Por Nathalia Ramos e Rodrigo Borges Delfim
A temática das migrações vem ocupando espaço considerável no cenário internacional. No entanto, tal presença tem sido impulsionada por uma abordagem cada vez mais hostil aos não nacionais, em diversos casos com respaldo ou indiferença de governos que empreendem políticas migratórias que não levam em conta direitos e a dignidade das pessoas em deslocamento.
Tal abordagem precisa ser mudada de forma urgente, tanto no contexto local quanto internacional, inclusive a partir de uma visão mais abrangente de direitos humanos – ainda muito centrada em uma visão eurocêntrica. Foi o que defenderam três pesquisadores, todos da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), que participaram de um debate promovido de forma online pelo Instituto Berliner de Cultura e Línguas, no final de maio. Eles discutiram os múltiplos fatores que produzem exclusão social para migrantes. E deixaram claro que políticas migratórias precisam ser pensadas a fim de priorizar a dignidade humana, o acolhimento cultural, além de promover a justiça ambiental e o combate às novas formas de colonialismo.
O debate que reuniu os três especialistas não é a única iniciativa do Instituto Berliner ligada à temática migratória. A entidade tem promovido outras palestras online que abordam o tema e terá no final de julho (dias 28 a 31) um minicurso intitulado “Políticas Migratórias e o Sujeito Migrante: Exclusão, Dominação e Resistência”. As inscrições podem ser feitas por meio da plataforma Sympla.
Por uma base intercultural de direitos humanos
A abertura ficou por conta de Francisco Quintanilha, Professor Titular de Direito na UFSC, que conduziu os presentes por uma análise histórica dos direitos humanos. Segundo ele, desde a origem, esses direitos foram pensados para proteger apenas a propriedade privada e os interesses da burguesia emergente. Eles sustentavam uma lógica individualista e excludente.
Para Quintanilha, é necessário superar o viés eurocêntrico dos direitos humanos e criar uma base que seja realmente intercultural, inclusiva e voltada à dignidade de todos os povos.
Dentro dessa proposta de revisão crítica, o professor abordou dois temas centrais que marcam a contemporaneidade: o racismo ambiental e o colonialismo digital. Segundo ele, o racismo ambiental atinge de forma desproporcional comunidades negras, indígenas e periféricas, que são expostas à poluição, à degradação ambiental e ao deslocamento forçado sem qualquer proteção efetiva.
Em sua apresentação, destacou que os 10% mais ricos do mundo emitem 50% do carbono, enquanto os 50% mais pobres, que mais sofrem os impactos das mudanças climáticas, emitem apenas 10%. Nesse contexto, a minoria rica é a única que usufrui dos lucros da degradação ambiental, ao passo que a parte da população mais carente sofre com a destruição de forma mais intensa.
Já o colonialismo digital, de acordo com sua análise, configura uma nova forma de dominação. Desta vez, perpetuado pelas grandes corporações tecnológicas que, por meio da extração e controle de dados, manipulam seus usuários e moldam seus comportamentos. Essa prática leva à acumulação de capital por grandes empresas imperialistas e, assim, a perpetuação de desigualdades globais.
Conceitos progressistas?
A professora Hélen Diogo, doutoranda em Direito na Pós-Graduação da UFSC, seguiu com uma reflexão sobre como os conceitos considerados progressistas, como a interseccionalidade, podem ser apropriados de maneira limitada. Para ela, embora a interseccionalidade aponte para a sobreposição de opressões, – como gênero, raça, classe e origem – muitas vezes ela é aplicada apenas a grupos com maior poder de articulação, não alcançando migrantes pobres, racializados e periféricos.
Além disso, Hélen apresentou dados que revelam o crescimento significativo dos processos migratórios entre 2013 e 2022, com mulheres e crianças na linha de frente desses fluxos. No entanto, ao chegarem ao Brasil, essas mulheres se deparam com condições insalubres de trabalho, muitas vezes análogas à escravidão. Desse modo, encontram na economia informal sua única alternativa de sobrevivência.
Nesse contexto, a precariedade não se limita à renda, mas se estende ao acesso a serviços básicos como saúde, educação e moradia. Muitas dessas mulheres, como apontado pela docente, não conseguem garantir atendimento médico adequado ou, até, matricular seus filhos na escola. Isso ocorre, seja por falta de documentos ou por barreiras linguísticas e institucionais.
As enchentes que afetaram o estado do Rio Grande do Sul foram mencionadas como um exemplo trágico da vulnerabilidade das populações migrantes no Brasil. A professora ressaltou que as mulheres e crianças migrantes, que carecem dos sistemas de proteção, são ainda mais afetadas em momentos de desastre.
Segundo ela, o Sistema Único de Saúde (SUS), embora seja uma conquista da sociedade brasileira, opera sob uma lógica emergencial e precarizada que se mostra insuficiente para atender com dignidade essas populações em situação de risco.
Para a docente, a falta de políticas públicas estruturadas para acolher e garantir os direitos de migrantes e refugiados, deixa claro o abismo existente entre o discurso humanitário e a prática institucional.
O caso de El Salvador
Encerrando o debate, o professor Christian Souza Pioner, graduando em Direito pela UFSC e licenciado em História pela UDESC, trouxe uma análise histórica e geopolítica do caso de El Salvador. Ele contextualizou o processo migratório salvadorenho a partir das reformas agrárias mal implementadas, da ditadura militar, e da longa guerra civil que assolou o país por 12 anos.
Pioner apontou como, após firmarem-se de forma indocumetada nos Estados Unidos, muitos migrantes salvadorenhos acabaram formando gangues para sobreviver [conhecidas como “maras”]. Posteriormente esses grupos foram deportados e retornaram a El Salvador. Essa situação contribuiu para o aumento da violência e da insegurança no país.
Christian afirma que El Salvador vive sob um estado de sítio até o presente momento – condição em que o governo suspende garantias constitucionais e amplia os poderes das forças de segurança, supostamente para conter o crime. No entanto, Pioner argumenta que essa medida tem sido usada para legitimar prisões em massa, violência institucional e repressão. Nessa circunstância, a população civil sofre impactos profundos.
Ele também destacou a relação existente entre o presidente salvadorenho, Nayib Bukele, e o atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, denunciando a adoção de políticas migratórias ultrarepressivas, como a instalação de campos de detenção que se assemelham aos campos de concentração modernos.
O professor reforçou que a superexploração do trabalhador em países subdesenvolvidos, como El Salvador, é uma condição necessária para manter os níveis de produção exigidos pelas economias centrais. Trata-se de uma lógica de dependência que submete as nações periféricas a ciclos de pobreza, violência e migração forçada. Segundo Pioner, essa é uma dinâmica econômica, simbólica e política. Além disso, ela deixa em evidência uma hierarquia global que desumaniza os corpos migrantes.
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