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quinta-feira, novembro 21, 2024

Uma série sobre grave e generalizada violação de direitos humanos e o reconhecimento de refugiados pelo Brasil

Série de artigos do ProMigra tem como objetivo trazer para o debate público a maneira pela qual o Estado brasileiro vem utilizando o conceito de grave e generalizada violação de direitos humanos para reconhecer refugiados

Por Aline Araújo, Ieda Giriboni e Marina Queiroz
Do ProMigra

A migração dos cidadãos venezuelanos é emblemática: não apenas representa o maior fluxo de mobilidade humana que o Brasil já recebeu, como recolocou a América Latina no centro do debate sobre migração e refúgio no cenário mundial. Nos mais de 25 anos que aplicamos a chamada Lei de Refúgio (Lei nº 9.474/1997), foi a situação da Venezuela que alterou sistematicamente a maneira pela qual o Brasil reconhece refugiados.

Atualmente, segundo dados consolidados pelo ACNUR e pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), o Brasil tem mais de 65 mil pessoas reconhecidas como refugiadas de 121 nacionalidades diferentes. O maior número refere-se a venezuelanos, com mais de 53 mil pessoas reconhecidas como refugiadas, seguidas por pessoas da República da Síria, com pouco menos de 4 mil. De acordo com a plataforma R4V, até 23 de janeiro de 2023, havia 97.155 solicitações da condição de refugiado por pessoas venezuelanas no Brasil.

A base da mudança no modo de reconhecer a condição de refugiado reside no conceito de “grave e generalizada violação de direitos humanos”, trazido pelo inciso III, do artigo 1º da Lei de Refúgio. A justificativa do governo brasileiro foi no sentido de reconhecer uma situação objetiva na Venezuela de instabilidade política, social e econômica, de sorte que a solicitação de refúgio dos cidadãos venezuelanos fosse manifestamente fundada. Assim, o CONARE construiu um aparato burocrático que permitiu a simplificação dos procedimentos, incluindo o cruzamento de dados, a dispensa da entrevista de elegibilidade e a possibilidade de decisões em bloco.

A Lei de Refúgio no Brasil

Antes de avançar, é preciso retomar brevemente alguns preceitos. A concepção clássica de refugiado, que é aquela utilizada pela comunidade internacional, foi estabelecida pela Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) e pelo Protocolo Adicional (1967). A partir destes, entende-se como refugiados as pessoas que deixam seus países de origem e não podem retornar devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões como raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política.

Sabemos que o Brasil é aclamado internacionalmente por dispor de uma das normativas específicas mais avançadas no que tange ao refúgio. Isto porque reconhecemos como refugiados aqueles que se enquadram na definição clássica (conforme o artigo 1º, incisos I e II da Lei de Refúgio), mas, também, adotamos uma definição ampla de refugiado, estabelecida pela Convenção de Cartagena de 1984 (conforme o inciso III da referida lei). Neste caso, incluem-se os casos de deslocamentos que são motivados pelas situações de grave e generalizada violação de direitos humanos.

Com a definição ampliada, o Brasil pode oferecer a proteção legal do refúgio para pessoas que não necessariamente são vítimas de perseguição individualizada, mas que ainda assim têm seus direitos humanos violados a nível de grupo ou de modo generalizado no seu país de origem. Ou seja, apesar da condição de refugiado ser determinada individualmente, em razão do contexto sistemático de violações maciças de direitos humanos, grupos inteiros têm que se deslocar, o que indica que os membros deste grupo podem, individualmente, ser considerados como refugiados.

O Conare

Desde o início das atividades do CONARE, órgão criado pela Lei de Refúgio para decidir sobre as solicitações de refúgio, adotava-se o mesmo procedimento de reconhecimento da condição de refugiado para os casos de perseguição, nos termos da definição clássica, e para os casos de grave e generalizada violação de direitos humanos. As solicitações eram analisadas individualmente, caso a caso, obedecendo ao procedimento previsto na legislação nacional, considerando as entrevistas de elegibilidade com cada um dos solicitantes.

A partir de junho de 2019 é possível observar uma mudança de paradigma na maneira em que o CONARE decide sobre a condição de refugiado. O comitê reconheceu a situação de grave e generalizada violação de direitos humanos na Venezuela e adotou um novo procedimento para esses casos, que inclui a possibilidade de adotar processos simplificados e realizar um reconhecimento por aceitação de grupo ou prima facie, em que se presume a inclusão dos solicitantes de nacionalidade venezuelana na definição de refugiado. Considerando então a situação objetiva do país de origem, o CONARE pode efetuar decisões em bloco.

Por causa disso, em um único dia do ano de 2019, o CONARE pode atribuir o status de refugiado a 21 mil venezuelanos. Esse número contrasta com a metodologia utilizada anteriormente: no ano de 2018, por exemplo, apenas 777 imigrantes de nacionalidades variadas, incluindo venezuelanos, foram reconhecidos como refugiados. Como resultado dessa mudança de paradigma no método de reconhecimento, entre dezembro de 2019 e agosto de 2020, o governo brasileiro reconheceu mais de 46 mil venezuelanos como refugiados.

Grave e generalizada violação de direitos humanos

Após análises detalhadas e a elaboração dos chamados Estudos sobre o País de Origem (EPOs), o CONARE também reconheceu a situação de grave e generalizada violação de direitos humanos em outros cinco países, para além da Venezuela: a Síria, o Iraque, o Afeganistão, e, mais recentemente, a República do Mali e a República de Burkina Faso. O CONARE identificou uma situação interna naqueles países de múltiplas violações de direitos humanos, resultando na necessidade de estabelecer procedimentos simplificados para o trâmite do reconhecimento da condição de refugiado daqueles cidadãos.

E quais são os requisitos para o CONARE reconhecer a situação de grave e generalizada violação de direitos humanos em um determinado país? Os cinco primeiros estão dispostos na Declaração de Cartagena, consistindo na identificação de:

  • violência generalizada;
  • agressão estrangeira;
  • conflitos internos;
  • violação maciça de direitos humanos;
  • ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública.

Além disso, o CONARE leva em consideração a orientação do ACNUR a respeito da situação do país analisado e sua recomendação quanto ao reconhecimento de refugiados, bem como o posicionamento do Ministério das Relações Exteriores, tendo em vista sua função diplomática de referendar os estudos e as análises sobre a complexidade da situação país analisado.

O novo método foi bastante celebrado pela comunidade internacional. De um ponto de vista técnico-normativo, a metodologia aplicada pelo CONARE está alinhada com o recomendado pelo ACNUR no Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado. Ainda, de um ponto de vista político, representou uma afirmação ideológica do governo anterior em relação à oposição ao governo venezuelano[3]. Assim, embora o refúgio seja uma questão de direitos humanos, sua dimensão técnico-normativa não esgota a compreensão dos diversos usos que os Estados utilizam deste instituto.

Existem também fatores burocráticos que influenciam a maneira pela qual o refúgio é regulado. Apesar do novo método de reconhecimento ter sido adotado visando a reduzir o número de solicitações de refúgio aguardando decisão, verificou-se um aumento substancial da fila de espera para o processamento das solicitações, ultrapassando o número de 100 mil pessoas que aguardam a decisão. Nesse sentido, um dos principais desafios deste ano é a diminuição do contingente de processos para serem analisados, ao mesmo tempo em que o Brasil deve manter seu compromisso com a garantia do acesso ao procedimento de refúgio, sem restringir seu acesso ou efetuar rejeições prima facie.

Não nos esqueçamos de que, com o reconhecimento da condição de refugiado pelo Estado brasileiro, faz-se importante construir uma política nacional com protagonismo de pessoas refugiadas e migrantes. É fundamental que o novo governo, neste e nos próximos anos, trate da regulamentação do artigo 120 da Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017), que estabelece a Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia. A política prevê a parceria do governo federal com estados e municípios para o atendimento a imigrantes e refugiados que chegam ao Brasil, e também para os migrantes internos.

Série MigraMundo e ProMigra

Considerando este cenário, os integrantes do Grupo de Trabalho Acadêmico do ProMigra pretendem elaborar uma série de textos cujo objetivo é esboçar uma resposta para a questão: como o Brasil tem utilizado o conceito de grave e generalizada violação de direitos humanos no âmbito do reconhecimento de refugiados? Os primeiros seis textos da série têm como tema as situações relativas aos países que já obtiveram o reconhecimento dessa condição pelo CONARE. Metodologicamente, será realizada revisão bibliográfica de EPOs, relatórios de organizações internacionais e trabalhos acadêmicos sobre a temática.

Nos textos seguintes, abordaremos as situações de outros países, não reconhecidos pelo CONARE, mas que também apresentam conflitos internos que ocasionam instabilidade e crises humanitárias ante as violações sistemáticas de direitos humanos. São cenários, portanto, que ocasionam deslocamentos internos ou internacionais de pessoas em situação de vulnerabilidade, em busca da proteção de seus direitos, o que gera, por vezes, um impacto nas solicitações de refúgio no Brasil.

Dessa forma, espera-se trazer para o debate público a maneira pela qual o Estado brasileiro vem utilizando o conceito de grave e generalizada violação de direitos humanos para reconhecer refugiados. Com base nos casos analisados, investigamos se esse uso restringe-se à aplicação de critérios técnicos ou se sofre influência de fatores políticos ou mesmo burocráticos. Levaremos em conta as relações entre os países envolvidos e o nosso contexto interno no momento de cada decisão, o que pode ajudar a explicar porque alguns países têm essa situação reconhecida e outros não. Assim, poderemos compreender como se dá na prática a realização de uma ideia tão importante para a garantia da dignidade humana.

Sobre as autoras

Aline Araújo é advogada, mestranda em Sociologia pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Brasília, pesquisadora do Observatório Internacional das Migrações e membro do ProMigra.

Ieda Giriboni é graduanda na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e membro do ProMigra.

Marina Goulart de Queiroz é advogada, mestranda em Ciências Jurídico-Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e membro-coordenador do GT Acadêmico do ProMigra.

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