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domingo, dezembro 22, 2024

Especial: Mulheres migrantes e a busca pelo trabalho digno

Superar estereótipos, garantir a regularização migratória e o acesso às políticas públicas são ações necessárias para promover o empoderamento das mulheres no Brasil e atingir a igualdade de gênero. Experiências em São Paulo mostram que uma outra realidade é possível

Por Géssica Brandino e Rodrigo Borges Delfim
Colaboração de Eva Bella e Glória Branco
Traducción al español: Brisia Pina Zavala (leer aquí)

Salários menores nos mesmos cargos, preconceito, dificuldade em chegar aos postos de chefia e o acúmulo do trabalho reprodutivo e não remunerado. Vencer essas barreiras que impedem o empoderamento das mulheres ao redor do mundo e garantir a igualdade de gênero é uma meta das Nações Unidas para 2030 dentro dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. O desafio é ainda maior para as mais de 117 milhões de mulheres migrantes ao redor do globo –  320 mil no Brasil – que buscam no trabalho o meio de alcançar uma vida digna para além das fronteiras.

Acabar com a desigualdade de gênero, segundo dados do Fundo Monetário Internacional, tornaria a economia dos países mais rentável. Em algumas regiões do mundo, as perdas em PIB per capita que podem ser atribuídas à desigualdade de gênero no mercado de trabalho podem chegar a 27%. O FMI aponta que as mulheres representam cerca de 50% da população em idade ativa, mas apenas 40% da força de trabalho global, embora a participação feminina tenha crescido nas últimas duas décadas.

No Brasil, a presença das mulheres no mercado de trabalho tem se expandido e os anos de estudo são mais elevados que o dos homens. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2014, realizada pelo IBGE, mostra que as mulheres estudam em média oito anos, frente 7,5 anos dos homens. Mesmo assim, a desigualdade ainda precisa ser superada. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), homens ainda ganham mais do que as mulheres: em 2014, homens tinham o salário médio de R$ 1.831, enquanto as mulheres ganhavam R$1.288. As mulheres negras têm a menor remuneração, com valor médio salarial de R$ 946, e os homens brancos a maior, com média de R$ 2.393.

Manifestação da Amura (Asociación Civil de Derechos Humanos Mujeres Unidas Migrantes y Refugiadas en Argentina), durante o FSMM (Fórum Social Mundial das Migrações) em São Paulo, em 2016. Crédito: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo
Manifestação da Amura (Asociación Civil de Derechos Humanos Mujeres Unidas Migrantes y Refugiadas en Argentina), durante o FSMM (Fórum Social Mundial das Migrações) em São Paulo, em 2016.
Crédito: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo

Desafio da mulher migrante

Juliana Bueno, coordenadora do Cidade 50 50, programa da ONU Mulheres no Brasil que visa fortalecer o debate sobre igualdade de gênero, aponta que a realidade das mulheres migrantes aqui é semelhante a de muitas brasileiras: baixos salários, responsabilidade sobre as tarefas domésticas e de cuidado além do trabalho externo, ou seja, jornadas duplas e até triplas, mas se deparam ainda com outras barreiras pela nacionalidade.

“Elas enfrentam as mesmas dificuldades que mulheres em situação de vulnerabilidade no Brasil, mas agravam sua situação a barreira linguística, o preconceito e a xenofobia, ausência de referências e a ambientação ao novo país. A dificuldade de acesso a políticas públicas universais por causa dessas situações também torna o dia-a-dia mais difícil. Não por acaso, os poucos estudos que temos mostram que essas mulheres que chegam ao país em situação de vulnerabilidade – sem documentos, sem carteira de trabalho, sem falar português – se alocam em serviços de baixa remuneração e condições precárias de trabalho – as oficinas de costura e o emprego doméstico não formal são exemplos disso”.

Foi assim a vida de Júlia* (identificada apenas com o primeiro nome e que preferiu não ser fotografada) ao longo de mais de duas décadas. Migrante boliviana, ela chegou a São Paulo em 1982 sem falar português e sem conhecer as leis locais. Sem documentos, começou a trabalhar como babá para uma família brasileira, em troca de comida e um lugar para morar. Quando casou com um brasileiro, se viu sozinha na realização das tarefas do lar e, com muita economia, conseguiu comprar um terreno e construir a casa própria. Engravidou, mas não teve descanso nem quando a filha nasceu. Trabalhou até os nove meses de gestação e retornou ao serviço vinte dias após o nascimento da criança. Ia diariamente para o trabalho com a pequena nos braços, pois tinha que amamentar.

Leia aqui o perfil de Júlia (em português e espanhol)

As situações vividas por Júlia (que preferiu não ser fotografada) são parecidas com as que outras mulheres enfrentam, independente da nacionalidade. Crédito: Eva Bella/MigraMundo
As situações vividas por Júlia (que preferiu não ser fotografada) são parecidas com as que outras mulheres enfrentam, independente da nacionalidade.
Crédito: Eva Bella/MigraMundo

A menina ainda era pequena quando Júlia conseguiu se desvencilhar da relação destrutiva com o marido. Morou algum tempo com amigos e a situação começou a mudar quando finalmente conseguiu regularizar a situação no Brasil. A carteira assinada, horizonte distante quando chegou ao país, se tornou realidade há 12 anos. Aos 51, Júlia trabalha no setor de limpeza de um hospital na capital paulista e se formou como técnica de enfermagem. A filha, agora com 24 anos, passou no vestibular e estuda arquitetura na Universidade de São Paulo, um dos cursos mais concorridos do país.

Mudar a realidade de mulheres como Júlia tem sido um dos focos do trabalho desenvolvido pela Coordenação de Políticas para Migrantes (CPMig)  da Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo. Em julho de 2016, entrou em vigor na capital paulista a Lei Municipal nº 16.478, que institui a Política Migratória da Cidade. O artigo 3º da norma determina que as políticas locais devem “respeitar especificidades de gênero, raça, etnia, orientação sexual, idade, religião e deficiência”.

Por meio do Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (CRAI-SP), criado em 2014, os migrantes são atendidos em seis idiomas, recebem orientação para regularização migratória e intermediação para o trabalho, além de curso de português. Em parceria com os Centros de Apoio ao Trabalho e Empreendedorismo (CATe), equipamentos da Secretaria do Desenvolvimento do Trabalho e Empreendedorismo (SDTE) da Prefeitura, o CRAI tem realizado mutirões de emprego e oficinas para migrantes, além de ações para sensibilizar o mercado de trabalho. “A regularização migratória, o acesso a documentos trabalhistas, a comunicação (ainda que não plena) em língua portuguesa e a bancarização são condicionais para a efetivação da empregabilidade de imigrantes (mulheres e homens). Atualmente, a CPMig junto ao CRAI está realizando novos encontros, a fim de sensibilizar as empresas da importância de oferecerem vagas para imigrantes e das especificidades na documentação deles na hora da contratação”, explica a assessora da CPMig, Camila Breitenvieser.

Para a professora de Direito Internacional do Departamento de Direito Público da Universidade de São Paulo Cynthia Soares Carneiro outra necessidade para garantir o empoderamento das migrantes é avançar em termos de legislação. No Brasil ainda vigora o Estatuto do Estrangeiro, criado à época da Ditadura Militar e que vê no migrante uma potencial ameaça à soberania nacional. “O Brasil precisa criar normas que facilitem a regularização, principalmente daquelas imigrantes que já tem um trabalho ou meios de subsistência, trabalhando como autônomas, por exemplo”.

Dados do Banco Mundial revelam que, em 60% dos países, falta legislação que garanta oportunidades iguais para homens e mulheres, em termos de remuneração e possibilidade de evolução na carreira escolhida.

Acesso à creche

Outro fator que interfere diretamente na inserção de mulheres no mercado de trabalho, migrantes e brasileiras, é a formulação de políticas públicas, como a creche. De acordo a Síntese de Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2002 a 2012 o percentual de crianças de até três anos de idade atendidas em creche passou de 11,7% para 21,2%. Porém, o acesso à política é desigual. Em 2012, 63% das crianças entre 2 e 3 anos da população mais rica do país frequentava creche, enquanto o acesso da parcela mais pobre era de 21,9%.

A angolana Mariza Kalongua vive na pele essa realidade. Fisioterapeuta, formada no Brasil, ela migrou para cursar o ensino superior em São Paulo. Hoje, já pós-graduada, ela exerce a profissão num hospital da capital paulista. O local de trabalho foi escolhido justamente pelo horário, que permite deixar e buscar na creche o filho, de dois anos. Aos finais de semana, a rotina se torna mais difícil. Trabalhando em turnos de 12 horas ao dia, Mariza precisa primeiro deixar a criança com uma tia para poder exercer as atividades profissionais.

Leia aqui o perfil de Mariza (em português e espanhol)

A fisioterapeuta angolana, Mariza Kalongua: mulher, migrante, mãe, trabalhadora e estudante. Crédito: Eva Bella/MigraMundo
A fisioterapeuta angolana, Mariza Kalongua, assim como outras mulheres: migrante, mãe, trabalhadora e estudante.
Crédito: Eva Bella/MigraMundo

Para migrantes recém-chegadas no país e que não têm amigos ou parentes para contar, essa realidade se torna ainda mais complexa. A Prefeitura de São Paulo oferece 690 vagas para imigrantes nos Centros de Acolhida. Ali, assistentes sociais auxiliam na busca por emprego e encaminham as crianças filhas de mulheres imigrantes para as creches públicas com prioridade. “As mulheres imigrantes acolhidas nos centros são normalmente recém-chegadas e não possuem uma rede de relacionamentos sólida no país, o que compõe a especificidade da condição de migratória. A creche se torna assim a possibilidade, muitas vezes a única, de cuidado dos filhos, o que é condição necessária para que as mães possam trabalhar”, reforça Camila Breitenvieser.

Empreendedorismo migrante

Batendo de porta em porta, Rima Eissa, 41 anos, busca em São Paulo uma oportunidade de trabalho dentro das especialidades que aprendeu no país de origem, a Síria. Formada em agronomia, trabalhava no setor público em Damasco. Há sete anos, o interesse pela biologia do corpo e seus benefícios, além do diálogo com os pacientes e o auxilio na busca pelo bem-estar fizeram Rima começar a atuar como massoterapeuta.

Chegou à capital paulista há um ano e cinco meses. Trabalhou informalmente numa clínica, conseguiu dois clientes fixos e passou a vender comida árabe. Mas o que Rima deseja é ser independente. O próximo ano deve começar na sala de aula de uma universidade paulista, onde fará o curso de estética.

Leia aqui o perfil de Rima (em português e espanhol)

Fisioterapeuta, personal trainer, massagista terapêutica, professora de aeróbica, pilates e yoga. Esses são os conhecimentos de Rima, com os quais busca se integrar no Brasil. Crédito: Eva Bella/MigraMundo
Fisioterapeuta, personal trainer, massagista terapêutica, professora de aeróbica, pilates e yoga. Esses são os conhecimentos de Rima, com os quais busca se integrar no Brasil.
Crédito: Eva Bella/MigraMundo

Garantir a empregabilidade de mulheres como Rima é um dos objetivos do projeto Empoderando Refugiadas, iniciativa do Grupo Temático de Direitos Humanos e Trabalho da Rede Brasileira do Pacto Global das Nações Unidas, em parceria com a ONU Mulheres Brasil, Caritas Arquidiocesana de São Paulo, Programa de Apoio para a Recolocação dos Refugiados (PARR) e Fox Time.

Trinta mulheres participaram da iniciativa piloto, realizada em São Paulo, ao longo de sete meses. Neste período, refugiadas de Angola, Nigéria, Camarões, República Democrática do Congo, Burundi, Colômbia e Síria participaram de workshops sobre planejamento financeiro e profissional, direitos das mulheres e trabalhadoras no Brasil, habilidades práticas para aprimorar o português e empreendedorismo feminino, além de sessões de coaching, num espaço para articulação com futuros empregadores. Desde o final da ação, em junho, nove participantes foram contratadas para áreas diversas.

“As empresas gostaram das mulheres empregadas, pois elas agregam diversidade cultural no espaço de trabalho. Nosso objetivo com o curso é que elas fossem empregadas, que grandes empresas contratassem essas mulheres”, destaca Vanessa Tarantini, representante da Rede Brasil do Pacto Global.

Além dos resultados, Vanessa cita ainda o aprendizado que o Empoderando Refugiadas deixou para as empresas e para outros envolvidos no projeto. “Pessoalmente, depois desse contato você aprende muito mais com elas e passa a valorizar mais nossas vidas, que não podemos reclamar”.

Parceiros do projeto Empoderando Refugiadas conversam com empresas para sensibilizá-las à causa do refúgio. Crédito: Pacto Global Brasil/Divulgação
Parceiros do projeto Empoderando Refugiadas conversam com empresas para sensibilizá-las à causa do refúgio.
Crédito: Pacto Global Brasil/Divulgação

Resultados positivos também vêm do poder público. Neste ano, projetos de mulheres migrantes foram contemplados no Programa VAI e Agente Comunitário de Cultura, ações da prefeitura que geram recursos para projetos artísticos na cidade e que permitem a divulgação de expressões culturais das mulheres migrantes. Além disso, o governo municipal também tem promovido a participação de mulheres migrantes no Projeto Economia Solidária SP, que possibilita trabalho e renda, num processo de autogestão em que o trabalhador participa de todo o processo produtivo.

Para Juliana Bueno, é fundamental que governos de todos os níveis, locais, estaduais e federal, assim como o setor privado, deem atenção especial a migrantes.  “É necessário fortalecer o entendimento entre todos e todas de que as migrações são algo benéfico para o nosso país e para as nossas cidades, que a integração cultural e socioeconômica nos ajudará a produzir mais e nos desenvolver mais e melhor, contanto que façamos políticas públicas que visem acolher essas pessoas e não deixa-las em situação de vulnerabilidade. A migração é uma realidade, a migração feminina mais ainda”.

Na avaliação da especialista mudar o cenário das mulheres migrantes exige de toda a sociedade uma mudança no olhar. “Nós precisamos enxergar essas mulheres como cidadãs de direito no nosso país, e essa mudança de visão vai fazer a diferença na hora de tomarmos ações, porque nos dará a capacidade de entender como lidar melhor com essas especificidades e dar a devida acolhida que merecem para que possam se empoderar”, completa Juliana.

 

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