Caçula de uma família considerada burguesa no Vietnã, Thái Quang Nghiã viu seu pai gerir campos de arroz e vender ao governo por muitas décadas, até que em 1974 o Vietnã do Norte (comunista) invade sua cidade natal, Saigon [atual Ho Chi Minh, então no Vietnã do Sul], e sua família teve todos os seus bens confiscados.
O vietnamita, com 20 anos na época, abandonou a escola e foi enviado para um campo de reeducação, onde era forçado a trabalhar o dia todo como escravo.
“Faziam na gente um tipo de lavagem cerebral para que mudássemos nossos pensamentos. Trabalhávamos desde as cinco da manhã até a noite. Saí de lá mais revoltado do que era”, lembrou Thái.
Nesse local, permaneceu por um mês, até que conseguiu a liberdade e decidiu, juntamente com a família que a melhor escolha seria fugir do país para não ser morto.
Foi em outubro de 1978 que Thái partiu sozinho em um barco pesqueiro com mais 67 vietnamitas. Foram resgatados em alto mar pelo navio Jurupema, de propriedade da Petrobras.
“Víamos vários barcos passando, mas ninguém parava para nos ajudar. Até que o Jurupema nos resgatou. Foram dias muito difíceis, inclusive passamos muita fome”, contou o refugiado.
Ao chegar ao Brasil, desembarcou no Rio de Janeiro em pleno carnaval. Thái lembra que o Rio estava lotado por conta do feriado e foi acolhido pela Cruz Vermelha. Só depois de dois meses foi encaminhado pelas Nações Unidas (ONU) para São Paulo, no abrigo temporário da instituição filantrópica Missão Paz.
A casa que acolheu os vietnamitas resgatados se chamava AVIM (Associação dos Voluntários para a Integração de Migrantes) e desde 2002, passou a chamar Casa do Migrante. Nesse local permaneceu por seis meses.
“Quando cheguei não entendia nada de português, não sabia uma palavra e era impossível me comunicar. Era cego, surdo e mudo. Como sempre gostei de estudar, criei um dicionário vietnamita-português e passei a estudar sozinho”, contou Thái.
O dicionário, que posteriormente foi publicado, contém cerca de 14 mil palavras e ajudou o vietnamita a garantir fluência no português em pouco tempo.
No abrigo, dividia quarto com outros quatro vietnamitas. Na época o local recebia migrantes internos e um grande número de chilenos que fugiram do país de origem devido a repressiva e violenta ditadura de Pinochet (1973-1990).
A persistência e a vontade de vencer, fez com que Thái conseguisse passar no vestibular da USP e cursou a graduação em matemática. Durante o período como universitário já tinha um bom emprego, trabalhava como programador em um dos melhores bancos do país. Ele tinha um bom salário, o emprego era estável, mas o destino deu uma reviravolta na vida dele.
“Tinha uma pessoa que devia uma quantia em dinheiro para mim na época, e pagou essa dívida e, uma fábrica que havia falido e um estoque de mais ou menos 400 bolsas para que eu administrasse. Eu resolvi arriscar”, disse o empresário.
Como as vendas iam muito bem, Thái decidiu cursar Administração de empresas, que foi concluído em 2002. Logo em seguida, teve uma ideia que mudaria a vida dele. Ao se dar conta que todos os estrangeiros que visitavam o Vietnã levavam uma sandália feita da borracha do pneu como lembrança, decidiu produzir os mesmos calçados no Brasil.
Não demorou muito para os produtos se transformarem na marca Goóc, que no idioma nativo do empresário significa “raiz”. A empresa chegou a exportar para 35 países e vender mais de 6 milhões de unidades por ano. Em 2006, por exemplo, Thái chegou a faturar mais de R$ 60 milhões.
Em 2011, mais um episódio marcaria profundamente a vida do vietnamita; um incêndio destruiu por completo sua fábrica em Brotas, no interior de São Paulo. O empresário perdeu todo o estoque, máquinas e até os clientes por não conseguir cumprir os prazos de entrega. Diante das dificuldades que quase levaram sua marca à extinção, o empreendedor terceirizou sua produção e apostou no modelo de franquia, o qual deu certo e mantém até os dias de hoje.
Atualmente Thái vive com a família e tem três filhas. O vietnamita é conhecido em vários cantos do mundo por ser um especialista em dar a volta por cima.
Hoje, a Goóc é mundialmente conhecida pela preocupação com sustentabilidade, por pensar no reciclado. Mas, segundo o vietnamita, a mensagem que quer passar aos clientes vai muito mais além. “Antes de salvar o mundo, você tem que ser forte o suficiente pra aguentar os trancos e barrancos da vida. Aguentar os desafios da vida. Essa é a raiz da Goóc”, ressaltou o empresário.
A visita no abrigo onde tudo começou
Na primeira semana de dezembro, Thái retornou a Missão Paz, e visitou a Casa do Migrante, primeiro abrigo que o acolheu quando chegou ao Brasil. Visitou cada cômodo, e relembrou tudo que viveu há mais de quarenta anos. Durante o tour, logo encontrou o quarto 4, onde dormia e estudava português todos os dias.
“Naquela época a luz era bem fraquinha, as camas eram de ferro e as regras muito rígidas. Eu sentava no chão, apoiava meu caderno na cama e produzia meu dicionário. Aprender português foi fundamental para o meu crescimento no Brasil”, relembrou emocionado.
Thái não conteve a ansiedade. Em cada canto que passava contava uma história diferente. No final da visita, revelou que naquela época, ao escutar Roberto Carlos e Asa Branca, se emocionava porque sentia muita solidão e saudade da família.
Ao sentar na área de lazer do abrigo, finalizou a entrevista com uma mensagem ao refugiados e migrantes que estão passando pela mesma situação que viveu,
“Quando cheguei aqui estava perdido, mas aqui vivemos em um país livre onde podemos construirmos a nossa vida. A gente fica longe da família, da nossa cultura, mas estamos salvos e podemos trabalhar, estudar e crescer na vida novamente. Tente esquecer o passado e viva uma nova vida, vai dar certo!”, finalizou o vietnamita.
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