 12 países. Além disso, o Memorial tem em curso um projeto de intercâmbio com o Museu de Liverpool, ligado ao trabalho com o entorno das instituições.

Fachada do Museu da Imigração, em São Paulo (ago.2017).
Crédito: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo


O Museu da Imigração funciona na antiga Hospedaria dos Imigrantes e boa parte da exposição permanente diz respeito aos imigrantes que vieram para o Brasil a fim de trabalhar nas fazendas de café. Embora a parte final do percurso museológico se destine aos movimentos migratórios mais recentes, o visitante tende a ficar com uma visão equivocada sobre a imigração no Estado, ou seja, reduzida ao ciclo do café. Durante a sua gestão houve críticas em relação a esta abordagem?

Essa memória dos imigrantes das primeiras décadas é muito forte na instituição desde sua fundação e a exposição busca, na medida em que não nomeia ou data os fluxos, equilibrar essa construção, ainda que os módulos relativos às questões contemporâneas não cheguem aos pés das ações junto às comunidades que o museu tem feito desde sua reabertura. No período em que trabalhei no Museu, essa questão se traduziu no desenvolvimento de uma política de exposições temporárias que pudessem discutir essas múltiplas vozes e lacunas temáticas, com novas camadas e isso tem persistido na nova gestão.


Tanto o Museu da Imigração quanto o Memorial da Resistência têm acervos digitais à disposição do público. Eles são sempre acrescidos de novos materiais? O público é chamado a colaborar?

No caso do Memorial da Resistência, tanto o banco de dados “Lugares da Memória” quanto o “Coleta Regular de Testemunhos” são constantemente acrescidos de novos materiais e pesquisas, traduzidas em ações educativas e exposições. O público, em especial o de ex-presos, familiares, pesquisadores, especialistas e artistas que lidam com o tema, é parte fundamental dessa construção.


Para concluir, por favor, conte-nos sobre seus projetos para o Memorial da Resistência.

O Memorial da Resistência tem um papel fundamental no Brasil de hoje. Num momento em que o militarismo volta à baila e há uma parte da população que romantiza o período ditatorial, nossa ação torna-se mais estruturante para a discussão de um país verdadeiramente democrático e que luta contra a violação dos direitos humanos. Como instituição, estamos caminhando para uma programação que, além de tratar dos temas da memória da repressão e da resistência no período republicano, lide diretamente com as violações contemporâneas. Para isso, temos trabalhado em escutas do território, em novos projetos de mídia social, na continuidade dos programas educativos para todos os públicos e em exposições temporárias que abordem os temas ainda pouco conhecidos – como a morte de camponeses e indígenas no período ditatorial, o entorno do museu e as violações que sua população sofre.

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