O desenho da revista causa repugnância e falta de respeito com o caso dos refugiados
Por Priscila Pacheco
Em julho de 2015, Laurent Sourisseau Riss, diretor da revista francesa Charlie Hebdo, esteve em São Paulo para participar do Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, organizado pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo). Na ocasião, Riss deveria falar sobre como manter o humor após o massacre pela qual a revista havia passado em janeiro do mesmo ano. Fato que causou a morte de 12 profissionais e aconteceu após a Charlie Hebdo publicar uma caricatura do profeta Maomé.
Riss discorreu sobre as críticas que as sátiras recebem, principalmente quando relacionam a religião, e enfatizou a defesa pela liberdade. “Nós lutamos pela liberdade. Essa liberdade é para todos e, se não praticamos, ela desaparece”, disse Riss. Ao rememorar as palavras do francês sério e um pouco cabisbaixo, e observar a Charlie Hebdo do último dia 13, pensamos: Até onde alguém pode ir sem interferir na liberdade de imprensa e ferir os sentimentos de um povo que passa por uma das maiores crises humanitária da história?
Dessa vez, a charge criticada mundo a fora destaca o tema do refúgio. O desenho feito pelo próprio Riss traz a imagem de homens perseguindo mulheres, e ao lado, Aylan Kurdi morto na beira do mar. Para completar a charge, aparecem as seguintes falas: “O que teria sido o pequeno Aylan se tivesse crescido? Perseguidor de mulheres na Alemanha”.
Aylan era uma criança que fugia da guerra síria com a família. Ele morreu afogado quando a embarcação clandestina de refugiados afundou em setembro de 2015. O corpo do menino foi encontrado em uma praia da Turquia. Já os homens desenhados por Riss ilustram o caso de abusos sexuais contra mulheres, registrados na noite de Ano Novo na Alemanha.
Qual foi a intenção de Riss ao pensar em juntar a história de Aylan com o caso ocorrido na Alemanha? Qual o sentido de dizer que Aylan poderia se tornar um perseguidor de mulheres se tivesse chegado vivo às margens do mar? Não sabemos. Todavia, fica explicita a insensibilidade e falta de respeito com o caso da criança, da família que sobreviveu e de milhares de refugiados que padecem fugindo da guerra.
A liberdade de imprensa precisa ser defendida, sim. Mas ela não deve estar desacompanhada do bom senso e respeito. Que luta pela liberdade é essa que ignora a dor dos outros?
No congresso de julho, ao falar das sátiras religiosas, Riss disse: “Nós temos o respeito ao indivíduo. Criticamos os dogmas religiosos, porque não concordamos que a sociedade seja governada por dogmas”. Surgem mais questionamentos. O respeito pelo indivíduo dito por Riss também não é válido no caso da migração? Parece que não.
“O que é atacado é muito mais que uma caricatura. É uma agressão contra a democracia”, fala Riss sobre os ataques direcionados à Charlie Hebdo. Sim, o que aconteceu com Charlie foi trágico e lamentável, pois nenhuma sátira deve custar a vida de alguém. No entanto, o desenho que envolve Aylan não fica de fora das agressões. Riss reclama da agressão sofrida pela revista, mas também agride. E dessa vez não foram dogmas que Charlie criticou.
Talvez os defensores fiéis da Charlie Hebdo argumentem que Riss não teve a intenção de ofender a família de Aylan ou qualquer refugiado, mas de criticar a situação dos que buscam refúgio ou a postura da Europa. Entretanto, não foi a interpretação de muita gente ao redor do mundo. Riss conseguiu nos transmitir nojo, tristeza, grosseria e repugnância. E não foi a primeira vez – afinal, quando o menino morreu a revista também publicou uma charge preconceituosa.
Enfim, Aylan não era um dogma, Aylan não pertencia a grupos de terroristas que atacaram Charlie, Aylan não era um homem que atacou mulheres. Aylan era um menino curdo que morreu aos três anos de idade ao tentar fugir de uma guerra insana e sangrenta. Aylan era uma criança inocente que poderia ser médico, artista, astronauta, professor, ativista ou qualquer outra coisa caso não tivesse tido uma vida tão curta. Não, não somos todos Charlie neste momento. E a liberdade de imprensa? Qual o limite dela?
Je ne suis pas Charlie
#JenesuispasCharlie
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