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quinta-feira, dezembro 19, 2024

ACNUR recomenda que haitianos sejam reconhecidos como refugiados por outros países

Quase metade dos 11,4 milhões de habitantes do Haiti precisa de ajuda humanitária; agência da ONU baseia-se tanto na Convenção de Genebra quanto de Cartagena

Por Maria Eduarda Matarazzo
Colaboração de Priscilla Pachi

Diante da gravidade da atual crise generalizada no Haiti, o ACNUR (Alto Comissariado da ONU para Refugiados) emitiu recentemente novas orientações com o intuito de auxiliar os Estados na avaliação dos pedidos de asilo e no reconhecimento dos haitianos como elegíveis para refúgio. Para tal, citou tanto as definições expressas na Convenção de Genebra (1951), mais restritas, quanto na Convenção de Cartagena (1984), mais amplas.

Conforme a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, um refugiado é alguém que, devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertença a determinado grupo social ou opiniões políticas, encontra-se fora de seu país de origem e não pode ou não quer voltar devido a tais temores. Baseando-se nessa definição, o ACNUR considerou que ativistas políticos, jornalistas, juízes, advogados e outros que lutam contra a corrupção e o crime devem ser considerados elegíveis para proteção como refugiados.

A agência também fundamentou-se na Declaração de Cartagena de 1984, que amplia a definição de refugiado da Convenção de 1951 para incluir pessoas que fogem de violência generalizada, agressão externa, conflitos internos, violação massiva de direitos humanos ou outros acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública. Assim, qualquer cidadão pode ser considerado um refugiado.

“A vida, a segurança e a liberdade dos haitianos estão ameaçadas por uma confluência de violência de gangues em rápida ascensão e violações de direitos humanos. O ACNUR lembra aos Estados a imperativa necessidade de garantir que os haitianos que possam precisar de proteção internacional como refugiados a recebam”, afirmou Elizabeth Tan, Diretora da Divisão de Proteção Internacional do ACNUR. “Também reiteramos nosso apelo a todos os Estados para que não devolvam à força pessoas ao Haiti, incluindo aquelas cujos pedidos de asilo foram rejeitados”.

Até meados de 2023, o ACNUR já havia registrado 312 mil refugiados e solicitantes de asilo haitianos globalmente. A agência também alertou para uma tendência de haitianos realizando jornadas arriscadas por terra e mar pelo continente americano e pelo Caribe.

De acordo com outra agência da ONU, a Organização Internacional para as Migrações (OIM), mais de 160 mil pessoas foram deslocadas internamente devido ao atual conflito no país. Além disso, a população enfrenta escassez de alimentos e colapso no sistema de saúde.

No último dia 10 de abril, o governo brasileiro enviou um helicóptero para retirada de cidadãos brasileiros do Haiti. O serviço consular presencial do Brasil no país caribenho encontra-se suspenso diante da situação de crise.

Situação Política e Humanitária atual no Haiti

A atual crise no Haiti é considerada a mais grave desde o terremoto de 2010, que matou cerca de 200 mil pessoas. Ela teve início em 2021, quando o então presidente Jovenel Moïse foi assassinado. Em seu lugar, assumiu o então primeiro-ministro Ariel Henry, que prometia a convocação de novas eleições – o que não ocorreu. O caso, aliás, segue sem resolução e tem vários suspeitos, incluindo Henry, nomeado premiê poucos dias antes do crime.

Em resposta, gangues do Haiti – que já controlam territorialmente boa parte do país – uniram-se para atacar locais públicos, criando uma disputa contra o primeiro-ministro. Este confronto resultou em uma crise humanitária sem precedentes no país mais pobre das Américas.

Sem legitimidade reconhecida e sem eleições livres e democráticas há sete anos, Henry foi impedido de retornar ao Haiti após uma viagem internacional. Pressionado, renuncia ao poder em março deste ano deixando o país mais pobre das Américas completamente mergulhado no caos. 

O poder atualmente é exercido por um conselho de transição, nomeado apenas um mês depois da saída de Henry. Esse grupo exercerá certos poderes presidenciais até que um novo presidente eleito seja inaugurado, o que está previsto para ocorrer até 7 de fevereiro de 2026. No entanto, a história recente do Haiti traz precedentes que indicam que esse prazo pode não serrespeitado.

De 8 a 27 de março, mais de 50 mil pessoas deixaram a área metropolitana de Porto Príncipe devido à violência das gangues, conforme informado pela OIM. A maioria dessas pessoas deslocou-se para o Sul. No entanto, as províncias carecem de infraestrutura adequada e as comunidades que acolhem esses deslocados em grande número da capital não dispõem de recursos suficientes para gerenciar esses fluxos.

A ONU relatou que, apenas no primeiro trimestre deste ano, 1.554 pessoas morreram e 826 ficaram feridas devido à violência.

Breve histórico

Não é de hoje que o Haiti é destaque nos noticiários envolvendo questões ligadas à violência, fome, instabilidade política e desastres ambientais.

Colonizado por franceses, o país obteve sua independência em 1804, por meio de um levante de escravos que conquistou o poder na Revolução Haitiana (1791) e, com isso, tornou-se a primeira república negra a abolir a escravidão. Com a independência do Haiti, as potências da época (Espanha, Portugal, França e Inglaterra) temiam rebeliões similares em suas colônias e movimentos pró-independência foram sufocados gerando um clima de instabilidade em toda a região. Ocorre que, para ter a sua independência reconhecida, o Haiti precisou pagar uma alta indenização para a França que só foi possível com a tomada de empréstimos (em bancos franceses e posteriormente americanos) levando o país a um profundo endividamento. Além disso, o Haiti sofreu um bloqueio econômico e comercial das grandes potências que durou aproximadamente vinte anos.

Como não bastasse a situação econômica crítica do final do século XIX, em 1915 o país é invadido pelos Estados Unidos e seu território permanece sob domínio americano até 1934. Posteriormente, sua história política foi pautada por uma sucessão de ditaduras e intervenções militares.

De 1957 a 1986, o país foi governado pela ditadura da família Duvalier (François Duvalier – Papa Doc e Jean-Claude Duvalier – Baby Doc) e, neste período, a Constituição foi alterada tornando a presidência vitalícia e uma milícia que servia ao presidente François Duvalier foi criada (tontons macoutes) para proteger o ditador e reprimir, à base de violência, a população e a oposição. Com abuso de poder, corrupção e uma imensa desigualdade social o país ficou dependente dos empréstimos dos EUA e passou a sofrer com a alta dos preços dos alimentos e com a miséria da população.

Depois de muitos conflitos e instabilidade política, em 1990, Jean-Bertrand Aristide é eleito democraticamente presidente do Haiti, mas um golpe militar o tira do poder em 1991. Retorna em 1994 por meio de uma intervenção militar americana que lhe devolve o poder. Aristide assumiu a presidência defendendo uma política neoliberal que beneficiava os interesses dos americanos e desagradava a população. É substituído democraticamente em 1996 por René Préval, mas retorna, pela terceira vez, ao poder em 2001. A política econômica seguida por ele gerou uma ampla crise social e econômica que ocasionou a sua saída em 2003 deixando o país frente ao grande descontentamento da população, com o aumento da violência e o acirramento das forças opositoras.

Com o intuito de devolver a paz ao Haiti, em 30 de abril de 2004 o Conselho de Segurança das Nações Unidas cria a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti – MINUSTAH, liderada pelo Brasil. Os principais objetivos da missão, que ficou por treze anos no país, eram: estabilizar o país, pacificar e desarmar grupos guerrilheiros e rebeldes, promover eleições livres e formar o desenvolvimento institucional e econômico do Haiti. No entanto, a MINUSTAH cometeu diversos abusos de poder gerando o aumento da violência, a revolta da população e o fortalecimento das milícias que disputam o poder pelo país.

Em entrevista à Agência Brasil publicada neste mês de abril, o antropólogo haitiano Handerson Joseph, radicado no Brasil, aponta a relação neocolonial de grandes potências com o Haiti como o motivo principal da situação de crise vivenciada pela terra natal.

Como não bastasse a conturbada situação política e econômica vivenciada pelo país caribenho, o Haiti foi atingido por um forte terremoto em 12 de janeiro de 2010 que destruiu praticamente toda a sua capital, Porto Príncipe. Ressalta-se que o país está situado sobre um sistema de falhas geológicas que movimentam as placas tectônicas caribenha e a norte americana fazendo de seu território um local de constante ameaça de novos tremores de terra. Para além do terremoto de 2010, um surto de cólera acometeu a população e, outros desastres ambientais se sucederam como os furações Sandy em 2012 e o Mattew em 2016. Em 2021, outro terremoto atingiu o Haiti que ainda se encontrava fragilizado pelas ocorrências anteriores.

Haitianos no Brasil

Em razão dos desastres ambientais citados e ocorridos neste século no Haiti, houve o aumento da emigração e dos deslocamentos internos. No que tange ao Brasil, em consequência do terremoto de 2010, o governo brasileiro passou a conceder visto humanitário aos haitianos e o fluxo migratório para o Brasil se intensificou. Entre 2010 e 2022 a Polícia Federal registrou a entrada de aproximadamente 170 mil nacionais do Haiti em território brasileiro.

Passada uma década da intensificação deste fluxo migratório para o Brasil, pode-se dizer que a crise econômica e política que ocorreu no país a partir de 2014 foi motivo para que muitos haitianos partissem rumo a novos destinos na América do Sul (Chile e Argentina) ou que se juntassem às caravanas de imigrantes rumo os Estados Unidos e Canadá. Muitos retornaram ao Brasil e hoje a comunidade haitiana está estabelecida e adaptada em vários estados do território nacional.

Considerando a atual situação a qual o Haiti vem enfrentando nos últimos meses, espera-se a formação de novos fluxos migratórios. A tendência é o aumento dos deslocamentos internos e de migração para o país vizinho, a República Dominicana, e para outros países da América Central e Sul. Inclui-se neste rol de destinos migratórios prováveis, o México com vistas à travessia e chegada aos Estados Unidos. Quanto ao Brasil, tendo em vista a consolidação da comunidade haitiana em território nacional, há a possibilidade de ocorrer um fluxo de haitianos devido ao aumento das solicitações de reunião familiar nos próximos meses.

Com informações da Agência Brasil e CNN Brasil

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