Uma crítica comum aos estudos e práticas sobre migrações no Brasil se dava pelo fato do debate ser concentrado especialmente em estados do sul e sudeste, além da capital Brasília. No entanto, fatores como a migração venezuelana e a resposta a esse fluxo alteraram de forma decisiva esse cenário, colocando também outras regiões nesse circuito, especialmente no Norte e Nordeste. E a criação de iniciativas de políticas públicas nesses locais ajudou a consolidar essa descentralização.
Um dos exemplos práticos dessa mudança foi a criação do Fórum Nacional de Conselhos e Comitês Estaduais para Refugiados e Migrantes (FONACCERAM), que realizou sua primeira reunião em julho de 2022, em Natal, capital do Rio Grande do Norte. O Estado, inclusive, ajuda a capitanear esse debate, tendo em operação desde 2019 o Comitê Estadual Intersetorial de Atenção aos Refugiados, Apátridas e Migrantes (CERAM-RN), que atualmente dirige o fórum nacional. E conta também com uma Política Estadual criada por lei e um Plano Estadual com metas e diretrizes para serem atingidas até 2024.
Outro exemplo prático desses novos tempos sobre a migração internacional no Nordeste se dá a respeito da designação do FONACCERAM para integrar o Eixo de Integração Local do Grupo de Trabalho ligado ao Ministério da Justiça para estabelecimento de uma futura Política Nacional de Migrações.
Em entrevista ao MigraMundo, o coordenador do CERAM-RN, Thales Dantas, falou sobre papel que vem sendo assumido pelo Estado e pelo Nordeste como um todo nos debates e ações práticas a respeito das migrações no Brasil
MigraMundo: Quando exatamente se notou a necessidade de criar um comitê dedicado à temática no governo do RN? Ele se baseou em alguma experiência anterior?
Thales Dantas: Apesar do Rio Grande do Norte ter tido uma experiência de recebimento de famílias refugiadas entre 2005 e 2010, somente com o advento da Operação Acolhida e a chegada de famílias refugiadas venezuelanas em 2018/2019 ao território potiguar (nos municípios de Caicó e Mossoró) e de refugiados venezuelanos indígenas Warao, em setembro de 2019, no Município de Natal, o Governo do Estado do Rio Grande do Norte compreendeu a emergência na criação de um espaço colegiado para discussão e planejamento de ações que visam incluir a população refugiada, apátrida e migrante na sociedade potiguar.
A Minuta do Decreto que criou o CERAM-RN foi baseada nas experiências do Município de São Paulo, do Estado do Paraná e do Estado do Mato Grosso do Sul. Além disso, fizemos uma extensa pesquisa para avaliar como o Governo Federal, os Governos Estaduais e as Prefeituras estavam respondendo ao fluxo migratório “voluntário” de indígenas venezuelanos e quais as respostas estavam sendo dadas à Operação Acolhida. Após criado o CERAM/RN, buscamos a parceria com as Agências Internacionais (ACNUR e OIM) e os demais Estados do Nordeste (a exemplo do Maranhão e Ceará) para dinamizar e planejar nossa atuação enquanto órgão público colegiado.
Em 2022, Natal recebeu o Fórum Nacional de Conselhos e Comitês Estaduais para Refugiados e Migrantes (FONACCERAM), atualmente coordenador pelo CERAM-RN. Teve ainda a designação para o GT do Ministério da Justiça para estabelecimento de uma Política Nacional Migratória. O que esses fatos recentes representam para você e para o debate sobre as migrações, especialmente quanto à implementação de políticas públicas para a população migrante e refugiada?
A escolha para que o Estado do Rio Grande do Norte sediasse esse Encontro Nacional foi simbólica, representativa e demonstra o reconhecimento nacional de um esforço árduo que iniciamos em 2019 com a criação do Comitê Estadual Intersetorial de Atenção aos Refugiados, Apátridas e Migrantes (CERAM), por força do Decreto Estadual nº 29.418, de 27 de dezembro de 2019, e com as demais ações realizadas pelo Governo do Estado (criação de Plano Estadual por Decreto, encaminhamento do Projeto de Lei que cria a Política Estadual, investimentos através do RN Chega Junto, da SETHAS, e Projeto de Inovação Institucional da FAPERN, além de parcerias com as agências internacionais, por exemplo). E que culminou com o atual momento, em que um pequeno Estado da região Nordeste do Brasil passa a ser figura central nas discussões nacionais acerca do tema de refugiados, apátridas e migrantes.
Quando se fala em migrações, os Estados do Nordeste não costumam ser lembrados. Na sua opinião, essa visibilidade reduzida prejudica a viabilização de ações em favor dessas comunidades na região?
Com certeza. Infelizmente não possuímos, ainda, uma Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia, que possa planejar e executar ações regionalizadas, apesar de estar prevista no art. 120 da Lei de Migrações. A invisibilidade da região Nordeste é um dos reflexos dessa ausência de coordenação nacional. Cobramos bastante do Governo Federal uma posição de proatividade no tema das migrações. Afinal de contas, como podem os Estados e Municípios executarem a fictícia Política Nacional, sem recursos, capacitação, orientação técnica ou acompanhamento? A situação dos venezuelanos e da Operação Acolhida não é a única que vivenciamos no Brasil. Temos refugiados, apátridas e migrantes de diversas nacionalidades e a complexidade de incluí-los no atendimento pelo serviço público local. Só será possível superar essa invisibilidade do Nordeste na pauta migratória, quando o Governo Federal compreender que o país é continental e que é necessário planejar as ações com as especificidades de cada região. Enquanto isso não acontecer, vamos continuar sofrendo com a invisibilidade e as dificuldades que listei.
O CERAM-RN foi criado no final de 2019, algo ainda bem recente. Ele surgiu a partir de alguma demanda da sociedade civil local, a partir da interiorização dos venezuelanos ou por algum outro fator?
Na realidade a criação do CERAM-RN partiu de uma avaliação do próprio Governo do Estado de que a migração não é algo pontual e esporádico, mas natural, e que se faz necessário implementar o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS) 10.7 que prevê que os Estados devem “facilitar a migração e a mobilidade ordenada, segura, regular e responsável de pessoas, inclusive por meio da implementação de políticas de migração planejadas e bem geridas“. Após essa definição pela Governadora Fátima Bezerra, convocamos a sociedade civil, o Ministério Público Federal, Defensorias Públicas do Estado e da União, Polícia Federal, Agências Internacionais, Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Universidades, Prefeituras Municipais, Vereadores, Deputados Estaduais e Federais, pesquisadores e refugiados, apátridas e migrantes, para compor o colegiado e pactuar a responsabilidade de cada um com a migração ordenada, segura, regular e responsável.
De acordo com dados do governo estadual, são cerca de 13 mil imigrantes e refugiados no RN. Qual a nacionalidade mais presente? Como eles chegam ao Estado?
O Rio Grande do Norte é um estado turístico e a população migrante é parte presente nele desde os anos 1990. Somos o 4º Estado da região Nordeste a ter a maior quantidade de migrantes, (Bahia em 1º, Ceará em 2º e Pernambuco em 3º). As principais nacionalidades (acima de mil) são de italianos, portugueses, argentinos, espanhóis e colombianos, que residem, principalmente, em Natal, Tibau do Sul (em razão da Praia de Pipa), Parnamirim e Mossoró. A principal porta de entrada é pela via aérea ou marítima. No entanto, com o advento da migração de venezuelanos indígenas Warao, o deslocamento de migrantes pela via terreste entre os Estados do Nordeste vem se tornando comum.
Quais têm sido as dificuldades relatadas pelos imigrantes no Estado?
A principal dificuldade relatada é lutar contra a invisibilidade e falta de medidas ou iniciativas de inclusão dessa população no mercado de trabalho, no atendimento no serviço público (principalmente nos Sistemas Únicos de Assistência Social e Saúde).
E quais as dificuldades e desafios que o comitê tem enfrentado quanto às políticas públicas? E com o Legislativo estadual?
O CERAM/RN possui toda legitimidade e condições de atuação desde a sua criação, e o Governo do Estado vem investindo, pela primeira vez na História, recursos públicos do Tesouro Estadual na política migratória estadual. A governadora lançou em junho de 2021 o I Plano Estadual de Atenção aos Refugiados, Apátridas e Migrantes (2021-2024) – aprovado por força do Decreto Estadual nº 30.670, de 21 de junho de 2021 – que define as ações a curto, médio e longo prazo ao qual o Estado deverá executar até o ano de 2024, o que já é um desafio gigantesco. Outro desafio é o atendimento e acompanhamento por parte das políticas públicas dos Municípios e da União.
Por fim, como você passou a lidar com a temática migratória? Já teve alguma experiência anterior ao comitê?
Desde 2014 estou, de alguma forma, na militância dos direitos humanos aqui no Rio Grande do Norte e já havia atuado em situações específicas quando havia a necessidade de se analisar a situação jurídica de algum migrante, na época que atuei no Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH) ou quando fui conselheiro do Conselho Estadual de Direitos Humanos e Cidadania (COEDHUCI) entre 2017 e 2019. Desde 2019 trabalho na Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Norte (PGE-RN) e fui convidado pelo Governo para assumir a função de Presidente do CERAM-RN em razão da experiência em outros órgãos colegiados, a exemplo de ter sido Vice-Presidente e Presidente do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (CEPCT). Mas desde o primeiro dia em que assumi a Presidência do CERAM-RN, enquanto representante do Governo do Estado, me apaixonei pela temática migratória e venho pesquisando sobre o tema desde então.