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sexta-feira, dezembro 20, 2024

O que os acontecimentos no Acre mostram sobre as migrações no Brasil, segundo pesquisadora

Em entrevista ao MigraMundo, a professora Letícia Mamed, da UFAC, contextualiza os fatos recentes no Acre em relação às migrações no Brasil e América

A questão recente na fronteira entre Brasil, Peru e Bolívia voltou a colocar o Acre em destaque quanto às migrações no país. No entanto, não é de hoje que o estado se tornou ponto de passagem de migrantes que chegam ao Brasil e saem dele em direção a outros países. Ao mesmo tempo, também ajuda a entender a situação precária vivida por migrantes em situação de vulnerabilidade.

Essas e outras nuances do movimento migratório atual brasileiro são abordadas na entrevista abaixo por Letícia Mamed, professora de Teoria Social/Sociologia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da Universidade Federal do Acre (UFAC), que acompanha de perto a questão na fronteira.

A pesquisadora contextualiza o Acre dentro do cenário brasileiro e pan-americano sobre migrações, e também critica as barreiras seletivas ao deslocamento de pessoas em meio à pandemia.


MigraMundo: Há quanto tempo tem ocorrido esse movimento em especial de pessoas tentando passar do Acre para o outro lado da fronteira?

Letícia Mamed: No ano de 2010, quando houve a abertura da rodovia Interoceânica, que corta a tríplice fronteira composta por Brasil, Bolívia e Peru, justamente pelo território do Acre, essa região passou a fazer parte do ecossistema das rotas internacionais de imigração.

Até 2014, o principal movimento observado nela era o de entrada de imigrantes caribenhos, africanos e asiáticos no Brasil, atraídos pelo momento de crescimento da economia brasileira, com significativa oferta de empregos, especialmente nos setores do agronegócio, construção civil e serviços. Já a partir de 2015, com a crise econômica e política instalada no país, um outro movimento passou a ser notado nessa fronteira: o de saída desses imigrantes.

Assim, além de porta de entrada de caribenhos, africanos e asiáticos, o Acre converteu-se, também, em porta de saída daqueles que decidiram retornar ao seu país de origem ou a experimentar outros destinos migratórios, como Peru, Argentina, Chile, Colômbia, Estados Unidos ou Canadá. Quando questionados sobre esse novo movimento, os imigrantes explicam que a decisão de regressar ao Acre acontece porque já possuem conhecimento da rota e ela se apresenta como opção mais econômica a eles. Dessa forma, optam por retomar o mesmo caminho, mas em sentido inverso ao de entrada, acionando novas ou antigas redes, renovando ou não mecanismos de endividamento, para então sair do Brasil.

Atualmente, portanto, pelas fronteiras amazônicas do Acre são observados esses dois movimentos: de ingresso e/ou de saída de imigrantes, que se acentuam ou regridem a depender das mudanças sucedidas no contexto socioeconômico nacional e internacional.

Imigrantes acampados na Ponte de Integração, em Assis Brasil (AC)
Imigrantes acampados na Ponte de Integração, em Assis Brasil (AC). (Foto: Divulgação/Caritas)

O que tal situação na fronteira Brasil/Peru/Bolívia mostra sobre a mobilidade humana em meio à pandemia?

Considerando que a crise global de saúde exacerbou desigualdades sociais, em termos de renda, gênero e raça/etnia, a mobilidade humana também foi diretamente impactada. Esse contexto tem mostrado que mobilidade não é sinônimo de liberdade e autonomia, e principalmente, tem evidenciado que nem todas as pessoas desfrutam do mesmo nível de mobilidade. Com o prolongamento da crise sanitária e econômica, o confinamento se converteu em privilégio de classe social e ocupação, ao passo que muitos trabalhadores e trabalhadoras precisaram se mover para garantir que outras pessoas pudessem permanecer em casa.

No que se refere às migrações internacionais, na tríplice fronteira Brasil-Bolívia-Peru, o primeiro momento da pandemia (mais ou menos entre março e setembro de 2020) foi marcado por medidas de restrição à mobilidade, que naquele momento pareceu ser a medida necessária para contenção do coronavírus. O trânsito entre os países foi oficialmente suspenso, com a montagem de barreiras sanitárias nas principais vias de acesso. Isso gerou retenção de imigrantes que estavam de passagem pelas cidades fronteiriças, exigiu a adoção de políticas emergenciais e desencadeou grande repercussão social entre as comunidades da região. Houve, por exemplo, desabastecimento nas cidades, uma vez que elas possuem influência mútua quanto ao comércio, serviços e produção agropecuária.

Diante disso, a realidade local exigiu que o fechamento fosse pouco a pouco flexibilizado, quando então se definiu um segundo momento do controle da circulação nas fronteiras, que vivenciamos atualmente (de setembro de 2020 a fevereiro de 2021), com a liberação do trânsito de moradores das cidades e o restabelecimento do intercâmbio comercial, mediante regulamentações específicas acordadas entre os governos estaduais e municipais da região fronteiriça. É importante ressaltar que, mesmo no período de maior restrição à mobilidade, a circulação de imigrantes se manteve pelas cidades acreanas de fronteira, uns desejando ingressar no Brasil e outros desejando sair.

Embora não tenhamos dados precisos sobre isso, essa movimentação tem sido acompanhada de perto por agentes policiais, funcionários públicos e representantes de entidades que atuam nos serviços de documentação e assistência nessas localidades. Entre os imigrantes, especialmente os indígenas, mulheres grávidas e crianças venezuelanas demandam atenção redobrada, situação que motivou a instalação de abrigos improvisados para acolhimento emergencial deles na cidade de Assis Brasil (lado brasileiro da tríplice fronteira) e na capital, Rio Branco.

A impressão que se tem é que a situação no Acre é ainda mais grave que a verificada em meados de 2020, quando ganhou destaque na imprensa um movimento inverso, o de migrantes em situação vulnerável tentando entrar no Brasil. Isso procede?

Sim, pois no mês de fevereiro houve o represamento de número expressivo de imigrantes – cerca de 500 pessoas, das mais variadas nacionalidades, idades e situações migratórias – em três ou quatro dias. Segundo a Polícia Federal local, com base em números de janeiro de 2021, a movimentação de imigrantes pela região foi considerada abaixo da média para o período. Contudo, o represamento deles no lado brasileiro da fronteira, impedidos de seguir viagem pelo território peruano, contribuiu para a formação de aglomerações, agravando os riscos de propagação do vírus e suas eventuais variantes, assim como a tensão política na região.

Além disso, é preciso contextualizar que essa situação acontece em um momento de aumento progressivo de casos e óbitos por Covid-19 em todo o estado, com saturação e estrangulamento dos sistemas de saúde público e privado, surto de dengue e enchentes dos rios acreanos, provocadas pela intensidade do atual período de chuvas na Amazônia. Na última semana, os registros fotográficos da situação dos imigrantes represados ganharam destaque na mídia e evidenciam o delicado contexto. Na última semana, em razão da emergência humanitária, sanitária e financeira, o governo estadual solicitou intervenção federal, o que motivou a visita de comitivas da Secretaria Nacional de Assistência Social, do Ministério da Cidadania, e do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que estiveram no último dia 19 na cidade de Assis Brasil para conhecer de perto a situação.

Na fronteira, as comitivas do governo brasileiro tentaram dialogar com os representantes do governo peruano, que permaneceu inflexível quanto a passagem dos imigrantes, especialmente após a tentativa frustrada deles de furar o bloqueio policial no dia 16. As tratativas diplomáticas entre os dois governos seguem há mais de uma semana, mas sem indícios de uma solução amistosa. Em campo, as comitivas conseguiram convencer parte dos imigrantes que estavam acampados na ponte a retornar aos abrigos improvisados na cidade de Assis Brasil, nos quais podem permanecer em segurança. Nos últimos dois dias sugiram informações de que alguns grupos decidiram tentar seguir viagem pelo território boliviano, onde também foram duramente reprimidos e retornaram para o lado brasileiro da tríplice fronteira. Também há registro de que alguns, diante da situação, decidiram regressar às cidades nas quais residiam nos estados do Sul e Sudeste do país.

Em articulação, os governos estadual e federal decidiram por intensificar a veiculação de informações na mídia sobre o fechamento da fronteira peruana e o agravamento da pandemia no Acre, com o intuito de demover as pessoas com intenção de se deslocar até a região. Da mesma forma, as polícias ampliaram o alerta para desarticular a operação de redes de coiotagem que tendem a se fortalecer diante do fechamento das fronteiras. Quanto a isso, vale destacar que no dia 18 o Ministério da Justiça publicou a portaria nº 62, autorizando o emprego da Força Nacional de Segurança Pública, em apoio ao governo do Acre, “nas atividades de bloqueio excepcional e temporário de entrada no país de estrangeiros, em caráter episódico e planejado”. A medida causou estranheza a diversos setores da administração pública e da sociedade civil que acompanham a questão, vez que seu escopo infringe competências constitucionais e está em desacordo com a atual legislação do país referente a migração. Até o momento não ficou claro o cumprimento administrativo da medida, muito menos o tratamento e a assistência que serão prestados aos imigrantes eventualmente afetados por ela.

É possível fazer um paralelo entre a situação atual na fronteira Brasil/Peru/Bolívia com a verificada em meados de 2020?

É possível e necessário estabelecer esse paralelo, pois isso evidencia nuances importantes para compreensão do problema. No primeiro momento da pandemia e como resultado das portarias de fechamento das fronteiras decretadas pelos governos do Brasil, Bolívia e Peru, tivemos o seguinte impasse: entre os meses de julho, agosto e setembro de 2020, sobre a ponte que separa Brasil e Peru, 36 pessoas (venezuelanos, colombianos, peruanos e cubanos) permaneceram vivendo em situação precária, dormindo em barracas de lona e tomando banho no rio Acre, sem conseguir ir para um lado nem para o outro. Foi uma situação inédita ter pessoas retidas por tanto tempo no local, incluindo crianças e bebês.

À época, a Defensoria Pública da União (DPU) assumiu a representação dos imigrantes retidos e ingressou com duas ações na Justiça brasileira: uma para reverter a deportação sumária de 18 deles pela Polícia Federal; e outra para solicitar a admissão dos demais, que não tinham conseguido sequer fazer o pedido de entrada em território brasileiro. As alegações da DPU foram acatadas e a Justiça autorizou o ingresso dos imigrantes no Brasil, pois prevaleceu o entendimento de que as restrições impostas contrariavam a legislação brasileira e tratados internacionais dos quais o país é signatário. Assim, concluiu-se que, mesmo em circunstância de pandemia, os controles sanitários não podem acarretar violações de outros direitos humanos, entre eles o da proteção internacional do refúgio.

DPU, MPF, Conectas e Caritas SP entram com ação contra deportação de imigrantes
Imigrantes detidos sobre a ponte que liga o estado brasileiro do Acre ao Peru, em meados de 2020.
(Foto: Defensoria Pública da União)

Solucionado esse impasse, no Acre, os imigrantes que estavam na ponte foram acolhidos em um abrigo improvisado pela prefeitura de Assis Brasil, com a ajuda da organização humanitária Cáritas, até que o processo de documentação deles ficasse pronto e que definissem o destino em território brasileiro. Desde então, essa passou a ser a rotina político-administrativa adotada pelo governo brasileiro diante da entrada de imigrantes pela fronteira acreana. Já em fevereiro deste ano, uma nova situação se configurou: dessa vez, imigrantes chegam ao Acre por via área, a partir de conexões em diversos aeroportos do país, e se deslocam até a região de fronteira, com o objetivo de sair do Brasil, passando pelo Peru. Tendo em vista que, assim como o Brasil, nesses dois primeiros meses do ano, o país andino também enfrenta o recrudescimento do número de infectados e mortes causadas pela Covid-19, em meio a uma série crise política interna, as fronteiras peruanas voltaram a ser fortemente bloqueadas por forças policiais.

Face a isso, observa-se que o discurso de controle da pandemia foi novamente reativado e com base nele o governo peruano justifica a imposição de restrições à mobilidade por seu território. Sabe-se que a Organização Mundial de Saúde (OMS) já se pronunciou sobre o tema, afirmando que o controle de fronteiras não deve suscitar violação de direitos humanos ou infringir convenções internacionais sobre migração e refúgio. Também a Acnur (agência da ONU para refugiados) reconheceu que os estados têm a prerrogativa de restringir as fronteiras por razões de saúde pública, mas declarou que não devem deixar de proteger pessoas solicitantes de refúgio. Para gestão da mobilidade pelas fronteiras internacionais durante a pandemia, em vez da proibição de entrada, algumas medidas de controle são sugeridas como mais adequadas, como por exemplo a adoção de quarentenas e aplicação de exames para as pessoas em trânsito. Até o momento o governo peruano não se mostrou sensível ao represamento de imigrantes do lado brasileiro da fronteira, o que tende a agravar o problema sanitário, vez que permanecem aglomerados em situação precária, assistidos pelas cidades acreanas de fronteira.

De modo geral, nas duas situações é válido notar que as medidas de restrição à mobilidade são enfáticas quando se referem às vias terrestres e aquaviárias, como são as da Amazônia, pelas quais transitam imigrantes indocumentados, em situação de extrema vulnerabilidade, provenientes de países empobrecidos, em crise ou em guerra, lugares nos quais resta a migração como alternativa. No outro polo da questão está o controle da mobilidade para pessoas que se movimentam por via área, com visto de turismo, trabalho ou investimento. Para essas, a maioria dos países, incluindo Brasil e Peru, têm se mantido abertos e, nos diferentes momentos da pandemia, os governos adotaram medidas de controle, mas não impediram a entrada. Isso evidencia, portanto, o tratamento diferenciado e seletivo dispensado pelos governos aos imigrantes: aos empobrecidos, oriundos da América Latina, Caribe e África, majoritariamente negros, a política assume caráter restritivo e repressivo; aos abastados, provenientes dos países considerados desenvolvidos, a política é ampla e condescendente, capaz de implementar procedimentos que conciliam as preocupações sanitárias e a preservação do direito humano à mobilidade.

A partir da sua experiência, para onde os migrantes que tentam deixar o Brasil via Acre almejam chegar?

De acordo com minhas pesquisas de campo e conforme as equipes de servidores públicos do governo do Acre, das prefeituras das cidades fronteiriças e de entidades como a Cáritas, que prestam assistência a esses imigrantes, durante a passagem pela região, são diversas as aspirações manifestadas por eles: de retornar para a terra natal, onde podem contar com uma rede de apoio e proteção maior para enfrentar a pandemia e a crise socioeconômica decorrente dela; de tentar novos itinerários migratórios na própria América Latina, indo em busca de oportunidades no Peru, Argentina, Chile, Equador ou Colômbia; mas a intenção externada pela maioria é de tentar ingressar nos Estados Unidos, motivados pela expectativa de revisão da política migratória pelo presidente democrata Joe Biden.

Quanto a isso, é importante ressaltar que a barreira encontrada por eles na fronteira do Brasil com o Peru é apenas uma entre tantas outras existentes pelo caminho rodoviário até América do Norte. A imprensa peruana, por exemplo, tem mostrado que a fronteira entre Peru e Equador (noroeste da América do Sul) está reforçada justamente para impedir a passagem de imigrantes. Já na fronteira entre Honduras e Guatemala (área central da América Central), na segunda quinzena de janeiro passado, uma caravana de imigrantes, composta por cerca de 9 mil hondurenhos e salvadorenhos, foi duramente reprimida por forças policiais guatemaltecas ao chegar à fronteira.

Em razão desse cenário em que os países decidem pelo fechamento de suas fronteiras, o que se teme é a exposição dos imigrantes aos perigos das rotas indocumentadas, controladas por coiotes que alimentam suas expectativas e cobram valores exorbitantes pela promessa de ingresso nos EUA.

O Acre na primeira parte da última década foi o epicentro da questão haitiana no Brasil. Na sua opinião, é possível notar na região algum legado dessa presença ou nenhuma estrutura permaneceu?

Desde que o Acre passou a fazer parte da rota das migrações internacionais, em 2010, a atuação do poder público, em suas diferentes dimensões, foi heterogênea, alterando-se conforme as novas características e proporções apresentadas pelo fenômeno. Ao longo da última década, o que se pode destacar é que, no estado, existiu um abrigo oficial de imigrantes, mantido pelo governo estadual a partir de repasses financeiros do governo federal, e que funcionou até abril de 2016. Esse era um local de referência a todos os imigrantes que passavam pelo Acre, no qual, apesar muitos problemas registrados quanto ao seu funcionamento, os imigrantes recebiam nele assistência básica em termos de acolhimento, alimentação e documentação.

Em 2014, governo do Acre fechou abrigo para imigrantes em Brasileia. Outro foi aberto na capital, Rio Branco, fechado anos depois devido à redução do fluxo migratório no Estado. Crédito: Sérgio Vale/Secom (abr./2014)

Mediante a existência dessa unidade pública, instâncias como Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho, Polícia Federal, Defensoria Pública da União, entre outras, atuavam de modo mais articulado, no acompanhamento do fenômeno, no compartilhamento de informações, no registro unificado de dados sobre os imigrantes em trânsito pela região etc. Havia nesse processo o fio condutor para a articulação de uma política pública voltada ao fenômeno da imigração por essa região de fronteira, minimamente atenta às particularidades locais.

Entretanto, no início do ano de 2016, em um contexto de redução do número de imigrantes recebidos, quando situação socioeconômica do país indicava o aprofundamento da crise, essa estrutura foi desativada. Naquele momento, desconsiderou-se a posição geopolítica assumida pelo Acre na rota das migrações internacionais e a necessidade de implementação de uma política efetiva voltada para essa realidade. Em vez disso, prevaleceu uma visão superficial do problema, ou seja, a de que a movimentação de imigrantes pela fronteira acreana havia reduzido significativamente e que talvez houvesse o encerramento dos fluxos pela região. Essa visão aligeirada serviu de pretexto e justificativa para a desativação do abrigo, estrutura pública que sempre demandava grande montante de recursos e era alvo de críticas por parte de grupos políticos conservadores.

Posteriormente, pouco mais de um ano após o fechamento do abrigo, em meados de 2017 o Acre passou a receber os primeiros grupos de imigrantes, refugiados e indígenas venezuelanos. Depois de ingressarem em território brasileiro pelo estado de Roraima, em movimento de interiorização pelo país, eles chegam ao Acre em pequenos grupos, quase sempre familiares. A presença deles é crescente nas cidades acreanas, especialmente na capital e nas localizadas na tríplice fronteira (Assis Brasil, Brasileia e Epitaciolândia), localidades que os permitem também circular por cidades bolivianas e peruanas. Diante da situação de profunda vulnerabilidade desses imigrantes, a assistência a eles foi mobilizada, mas dessa vez liderada por entidades da sociedade civil, como a Cáritas, apoiada pelo governo do estado e de algumas prefeituras. Mais recentemente, com o advento da pandemia no primeiro trimestre de 2020, mais uma vez a assistência aos imigrantes em trânsito pelo Acre precisou ser repensada.

Desde o início da pandemia eles têm sido diretamente impactados, pois tiveram a sua mobilidade restringida, assim como a possiblidade de trabalho nas cidades em que ficaram retidos. A ausência de recursos para assegurar alimentação, aluguel e itens de proteção contra o vírus em propagação, exasperou a vulnerabilidade desses imigrantes. Isso exigiu que a assistência do poder público fosse ampliada e, depois do fechamento oficial do abrigo em 2016, pela primeira vez ensaiou-se a estruturação de novos espaços de acolhimento para os imigrantes no Acre. Entre março de 2020 e fevereiro de 2021, nas cidades fronteiriças de Assis Brasil, Brasileia e Epitaciolândia, assim como em Rio Branco, têm sido várias as experiências de abrigos improvisados para atendimento emergencial aos interditados, mas ainda não se tem a perspectiva de efetivação desse tipo de estrutura à política local. Com esse breve retrospecto sobre a atuação do poder público, avalio que o legado da última década tende a ser mais negativo que positivo. Por um lado, não se pode deixar de reconhecer a sensibilidade e o empenho de diversos setores do Executivo e do Judiciário para preservar direitos ou pelo menos minimizar a violação deles. Em termos de recursos humanos, o serviço público no Acre aprendeu muito sobre a realidade migratória, desenvolveu notáveis habilidades para atuar diante das crises.

Por outro, sabe-se que a complexidade da questão exige gestão estruturada e continuada, articulação e efetividade. Nesse sentido, é preciso suplantar a tendência a uma atuação emergencial, que lida com o problema de modo circunstancial, para encarar o desafio de pensar e desenvolver uma política ativa e realista ao contexto do Acre, em conformidade com o seu atual posicionamento nas rotas internacionais de migração.

Por fim, lembro que em novembro de 2020, ou seja, muito recentemente, foi constituído no Acre o Comitê Estadual de Apoio aos Imigrantes, Apátridas e Refugiados (Ceamar), com competências consultiva, deliberativa e propositiva, reunindo representantes das mais diversas instâncias do Executivo e Judiciário, além de muitos setores da sociedade civil. Eu faço parte desse comitê, representando a Universidade Federal do Acre (UFAC), e acredito que sua criação foi um passo significativo no longo e desafiador processo de construção de uma política local e regional voltada aos imigrantes.

Como a professora avalia a cobertura feita pela mídia, seja nacional ou local, a respeito desse tema?

Refletir sobre a abordagem do tema migração pela mídia sempre me lembra a histórica abordagem simplificadora da mídia sobre a Amazônia, que por um lado tende a enaltecer a dimensão do exótico e desconhecido, e por outro tende a exaltar particularidades de modo generalista, desconsiderando sua complexidade e heterogeneidade interna. É importante reconhecer que a migração vem ganhando relevância na mídia internacional, nacional e local, sendo que cada uma dessas instâncias merece uma análise específica sobre os sentidos que produzem e seus possíveis desdobramentos. Mas, de modo geral, considero simplificadora a abordagem midiática do tema, assim como tende a ser o a sua discussão a respeito da Amazônia.

Por exemplo, no discurso midiático, o tratamento do migrante quase sempre assume um tom alarmista, em que a xenofobia se traveste por proteção a cidadãos nacionais e se associa a plataformas político-eleitorais. Especialmente nesse contexto de pandemia, a modulação das narrativas midiáticas tem sido pouco objetiva, com reduzida apuração de fatos, grande destaque para declarações de autoridades e forte tom opinativo de repórteres. Quase sempre os sujeitos do processo – no caso, os imigrantes – não são ouvidos. Nesse caminho, a migração tende a ser pensada pelo viés da criminalização e o estrangeiro tende a ser representado como criminoso em potencial, o que desperta discursos nacionalistas, com indicativo da necessidade de controle de entrada e proteção de fronteiras.

No contexto brasileiro e local, avalio que essa é a tendência majoritária, ainda mais quando acontecimentos qualificados de “crise” ou “invasão de imigrantes” irrompem na Amazônia, ou mais especificamente no “longínquo” e “empobrecido” Acre, como se se eles fossem um “perigo” ou “peso” para o estado.


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