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terça-feira, dezembro 24, 2024

O papel dos arquivos para a governança das migrações na América Latina

É importante ressaltar que a produção documental sobre imigrantes se inicia muito antes de sua materialização em papel, texto ou imagem

Por Bruno Nathansohn*

O aumento exponencial de documentos produzidos no âmbito de instituições de recepção e acolhimento de imigrantes, revela o grau de importância conferido aos arquivos para a gestão de documentos pessoais.

A dinâmica das migrações urge uma análise integradora da gestão de documentos produzidos para que as tomadas de decisão em relação aos processos de integração social e atendimento jurídico sejam mais efetivos.

Os chamados arquivos humanitários, ligados às instituições dedicadas à recepção e acolhimento aos imigrantes em processos de integração social, busca por emprego e apoio jurídico para a defesa de elegibilidade, tornam-se fundamentais no contexto da governança das migrações. A garantia de direitos aos refugiados passa, necessariamente, pelo acesso a documentos, pois eles contam a trajetória desses indivíduos.

Registros de memórias

A memória daqueles que percorreram caminhos, muitas vezes tortuosos, até chegarem aos seus destinos estão registrados e precisam ser organizados por sistemas de classificação e indexação apropriados, considerando elementos culturais, sociais e econômicos. A produção documental, importante salientar, se inicia muito antes de sua materialização em papel, texto ou imagem.

Ela começa a partir de uma série de linguagens estabelecidas por usos de dispositivos que servem tanto para o controle sobre as migrações quanto pelo uso, pelos próprios migrantes, para suas estratégias de sobrevivência.

São muitos os atores dedicados ao tratamento da situação dos refugiados, mas pouco é analisado sobre os serviços de informação voltados aos procedimentos de integração e suporte jurídico. Entre os anos de 2016 e 2018, foram pesquisados os três principais grupos de refugiados, à época, que eram recepcionados pela Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro. Congoleses, sírios e colombianos foram os objetos de estudo, considerando diversos pontos relacionados à governança, ou seja, aos diversos elementos que compõem o contexto da dinâmica migratória. E a Cáritas é um dos atores que compõem esse quadro, na realidade brasileira.

A partir da análise sobre o papel da Cáritas na realidade brasileira, pôde-se estabelecer importantes vínculos entre a situação local e a perspectiva global. Nesse sentido, a informação torna-se o foco principal, pois considera-se que seja condutor primordial de toda a dinâmica. No caso específico das migrações, a informação, identificada como o objeto que forma algo (como derivado do latim informare), só possui sentido pois sua essência é resultado das diversas linguagens que a compõe. Portanto, a informação, como produto da linguagem, significa que existe um movimento que se retroalimenta constantemente entre as memórias, discursos, narrativas e histórias de vida dos imigrantes refugiados e a informação coproduzida pelos serviços e pelos próprios sujeitos de refúgio.

Regida pela lógica do direito internacional dos direitos humanos, a Cáritas é representante oficial do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), participando como representante da sociedade civil organizada nas decisões do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE). Esse Comitê é liderado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, cujo representante com assento e voto, é a Polícia Federal. Outros atores também fazem parte, seja como decisores ou como ouvintes, como nos casos do próprio ACNUR e do Instituto de Migrações e Direitos Humanos (IMDH).

O fato de a Polícia Federal ter assento e voto no CONARE é a expressão do papel prático que essa agência tem no sistema migratório brasileiro, controlando a mobilidade de estrangeiros em território nacional. É expressão de um histórico da legislação brasileira em que o controle sobre os estrangeiros é uma questão de segurança nacional.

Serviços e sistemas de informação

Nisso, pôde-se interpretar a existência de duas vias produtoras de conteúdo com objetivos diferentes. Identificou-se que instituições que tratam da questão dos refugiados são confrontadas o tempo todo, em algum grau ou em diferentes instâncias, por políticas que visam controlar a mobilidade humana, em quaisquer regimes políticos, sistemas econômicos ou perspectivas ideológicas. Sistemas de vigilância são valorizados como dispositivos essenciais no âmbito de políticas securitárias nacionais.  A realidade mundial aponta para essa lógica. Mesmo em amplos blocos políticos, como a União Europeia, os sistemas de vigilância caminham, concomitantemente, com modernas iniciativas de integração de refugiados. Esse é caso do sistema de segurança Frontex, com sede em Varsóvia, na Polônia, que possui uma forte linha de ação relativa ao controle policial das fronteiras do continente, por meio do monitoramento do fluxo de informações sobre a mobilidade humana. É, dessa forma, que os serviços de informação dedicados aos direitos humanos se confrontam com os sistemas de vigilância e controle, operando a mesma informação, para alcançar objetivos diferentes.

A linguagem que é performada, portanto, passa pela “intersubjetividade humana”, como diz o filófoso Jugen Habermas , por “jogos de linguagem” , de acordo com Wittgenstein, mas também por uma ética intercultural nos modos de produção da informação, como salienta Rafael Capurro, sendo decodificada por um conjunto de políticas, estratégias, serviços, sistemas e dispositivos tecnológicos operados por um modelo de governamentalidade, que, segundo Michel Foucault, é a arte de governar.

“Com o título de ética da informação intercultural (EII), entendo a relação entre as normas morais universalizáveis ​​ou universalizadas e as tradições morais locais. Um exemplo de moralidade universalizada é a Declaração Universal dos Direitos Humanos que surgiu em resposta à catástrofe da Segunda Guerra Mundial, mas que tem raízes no pensamento do Iluminismo, da Revolução Francesa, das constituições republicanas etc” (CAPURRO, 2010)[1].

Nisso, conforma-se a governança das migrações. Os arquivos humanitários são, assim, intermediadores desse processo, pois pontificam as dinâmicas operadas em escala global, com as necessidades locais definidas por políticas públicas de direitos humanos e securitárias, processos decisórios, agendas nacionais e os registros que guardam as memórias dos refugiados.

Sobre o autor

Bruno Nathanshon é cientista social e gestor de documentos. Doutor em Ciências da Informação pelo Instituto Brasileiro de Inform. em Ciência e Tecnologia (IBICT) – Univ. Fed. do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador do grupo Estudos Críticos em Inform., Tecnologia e Organização Social do IBICT.

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