Uma das maiores e mais respeitadas referências no Brasil na atuação em prol de migrantes, incluindo deslocados forçados, a religiosa católica brasileira Rosita Milesi, 79, foi anunciada nesta quarta-feira (9) como vencedora da edição 2024 do Prêmio Nansen.
A honraria é concedida anualmente pelo ACNUR, a Agência da ONU para Refugiados, a pessoas e entidades com atuação reconhecida em prol dessa comunidade. Grosso modo, o Prêmio Nansen pode ser considerado uma espécie de Nobel pela defesa dos direitos de pessoas refugiadas.
“Decidi me dedicar a migrantes e refugiados. Sou inspirada pela crescente necessidade de ajudar, acolher e integrar refugiados”, disse Irmã Rosita, como é mais conhecida, em entrevista oficial ao ACNUR. “Não tenho medo de agir, mesmo que não alcancemos tudo o que queremos. Se assumo algo, vou virar o mundo de cabeça para baixo para fazer acontecer”, acrescentou.
Atuando desde a década de 1980 na temática migratória, irmã Rosita Milesi é líder do IMDH (Instituto Migrações e Direitos Humanos), entidade presente em Brasília e Boa Vista no apoio e orientação a pessoas migrantes e em necessidade de proteção internacional. Ela ainda é coordenadora da RedeMIR, que engloba cerca de 70 organizações que atuam para fortalecer a solidariedade entre as pessoas em movimento e as comunidades que as acolhem.
Advogada de formação, Rosita usou tal experiência para atuação decisiva em prol das duas principais legislações relacionadas ao arcabouço migratório e de deslocamento forçado no Brasil: a Lei de Refugiados Lei 9.474/1997) e a Lei de Migração (Lei 13.445/2017).
“Qualquer lei dura muitos anos. Boa ou ruim, é difícil desfazer. Então, não podíamos deixar que uma lei com um conceito limitado fosse aprovada se houvesse a possibilidade de ampliá-la”, disse ela ao ACNUR sobre a Lei de refúgio brasileira, considerada um modelo internacional por contemplar a definição mais ampla do conceito, dada pela Convenção de Cartagena (1984). “Até escrevi para o Vaticano em Roma, pedindo que enviassem uma carta ao governo brasileiro dizendo o quão importante era ampliar o conceito de refugiado. E o Vaticano colaborou. Enviaram a carta, graças a Deus”, complementou.
Criado em 1954, o Prêmio Nansen leva o nome do explorador polar norueguês Fridtjof Nansen (1861-1930), ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1922 e primeiro Alto Comissário para os Refugiados da Liga das Nações, entidade precursora da ONU.
Irmã Rosita é somente a segunda pessoa brasileira a receber o Prêmio Nansen. A primeira foi o ex-cardeal arcebispo de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns, em 1985. Ela se junta ainda a personalidades globais como a ex-primeira-dama dos EUA Eleanor Roosevelt e a ex-chanceler alemã Angela Merkel, além de organizações como a Médicos Sem Fronteiras.
Trajetória e próximos passos
Filha de agricultores italianos, Rosita nasceu e cresceu no Rio Grande do Sul. Já no meio familiar viu seus pais, mesmo sem grandes condições financeiras, oferecerem trabalho, comida e um lugar para dormir às pessoas necessitadas que pediam ajuda ou que transitavam pela região.
Aos 9 anos, ingressou em um colégio administrado pelas Irmãs Missionárias Scalabrinianas, congregação fundada no final do século XIX para ajudar migrantes italianos que chegavam às Américas. Aos 19, em 1964, se tornou freira e integrante da Congregação Scalabriniana.
Por duas décadas, trabalhou como professora e na área administrativa de um hospital, em instituições geridas pela congregação para ajudar os pobres. Nesse período, também graduou-se em Direito, formação que lhe permitiu ainda se qualificar para uma nova missão a partir da década de 1980: estabelecer um Centro de Estudos de Migrações na capital, Brasília.
“Eu sabia pouco sobre o assunto, mas tive que me preparar. Meu foco voltou-se, então, a estudar o tema das pessoas em mobilidade, deslocadas, e decidi dedicar meu conhecimento e trabalho aos refugiados e migrantes”, disse ela.
Combinando formação acadêmica e valores religiosos e humanos cultivados desde a infância, Irmã Rosita se tornou uma das referências na atuação em prol de pessoas migrantes no Brasil, incluindo aquelas que se encontram em situação de proteção internacional. Tal trajetória recebe agora reconhecimento internacional a partir do Prêmio Nansen.
Entre os planos para o futuro, Irmã Rosita pretende trabalhar em prol da ampliação do acesso à educação para crianças refugiadas, melhorar o reconhecimento dos diplomas de refugiados e abordar os crescentes impactos das mudanças climáticas sobre os refugiados e deslocados. Esse último tópico, inclusive, parte da experiência de devastação vivida recentemente após as enchentes em seu estado natal, o Rio Grande do Sul.
Vencedoras regionais
Além de Milesi, outras quatro mulheres também são homenageadas na edição deste ano do Prêmio Nansen, em categorias regionais:
- África: Maimouna Ba, ativista de Burkina Faso apelidada de “Mãe do Sahel”, que ajudou mais de 100 crianças deslocadas a voltarem para a sala de aula e empoderou 400 mulheres deslocadas a conquistarem independência financeira;
- Ásia e Pacífico: Deepti Gurung, ativista nepalesa que lutou pela reforma das leis de cidadania de seu país após descobrir que suas duas filhas haviam se tornado apátridas;
- Europa: Jin Davod, empreendedora social síria e criadora de uma plataforma online que oferece apoio em saúde mental para sobreviventes de traumas, incluindo refugiados e comunidades locais;
- Oriente Médio e Norte da África: Nada Fadol, refugiada sudanesa que mobilizou ajuda essencial para centenas de famílias que fugiram para o Egito em busca de segurança.
“As mulheres muitas vezes enfrentam riscos elevados de discriminação e violência, especialmente quando são forçadas a fugir”, disse o Alto Comissário da ONU para Refugiados, Filippo Grandi. “Mas essas cinco vencedoras mostram como as mulheres também desempenham um papel fundamental na resposta humanitária e na busca de soluções.” Grandi elogiou a dedicação delas em promover ações em suas próprias comunidades, construir apoio de base e até mesmo moldar políticas nacionais.
O Prêmio Nansen deste ano ainda faz uma menção honrosa à Moldávia, em razão dos esforços coletivos da sociedade local para acolhimento de pessoas refugiadas da vizinha Ucrânia. Segundo dados do ACNUR, a ex-república soviética de 2,5 milhões de habitantes seviu de abrigo inicial para mais de 1 milhão de refugiados ucranianos, sendo que 124 mil ainda são acolhidos no país.
Os prêmios serão apresentados em uma cerimônia em Genebra às 14h30 (horário de Brasília) no dia 14 de outubro, que será transmitido ao vivo. Apresentado pela atriz sul-africana Nomzamo Mbatha, o evento destacará o trabalho das vencedoras e contará com apresentações da Embaixadora da Boa Vontade do ACNUR Kat Graham, da soprano moldava Valentina Nafornita e de Emeli Sandé (MBE) – cantora e compositora.
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