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domingo, dezembro 22, 2024

Projeto Guadalupe retrata imigrantes no DF a partir da saudade

“Uma torre de Babel. Te convido a vivenciar essa experiência de não entender uma palavra escutada, mas de compreender o que cada um sente ao falar sobre a saudade que sente do que deixou pra trás.”

São com essas palavras que a cineasta e fotógrafa Erica Suelen de Sousa resume o Projeto Guadalupe, idealizado por ela própria e que retrata oito imigrantes que vivem no Distrito Federal a partir da saudade – sentimento comum à grande maioria daqueles que deixam a terra natal em busca de novas perspectivas de vida.

Em entrevista ao MigraMundo, Erica conta que o nome do projeto vem de Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira do México e também protetora dos migrantes. “Não há nome mais inspirador para um projeto que mostra o lado mais humano desses nômades do mundo todo que se aventuram em territórios desconhecidos – nessa ocasião, no Brasil”.

Com a fase inicial concluída, Erica já planeja os próximos passos, que incluem transformar o Guadalupe em uma exposição itinerante pelo país e que ajude a sociedade a refletir sobre as migrações e a repudiar a xenofobia. “Colocar-se no sapato do outro nos faz mais humanos e nos coloca a pensar duas vezes antes de cometer atos de discriminação”.

Oito imigrantes compõem o Projeto Guadalupe, idealizado por Erica. Crédito: Erica Suelen de Souza
Oito imigrantes compõem o Projeto Guadalupe, idealizado por Erica.
Crédito: Erica Suelen de Souza

A entrevista inaugura ainda uma nova série no MigraMundo, intitulada Imigração e Saudade, na qual serão apresentados semanalmente pequenos perfis elaborados pela Erica dos oito personagens do Projeto Guadalupe. O primeiro deles vai ao ar no domingo (22).

MigraMundo: Por que a ideia de retratar migrantes que vivem no DF?
Erica Suelen de Sousa:
Tudo começou no processo de escolha das temáticas a serem abordadas no núcleo de conteúdo cultural do qual faço parte (Núcleo Humanízate) e que tem o apoio institucional da Defensoria Pública da União (DPU) e o IESB. Na ocasião, a DPU nos apresentou seus grupos de trabalho e entre eles estava o GT Migrantes e Refugiados. Desde o primeiro contato com os defensores e seus grupos de trabalho me sensibilizei com o tema de migrações. É um tema que precisa ser apresentado a sociedade para poder enfrentar uma das suas maiores problemáticas que é a xenofobia e não a “invasão” como infelizmente muitos ainda se referem ao fenômeno migratório. No início, a pesquisa se dá no DF e no Goiás por questões de logística mesmo. Ao não ter condições e nem apoio financeiro ainda para ir além das fronteiras do Goiás, comecei a fazer o mapeamento desses imigrantes que se encontram mais perto de mim, o que me levou a questões nunca antes feitas como por exemplo: ando todos os dias na rodoviária do plano piloto, cruzo com dezenas de imigrantes estrangeiros no meu caminho e nunca parei pra pensar o por quê escolheram o DF, ou Goiás como o seu novo lar. Acho curioso porque já morei fora por muitos anos e era muito raro encontrar alguém que conhecesse algo sobre Goiás e até mesmo algum interesse sobre Brasília. Dessas questões obtive as mais variadas respostas em minha pesquisa: muitas respostas felizes nos casos pessoas que escolheram o Goiás como um oásis para fugir das grandes cidades e se sentir em paz se conectando com a natureza e aos costumes do interior. Mas ao mesmo tempo tive respostas muito tristes, como no caso de alguns grupos de estrangeiros que chegaram no DF vítimas de tráfico humano para trabalho escravo. Percebi que a pesquisa crescia cada dia mais e que o Projeto Guadalupe deveria ser feito em etapas, e essa primeira etapa apresentada se concentra nessa região. Agora concluída, a intenção é expandir a pesquisa pelo Brasil e procurar continuar sempre indo mais longe geograficamente nesse mapeamento humano.

Por que o nome Guadalupe para o projeto?
A Virgem de Guadalupe, é uma das mais populares santas da América Latina. Oficialmente é a padroeira do México e também protetora dos migrantes. Sua popularidade com os migrantes que no início, em sua maioria eram mexicanos que arriscaram suas vidas tentando cruzar a fronteira para os Estados Unidos em busca de uma vida melhor, também ganha devotos por toda América Latina, principalmente. Não há nome mais inspirador para um projeto que mostra o lado mais humano desses nômades do mundo todo que se aventuram em territórios desconhecidos, nessa ocasião, no Brasil. Minha inspiração para o nome do projeto veio de uma música do grupo Calle 13, chamada Pa’l Norte (veja no player abaixo). Achei Guadalupe um nome que merece ser reconhecido e que pode se tornar universal e inspirador.

Como você chegou aos personagens retratados no projeto? Qual foi a reação deles no começo e como reagiram ao resultado final?
Em cada etapa do projeto me envolvi de corpo e alma e sempre tentei vivenciar as experiências dessa realidade. Depois de algumas pesquisas teóricas parti para campo inspirada nas aventuras dos mesmos migrantes. As primeiras tentativas foram na Rodoviária do Plano Piloto de Brasília, onde tentei reconhecer os estrangeiros ambulantes e artesãos que por lá trabalhavam e apresentar o projeto. Aos poucos fiz amigos estrangeiros na rodoviária que me ajudava a encontrar mais pessoas e cada um deles teve relação direta na pesquisa. No começo algumas pessoas ficaram desconfiadas com meu interesse que lhes parecia muito estranho e se sentiam fragilizadas por questões de legalidade migratória e que queriam conservar a própria identidade. E a privacidade de cada um foi uma condição sempre respeitada.

Os personagens entrevistados também comentaram em ocasiões sobre suas próprias reflexões sobre o tema de migração e saudade. Um inesquecível momento foi a entrevista com o Valentín, um argentino que me disse que ao olhar e conversar com a minha lente, sentia que estava falando com o mundo e ele precisava expressar tudo o que sentia naquele momento com o coração, pois era uma oportunidade de compartilhar uma mensagem importante com palavras bonitas e queria dizer que somos todos irmãos. Pintor de “filetes argentinos”, durante a entrevista ele pintou uma placa com a frase: “Bem-vindos”, me agradeceu pela oportunidade e seguiu seu caminho.

Qual foi a maior dificuldade que você encontrou durante a execução do Projeto Guadalupe?
A maior dificuldade foi a limitação temática. Percebi que existem vários pontos a serem explorados, que o projeto parecia uma árvore que criava galhos e crescia cada vez mais. Outra dificuldade foi a questão da logística, que me levou a “me jogar” em situações nas quais ficava sozinha com meus equipamentos com limitação técnica e tentar capturar o melhor material possível. A parte linda disso tudo são as pessoas que encontrei  no caminho e se ofereciam em me ajudar com caronas e até com assistentes nas produções dos vídeos.

Erica Suelen de Sousa, idealizadora do Projeto Guadalupe. Crédito: Arquivo pessoal
Erica Suelen de Sousa, idealizadora do Projeto Guadalupe.
Crédito: Arquivo pessoal

Você teve algum tipo de apoio para executar o projeto?
Tive um orientador que participou de todas as etapas do projeto comigo e me ajudou a dar forma ao projeto: o professor Daniel Mira que é o idealizador e orientador do nosso Núcleo Humanízate. Alguns colegas do núcleo também estiveram presentes comigo em várias ocasiões em que precisei de ajuda. O apoio institucional veio do IESB e da DPU, que ajuda o núcleo disponibilizando espaço para reuniões e algumas orientações. Mas estamos sempre em busca de mais apoio e intercâmbio de informações relacionadas a temas sociais, que são nosso maior objeto de estudo. Já conseguimos no IESB uma ajuda para montar a nossa exposição que será realizada no mês de novembro em Brasília. e estou pensando em começar uma campanha de crowdfunding para também poder seguir e fazer o Guadalupe crescer ainda mais.

Quais os próximos passos?
Agora que a primeira fase do projeto Guadalupe está concluída os próximos passos são as produções dos produtos culturais. O resultado final da primeira fase já está pronto e agora precisa ser mostrado ao mundo. Busco espaços para exposição e divulgação do projeto tanto no Brasil como em qualquer outro pais, já que o fenômeno migratório é um tema mundial e de interesse de todos.

Depois do Projeto Guadalupe, você pensa em alguma outra ação relacionada às migrações?
Cada dia que passa sinto que Guadalupe é só o início de um trabalho de uma vida inteira. É só a primeira fase ou um capítulo de um trabalho que terá vários outros capítulos. A poética no tema saudade foi a escolha que fiz de um caminho a seguir como o começo de uma grande aventura que ainda está por vir. O DF e o Goiás são apenas pontos de partida e pretendo explorar as diferentes temáticas e problemáticas dentro das migrações com o objetivo de desconstruir preconceitos, empoderar migrantes e aproximar seres humanos nos reconhecendo todos como moradores de um mesmo lar: nosso planeta Terra.

Na sua opinião, que tipo de legado o Projeto Guadalupe deixa para quem o conhecer e deixou para quem participou dele?
Ele deixa um convite a reflexão sobre o porquê as fronteiras nos separam tanto moralmente. Qual a necessidade de se incomodar com a vinda de pessoas que compartilham um mesmo planeta com você? Por que concordamos com discursos de políticos xenofóbicos se um dia podemos nós sermos os emigrantes por diferentes razões que podem aparecer em nossas vidas? Colocar-se no sapato do outro nos faz mais humanos e nos coloca a pensar duas vezes antes de cometer atos de discriminação. O Projeto Guadalupe vem sem legendas ou traduções. É uma Torre de Babel. Te convido a vivenciar essa experiência de não entender uma palavra escutada, mas de compreender o que cada um sente ao falar sobre a saudade que sente do que deixou para trás.

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