A Ação Civil Pública movida em conjunto pela Defensoria Pública da União (DPU) e pelo Ministério Público Federal (MPF) para impedir a deportação de venezuelanos, em março deste ano, foi uma das três iniciativas do Judiciário nas Américas reconhecidas pelo Prêmio Sentenças – Acesso à Justiça de Pessoas Migrantes ou Sujeitas à Proteção Internacional.
Promovido desde 2016, o Prêmio Sentenças tem o objetivo de tornar visíveis os julgamentos emitidos sob as mais altas normas e padrões de direitos humanos, bem como as boas práticas que serviram para garantir o acesso à justiça e o gozo efetivo dos direitos humanos para migrantes, refugiados e outros sujeitos à proteção internacional no continente americano.
A premiação foi anunciada na noite de terça-feira (23) na Cidade do México, durante sessão da Suprema Corte de Justiça da Nação do México (SCJN). Além da Ação Civil Pública conjunta, a equipe da DPU que atuou no processo também foi reconhecida com o prêmio de melhor equipe litigante, juntamente com a do MPF e a do Instituto Federal da Defensoria Pública do México.
Assinam a ação o então defensor regional de direitos humanos da DPU em Amazonas e Rorraima, Ronaldo de Almeida Neto; o defensor público federal e coordenador do Grupo de Trabalho sobre Migrações, Apatridia e Refúgio da DPU, João Chaves; o defensor público federal Rafael Martins de Oliveira; a procuradora regional dos Direitos do Cidadão no Amazonas, Michèlle Diz; o procurador regional dos Direitos do Cidadão em Roraima, Oswaldo Poll Costa, e o procurador da República Alisson Marugal.
“Sem dúvida, é uma sentença inovadora, que tem um impacto positivo na proteção dos direitos da comunidade de migrantes e refugiados venezuelanos, que sofreu o fechamento de fronteiras, devido à pandemia de Covid-19, de maneira diferenciada”, afirmou Romina Sijniensky, secretária-adjunta da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao anunciar o resultado.
O Prêmio Sentenças é organizado por instituições internacionais que atuam na temática migratória, como a ONG Sin Fronteras, a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), a Organização Internacional para as Migrações (OIM), o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) e a Cruz Vermelha.
O primeiro lugar do Prêmio Sentenças 2021 ficou com uma ação que beneficiou três jovens migrantes que tentavam se unir à mãe no Equador. Já o segundo posto coube a uma determinação em prol da sociedade civil no atendimento a imigrantes no Estado de Chihuahua, no México.
Entenda a ACP e seu contexto
Em 17 de março de 2021, policiais federais, militares e civis invadiram o Abrigo São José, em Pacaraima (RR), mantido por religiosas católicas, alegando verificar uma denúncia de aglomeração no local, onde viviam cerca de 70 pessoas, todas mulheres e menores de nacionalidade venezuelana.
Segundo a entidade que administra o local, os agentes de segurança entraram no local encapuzados. As pessoas abrigadas seriam deportadas, porque se encontravam em situação indocumentada. A deportação foi impedida por uma intervenção da DPU, sendo as pessoas levadas para um dos abrigos da Operação Acolhida no município. Em seguida, foi feita a ACP (Ação Civil Pública) em conjunto com o MPF, pouco depois acolhida pela Justiça. A peça tinha como objetivo barrar novas ações do tipo e para impedir novas tentativas de deportação sumária.
“Há indícios que levam a crer que o suposto descumprimento de normas sanitárias não passou de um pretexto para a realização de novas deportações sumárias”, dizia a ação.
No final de março, um desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região derrubou a Ação Civil Pública. Em seu despacho, o desembargador federal Daniel Paes Ribeiro argumentou que devem ser punidos “eventuais ilegalidades e excessos, comprovadamente cometidos pela Polícia Federal”, mas que não deve haver restrição à sua atuação “de forma geral e abstrata”. E finalizou que ” não se encontra delineado nos autos o contexto em que se deu a operação supostamente ilegal combatida pelos ora agravados”.
Por fim, o desembargador afirmou no despacho que a situação dos migrantes deveria ser tratada à luz do que previa a Portaria n. 652/2021, que tratava “da restrição à entrada de pessoas de outros países em território brasileiro”.
A Portaria citada na decisão do desembargador foi uma das dezenas de normas editadas pelo governo brasileiro no contexto da pandemia de Covid-19 sobre a entrada de pessoas de outros países no território brasileiro. Apesar de reconhecer a Venezuela como local de grave e generalizada violação de direitos humanos, o Brasil previa aos venezuelanos nessas portarias um conjunto de restrições ainda maiores ao ingresso no país.
Essa situação só mudou a partir de junho de 2021, quando as restrições adicionais aos venezuelanos foram retiradas. Mas outros pontos considerados polêmicos estão sendo mantidos até o momento, como as penas inconstitucionais de inabilitação do pedido de refúgio e deportação imediata para quem ingressar por fronteiras terrestres e não se enquadrar nas exceções previstas pela portaria – inclusive de pessoas em situação de vulnerabilidade.
Legado
O defensor público João Chaves, um dos autores da ACP, ressaltou que a medida deixou um legado para a questão migratória em Roraima, mesmo depois de ter sido derrubada.
“Depois da ACP, houve a constatação de que a Polícia Federal parou de promover deportações em massa em Roraima, o que já foi uma vitória muito grande. E mesmo que elas estejam permitidas, hoje provavelmente há a percepção por parte da Polícia Federal de que seria inútil e que novas Ações Civis Públicas seriam feitas”.
Chaves destacou ainda que o reconhecimento da ACP pelo prêmio internacional ajuda a visibilizar a questão das portarias editadas pelo governo no contexto da pandemia e seu desacordo com a legislação migratória brasileira.
“O reconhecimento é importante para que o tema não saia da evidência e não se normalize essa aberração jurídica que é a suspensão do direto de solicitar refúgio. Infelizmente as portarias continuam vigentes, mas estamos na luta para que, por meio de novas ações judiciais e pelo trabalho político de articulação, essas portarias sejam derubadas e seja normalizada a política migratória brasileira para admitir a solicitação de refúgio em pontos de fronteira”.
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