Por Natália de Oliveira Ramos
O lançamento da série “Wandinha”, da Netflix, ressuscitou o universo pitoresco de “A Família Addams”. Após diversas adaptações sobre o clã, em que a filha mórbida e inexpressiva de Morticia e Gomez era retratada na infância, agora, com 16 anos, Wandinha ingressa em um reformatório para jovens considerados esquisitos; excluídos pela sociedade. Em poucas semanas semanas desde a estreia, a série vem batendo seus próprios recordes de audiência, mas o debate sobre a discriminaçao direcionada a uma família nada convencional ficou, mais uma vez, ofuscado por um sem parar de excentricidades dos Addams.
A dinâmica familiar dos Addams teve seu debute televisivo nos anos 1960. A série da emissora ABC foi inspirada no trabalho do cartunista Charles Addams, que criou os personagens em 1937 em tirinhas para a revista New Yorker – veículo proeminente na publicação de desenhos de humor. Desde então, vez ou outra os personagens são vítimas de ataques de ódio, motivo pelo qual se mudaram para Nova Jersey, antes mesmo de Wandinha nascer. Mas o momento foi dramatizado apenas em 2019, em animação.
Ainda em sua terra natal, a cerimônia de casamento de Gomez e Mortícia é invadida por intolerantes, que, munidos de pedaços de pau e fogo, repetem: “Esse lugar é nosso!”. Durante a fuga, o casal decide ir para um lugar “putrefato, onde ninguém se atreveria a ir”. Morticia, agora refugiada, lamenta: “Porque nos perseguem aonde quer que nós vamos?”
As peças do quebra-cabeça que retratam as migrações forçadas da família estão distribuídas na extensa lista cinematográfica, que começou ainda nos anos 1960. Mas, entre as obras, o filme “A Família Addams”, de 1991, cujo personagem Wandinha, hoje interpretado por Jenna Ortega, era de Christina Ricci, foi o de maior sucesso comercial. Na trama, Morticia (Anjelica Huston) e Gomez (Raul Julia) encontram o lugar “de seus pesadelos” para começar uma nova vida. Determinados a viver seu infortúnio em paz, evitam integrar-se à comunidade da pequena cidade em que vivem em Nova Jersey.
Mais uma vez, a intransigência bate à porta, na forma de uma agiota de cabelos bufantes e aloirados, alguém influente entre os vizinhos. A mulher tenta uma aproximação com os Addams, mas muda de ideia ao presenciar os hábitos da família. Sob o argumento de que eles representam perigo para os costumes tradicionais, dá-se início aos ataques de ódio.
Apesar da repetição entre uma peça audiovisual e outra, temas como xenofobia, intolerância religiosa, ataques à diversidade, imposição de valores, refúgio por perseguição e suas variedades permaneceram subentendidos na história dos Addams – até agora. A jornada de “Wandinha”, da Netflix, em busca de destruir um personagem que há séculos invadiu terras e exterminou pessoas consideradas inadequadas (como ela e sua família), chega em um momento onde a ONU contabiliza mais de 30 milhões de refugiados – 25% a mais do que em 2021 (o aumento é associado à Guerra na Ucrânia).
A organização alerta para os discursos de ódio que sofrem pessoas em situação de refúgio, especialmente aqueles que reforçam falácias sobre o desaparecimento do modo de vida que se conhece, se pratica e se aprecia. O pânico é utilizado para gerar temor em um grande número de pessoas que têm a sensação de que um mal ameaça o bem-estar da sociedade. Como ocorreu em 2016, quando o então candidato à presidência dos Estados Unidos Donald Trump convenceu seus eleitores de que imigrantes são um “Cavalo de Tróia” e que a construção de um muro entre México e Estados Unidos deveria ser retomada para impedir o transpasse de latino-americanos.
A ascendência dos Addams também é uma questão mantida na zona cinza; o personagem Gomez é o mais caricato. Memorável por apelidar a esposa por “Cara mia” (Minha Amada, em italiano), sua ancestralidade hispânica foi confirmada no episódio 14 “Art and the Addams Family”, que foi ao ar em 18 de dezembro de 1964. Antes de telefonar para Pablo Picasso, Gomez se refere ao pintor espanhol como “alguém de nossas origens castelhanas”, em referência ao território espanhol na Idade Média.
Em termos culturais exaustivamente estereotipados pelas produções estadunidenses, a latinidade de Gomez é representada por suas demonstrações explícitas de afeto e diálogos passionais e melodramáticos, especialmente com Morticia.
A extravagância dos personagens era a marca registrada de seu criador. Nos quadrinhos, Charles Addams virava de cabeça para baixo as suposições sobre normalidade e sua relação entre o bem e o mal.
Nesta entrevista de 2010, o ex-editor da New Yorker, Bob Mankoff, disse que a influência do cartunista se estende do gênero de terror para um humor além do simplista “rir é o melhor remédio”, mas como algo profundamente cético em relação aos supostos valores da vida da classe média (norte) americana. “Ao nos fazer rir de e com seus protagonistas macabros, ele nos faz compartilhar temporariamente seus valores e duvidar dos nossos”.
Addams criou uma família excêntrica que, exceto por seus interesses mórbidos, age de maneira bastante convencional, algo que agradou os soviéticos em expedição pelos Estados Unidos, no décimo primeiro episódio da série de TV, em 1964. Na trama, o clã é escolhido casualmente para um estudo da União Soviética, que queria entender o estilo de vida de famílias norte-americanas.
Dois diplomatas se instalam na mansão dos Addams e ficam espantados com o comportamento deles: o desapego aos pensamentos religiosos, a atenção recebida pelas crianças, o enamoramento dos pais, o mordomo tratado como um ente querido e pelo quão tecnologicamente avançados eles são (o que o público sabe que se trata de magia). Os representantes concluem que, se as famílias estadunidenses seguissem o padrão dos Addams, que a União Soviética deveria manter relações amistosas com a nação.