Dezesste dias após a morte de Francisco, a Igreja Católica conheceu na última quinta-feira (8) seu mais novo Papa. O escolhido pelos cardeais reunidos na Capela Sistina, no Vaticano, foi o estadunidense-peruano Robert Francis Prevost, de 69 anos, que assumiu o título de Leão 14. E o que pensa o novo pontífice sobre a questão migratória, um dos pontos mais abordados pelo antecessor?
Em seu primeiro discurso, o novo Pontífice não fez menções diretas à temática migratória. Ele fez um “chamado à paz” para “todos os povos” e instou a “construir pontes” por meio do “diálogo”, avançando “sem medo, unidos, dando a mão a Deus e estendendo-a entre nós”.
No entanto, manifestações recentes e até mesmo o nome que escolheu para ser Papa indicam uma forte preocupação com a questão social, o que inclui a manutenção de parte significativa dos processos iniciados por Francisco. Entre eles se encontra a defesa da dignidade das pessoas migrantes e as críticas às políticas adotadas por governos em todo o mundo que colocam os que se deslocam em situação vulnerável.
“Buscando inspiração em Leão XIII, pastor dos operários e da Doutrina Social da Igreja, e dando seguimento a Francisco, pastor dos pobres e migrantes, é de se esperar que o novo sucessor de Pedro seja firme na defesa dos direitos humanos e na promoção da dignidade humana, linha mestra do ensino social da Igreja”, avalia o padre Alfredo J. Gonçalves, assessor do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM) na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em comentário enviado ao MigraMundo sobre o novo Papa.
Leão XIII, Doutrina Social da Igreja e migrações
Mas afinal, quem foi Leão XIII? Papa de 1878 a 1903, ele teve o quarto pontificado mais longo da Igreja Católica e ficou conhecido pela encíclica Rerum Novarum, de 15 de maio de 1891, e que abordava a condição degradante dos operários industriais da época. Chamada por alguns de “Manifesto Comunista da Igreja” ou de resposta da Igreja ao Manifesto Comunista – que já tinha sido lançado em 1848 – , essa encíclica é considerada ainda o marco inicial dos chamados “Documentos Sociais da Igreja”.
Naquela época, a Revolução Industrial causava mudanças profundas na mentalidade e no cotidiano das sociedades europeias. Enquanto as cidades se desenvolviam, as condições de trabalho nas fábricas eram extremamente precárias. Ao mesmo tempo, lavradores perdiam espaço devido ao avanço das indústrias sobre áreas produtivas para fornecimento de matérias-primas para o setor, e muitos tampouco conseguiam se manter no meio urbano.
Diante desse contexto, muitas vezes a contragosto, a migração se tornou uma das saídas para as pessoas excluídas pela Revolução Industrial. Ou seja, esse fato histórico foi um dos motivadores da chamada “Grande Imigração”, que se deu entre o final do século XIX e meados do século XX da Europa em direção a outros continentes – em especial a América.
“Ninguém, com efeito, quereria trocar por uma região estrangeira a sua pátria e a sua terra natal, se nesta encontrasse os meios de levar uma vida mais tolerável”, traz trecho da Rerum Novarum, que pode ser lida na versão em português neste link, no portal oficial do Vaticano.
“Enquanto Francisco nos remetia ao pobre de Assis, Leão XIV nos remete a Leão XIII. Leão XIII, por sua vez, foi o Papa que teve a coragem de publicar a Carta Encíclica Rerum Novarum, em 1891, que tinha como subtítulo ‘a condição dos operários’. Isso coloca o novo pontífice na esteira dos papas que se preocuparam com a chamada questão social”, explica Pe. Alfredo.
A relação da chamada Grande Migração com os Documentos Sociais da Igreja foi tema de um curso ministrado em São Paulo em 2017 pelo próprio Pe. Alfredo.
Dupla nacionalidade e papa migrante
Prevost nasceu em Chicago, nos Estados Unidos, tendo mãe de ascendêndia espanhola e pai americano. No entanto, passou a maior parte de sua carreira religiosa no Peru, onde atuou desde a década de 1980 em cidades como Piura, Trujillo e Chiclayo. Tal vivência no país sul-americano permitiu que em 2015 ele visse a obter também a nacionalidade peruana.
A reverência com a pátria que adotou ficou clara no primeiro discurso de Prevost como Papa, fazendo-o parte dele em espanhol e mencionando de forma especial a Diocese de Chiclayo.
“E se me permitem também uma palavra: [em espanhol] a todos aqueles, de modo particular, à minha querida diocese de Chiclayo no Peru, onde um povo fiel acompanhou o seu bispo, compartilhou a sua fé e deu tanto a mim para seguir sendo igreja fiel de Jesus Cristo”.
No país sul-americano, também expressou preocupação com os migrantes venezuelanos – o Peru é um dos principais destinos dessa diáspora, que enfrenta dificuldades de integração com a economia local e com manifestações de preconceito.
A dupla nacionalidade e o fato de ter feito grande parte de sua vida longe da terra natal fazem de Prevost, de fato, uma pessoa migrante. “Creio que a dupla nacionalidade, da mesma forma que o domínio sobre vários idiomas, é um forte indicativo de abertura a outros povos, culturas e nações”, complementa Pe. Alfredo.
Críticas ao governo Trump
Ser uma pessoa migrante de fato (e mostrar que ser migrante não é apenas vir de um país do Sul Global em direção ao Norte) e ter dupla nacionalidade – estadunidense e peruana – são fatores que já colocam o novo Papa em rota de colisão com o governo do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que tem no rechaço à migração uma de suas principais bandeiras.
O agora Papa Leão XIV, antes de ser eleito para o mais alto cargo da Igreja Católica, já havia se manifestado publicamente contra a política migratória trumpista.
Em mensagem publicada em 14 de abril, o então Cardeal Prevost repostou na rede social X (antigo Twitter) uma mensagem com críticas à deportação ilícita de um residente estadunidense. “Vocês não veem o sofrimento? A sua consciência não está perturbada? Como podem ficar em silêncio?”
Em outra mensagem, ele repostou na mesma rede um artigo com o título “JD Vance está errado: Jesus não pede para ranquearmos nosso amor pelos outros”, em 3 de fevereiro, em crítica direta ao atual vice-presidente.
Além disso, o agora Papa Leão XIV também apoiou a carta divulgada por Francisco em fevereiro passado aos bispos católicos dos Estados Unidos, poucas semanas antes de morrer. Nela, fez críticas diretas à política de perseguição a imigrantes realizada por Trump e pediu que os católicos de todo o mundo se posicionem e “não deem atenção a narrativas que sejam discriminatórias”.
“Tenho acompanhado com atenção a importante crise que está ocorrendo nos EUA devido ao início de um programa de deportações em massa. “Exorto todos os fiéis da Igreja Católica (…) a não ceder a narrativas que discriminam e causam sofrimento desnecessário aos nossos irmãos e irmãs migrantes e refugiados. O que é construído com base na força, e não na verdade sobre a igual dignidade de todo ser humano, começa mal e terminará mal”, traz trecho do documento.
Embora Trump tenha declarado que “não veja a hora de conhecer” Leão XIV e de celebrar o fato dele ser nascido nos Estados Unidos, o alinhamento com a política de Francisco em relação à migração coloca o novo Papa como um potencial contraponto ao presidente republicano.
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