O ataque cometido pelas Forças de Defesa de Israel (IDF) no último dia 26 de maio contra um campo de refugiados em Rafah, no sul de Gaza, motivou uma série de manifestações em diferentes níveis sociais e políticos ao redor do mundo nos dias seguintes. A reação generalizada gerou até raras manifestações de mea-culpa por parte do governo liderado por Benjamin Netanyahu.
Mas o que esse ataque teve de diferente em relação a outros tantos já cometidos pelas IDF em Gaza, incluindo outros campos de refugiados? O MigraMundo ouviu dois pesquisadores que comentaram essa e outras questões em relação ao recente conflito no Oriente Médio.
O ataque ocorrido em Rafah foi seguido de um incêndio, que matou 45 pessoas, segundo fontes palestinas. O exército israelense, por sua vez, alega que foi um arsenal de armas escondido pelo Hamas foi a verdadeira causa das chamas.
Cerca de 36 mil palestinos foram mortos e 81 mil ficaram feridos desde os ataques terroristas liderados pelo grupo extremista Hamas no sul de Israel, em 7 de outubro, seguidos pela resposta israelense ainda em curso.
Embora o direito de reação a Israel após os ataques de 7 de outubro tenha sido defendido por parte da comunidade internacional, o modo como o governo de Benjamin Netanyahu tem condizido o conflito cada vez mais leva Israel a uma posição de isolamento e de questionamento. Uma situação que se aprofundou após o ataque da semana passada a Rafah e as mortes que se seguiram.
De acordo com dados da ONU, cerca de 1,7 milhões de pessoas foram deslocadas de forma forçada em Gaza em razão do conflito, algumas vezes em oportunidades diversas. Apenas de Rafah, mais de 1 milhão de pessoas já fugiram após o aumento das operações militares israelenses, buscando abrigo em instalações danificadas e destruídas na vizinha Khan Younis.
Zona segura?
Campos de refugiados tem sido alvos frequentes de ataques por parte de Israel, sob o pretexto destes locais abrigarem líderes do Hamas e das ações serem descritas por Tel Aviv como “precisas”. O primeiro deles ocorreu aina no final de outubro, contra o campo de refugiados de Jabalya. Apesar das condenações de organizações internacionais, as hostilidades contra esses assentamentos prosseguem durante o conflito.
No entanto, a ofensiva aérea contra Rafah e as mortes que se seguiram tiveram um peso diferente, conforme relataram pesquisadores ouvidos pelo MigraMundo.
“O ataque de Israel contra Rafah se distingue dos outros alvos civis e humanitários atacados por Israel porque é uma localidade que concentrava um número muito grande de palestinos justamente em decorrência de Israel ter informado que era uma região segura onde não seriam feitos ataques”, destacou Victor Del Vecchio, advogado de direitos humanos e mestre em direito internacional pela USP.
No começo da guerra, os combates estavam concentrados no norte, na Cidade de Gaza, que acabou totalmente destruída após os ataques. A população foi se deslocando para o sul, em direção a Rafah, que fica próxima à fronteira com o Egito. O local, inclusive, foi a porta de saída de brasileiros e pessoas de outras nacionalidades que conseguiram deixar a região em voos e outras operações de repatriação.
Com Gaza e Khan Younis – outra cidade palestina na região – totalmente em ruínas, Rafah se tornou o único local com algum tipo de estrutura capaz de servir de acolhida, ainda que de forma precária e provisória. No entanto, o governo Netanyahu passou a descrever a localidade como “último bastião do Hamas” e de anunciar por semanas que faria uma grande ofensiva por terra. Além disso, ordenou aos palestinos em Rafah que se deslocassem para fora da cidade, para campos provisórios dentro de Gaza.
O professor Gilberto Rodrigues, pós-doutor pela Universidade de Notre Dame (EUA) e professor de Relações Internacionais da UFABC (Universidade Federal do ABC), reforçou ainda que o ataque contra Rafah se insere em uma situação de “deadlock” (sem saida), o que agrava a culpabilidade do governo de Israel nesse caso. Ele ainda citou as acusações que já correm contra Tel Aviv em Cortes internacionais por causa da condução da guerra em Gaza.
“Ataques em campos de refugiados são crimes de guerra e Israel está sendo processado na Corte Internacional de Justiça e investigado pela Procuradoria do TPI (Tribunal Penal Internacional), ambos em Haia. O TPI já solicitou mandados de prisão internacional contra o Primeiro-Ministro [Benjamin Netanyahu], o Ministro da Defesa e outras autoridades militares, assim como de lideranças políticas do Hamas. O ataque em Rafah se reveste de maior gravidade devido a não haver rota de fuga, sem condições de haver um deslocamento, ainda que forçado, para outro local”.
Líderes internacionais condenaram rapidamente os ataques a Rafah, como o presidente da França, Emmanuel Macron. “Indignado com os ataques israelenses que mataram muitos refugiados em Rafah. Estas operações devem parar. Não existem áreas seguras em Rafah para civis palestinos. Faço um apelo pelo pleno respeito ao direito internacional e por um cessar-fogo imediato”, postou ele logo após o ocorrido, nas redes sociais.
No mesmo dia, Josep Borrell, chefe de política externa da UE, se disse “horrorizado com as notícias vindas de Rafah sobre ataques israelenses matando dezenas de pessoas deslocadas, incluindo crianças pequenas.”
“Eu condeno isso nos termos mais fortes,” disse ele, acrescentando: “Não há lugar seguro em Gaza. Esses ataques devem parar imediatamente. As ordens da CIJ (Corte Internacional de Justiça) e o DIH (Direito Internacional Humanitário) devem ser respeitados por todas as partes.
Reconhecimento da Palestina
Logo após o ataque a Rafah, três países europeus anunciaram em conjunto o reconhecimento da Palestina como Estado independente: Espanha, Irlanda e Noruega. Os dois primeiros inclusive, fazem parte da União Europeia. O govermo da Eslovênia, outro integrante do bloco comum europeu, decidiu ir pelo mesmo caminho e agora depende de aprovação do Parlamento nacional para oficilizar a medida.
Embora a Palestina seja reconhecida no momento por 146 países no momento (incluindo o Brasil), a Europa Ocidental em geral e os Estados Unidos permanecem refratários à ideia. Algo que sofreu certa mudança após os ataques a Rafah, que ganhou dimensões maiores e se inseriu em um cenário de maior pressão internacional contra Israel para que seja feito um cessar-fogo.
“Entendo que esse reconhecimento dos três Estados ainda é um movimento muito tímido perto daquilo que a Comunidade Internacional pode e deveria fazer. Mas ele é importante porque ele mostra um exemplo para que outras Nações sigam, sobretudo as europeias”, acrescenta Del Vecchio.
“Essas adesões são relevantes pelo histórico de cooperação humanitária, e no campo dos Direitos Humanos, que esses países tem no contexto europeu e global. A adesão dependerá mais dos apoios internos dos demais países. Mas por si só produz um efeito moral”, completou Rodrigues.
Espanha e Noruega estão entre os dois países que decidiram manter o financiamento à UNRWA, sigla em inglês para a Agência da ONU dedicada aos Refugiados Palestinos, quando outros Estados decidiram suspender os repasses após denúncias de Israel de que integrantes da entidade estariam envolvidos nos ataques. Uma comissão independente foi nomeada pela ONU para investigar as denúncias de Tel Aviv, que não foram comprovadas. No entanto, o relatório final, entregue em abril, apontou 50 recomendações para aperfeiçoar os mecanismos de neutralidade, que foram aceitas pelo chefe da UNRWA, Philippe Lazzarini, e pelo secretário-geral da ONU, António Guterres.
Em nota, especialistas de direitos humanos da ONU instaram todos os países a reconhecer o Estado da Palestina. Eles destacam a importância dessa medida para os direitos do povo palestino e apelam por apoio ao cessar-fogo imediato em Gaza. Ainda segundo o grupo, essa é uma pré-condição para a paz duradoura na Palestina e em todo o Oriente Médio, tendo como ponto de partida a declaração imediata de cessar-fogo em Gaza e o fim das incursões militares em Rafah.
Decisão da CIJ
O Escritório de Direitos Humanos da ONU nos Territórios Palestinos expressou profunda preocupação com o impacto das crescentes operações militares de Israel em Gaza nas organizações da sociedade civil locais.
Mesmo alegando que conseguiu alcançar o objetivo de eliminar dois comandantes do Hamas na região, lideranças de Tel Aviv foram obrigadas a fazer mea-culpa diante da repercussão negativa do ataque. O premiê Netanyahu, em uma manifestação rara, chamou a ação de “erro trágico”.
Apesar dessa pressão crescente – ou com “Todos os Olhos em Rafah”, conforme prega uma campanha viral nas redes sociais – o governo Netanyahu segue com as ações militares contra o território palestino.
O ataque contra o acampamento em Rafah, inclusive, ocorreu apenas dois dias depois de a Corte Internacional de Justiça (CIJ), o tribunal mais alto da Organização das Nações Unidas (ONU) para julgar disputas entre Estados, ordenar que Israel interrompesse todas as operações militares em Rafah. Embora a decisão seja obrigatória, a entidade não dispõe de força policial para garantir que o país a cumpra.
A corte também determinou que o governo israelense permitisse a entrada de ajuda humanitária pela fronteira entre o sul de Gaza e o Egito, além de garantir o acesso de observadores externos para monitorar a situação.
O governo de Israel, por sua vez, disse que alegações apresentadas são “falsas, ultrajantes e nojentas” e que a campanha militar “não levou e não vai levar à destruição da população civil palestina em Rafah”.