São sete filhos do casal e mais dez de parentes que perderam a vida na guerra, que se arrasta desde 2011
Por Alethea Rodrigues
Em Bar Elias (Líbano)
Em um país devastado pela guerra, milhares de crianças perderam seus pais para os ataques aéreos, bombardeios e assassinatos em cidades da Síria desde março de 2011, quando o conflito começou. De acordo com Salwa Jooma, vice presidente da Humanitarian Foundation for Social Welfare and Education, mais de 10 mil crianças e adolescentes refugiados órfãos vivem no Líbano hoje. Só nessa ONG, são 1250 famílias cadastradas e todas elas possuem uma criança ou adolescente que não tem pai, mãe ou ambos os familiares.
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A maioria dos refugiados sírios que estão no Líbano moram em barracas, sobrevivem de doações e recebem menos de 200 dólares por mês das Nações Unidas. Os relatos da perda dos pais dessas crianças e como elas chegaram no país vizinho são comoventes.
Om Daham, 44, vive esse drama e tem uma história muito peculiar. Ela cuida de 17 crianças e adolescentes, sete dela e o restante de parentes que morreram durante os bombardeios na Síria.
Por muito tempo todos viveram em um campo, moraram em tendas em uma situação precária, mas com a ajuda do marido que faz alguns serviços temporários conseguiu alugar uma casa humilde por 200 dólares mensais em Bar Elias, uma vila do tradicional Vale do Bekaa.
É nessa casa de três cômodos que o casal cria, desde 2013, os sete filhos (o oitavo, que tinha dezenove anos, morreu durante o conflito), mais três do cunhado e sete de um outro cunhado.
A mudança de país
Om Daham conta emocionada e bem baixinho, para que os filhos não revivam esses momentos tristes, que as famílias viviam juntas em uma cidadezinha no interior da capital Damasco e a casa foi atacada por um bombardeio aéreo. Depois da morte dos parentes, ela nem pensou duas vezes: pegou todas as crianças e partiu de ônibus para o Líbano.
“Meu mundo acabou. Um dia eu tinha tudo e no outro não tinha nada. Sabia que a responsabilidade era grande, mas não podia deixar as crianças abandonadas. Consegui a permissão e fui embora de lá com todas elas”.
A vida na Síria era tranquila, a família tinha casa própria e o marido trabalhava com compra e venda de terras. “Não faltava nada, eu amava meu país, até que a guerra começou e não tivemos mais paz”, concluiu.
O dia a dia da família
Em um cômodo, a mulher dorme no chão com 10 crianças. No outro, dormem os mais velhos com o marido dela. Os menores não lembram exatamente o que aconteceu e a maioria nem tem recordações dos pais. Daham é chamada de mãe pelos pequenos e de tia pelos jovens. As duas garotas mais velhas, de 16 e 17 anos, ajudam na criação dos irmãos. “Não é fácil cuidar de todos, mas já temos a nossa rotina e funciona muito bem. Temos poucas roupas, a comida é limitada, mas conseguimos comer, dormir e graças a Deus consegui escola para todos”, contou aliviada.
Os mais velhos, que presenciaram a morte dos pais ainda sentem os traumas, passam mal quando ouvem barulhos de bombas e sofrem pela falta dos familiares. “Para eles é mais difícil, mas tento conversar bastante para que nunca desistam dos seus sonhos. Não tem muito o que fazer a não ser termos força, esperança, batalhar muito e pensar no futuro”, ressaltou a mãe.
A rotina de Daham se resume em levar e buscar os filhos na escola, cozinhar e orar. A muçulmana praticamente não sai de casa, o custo é muito alto para passear com todos e ela não deixa os filhos sozinhos nem um minuto. “Anulei a minha vida, eles são hoje meu maior motivo para não desistir. Quero que todos estudem, trabalhem e consigam ter uma vida digna”.
Quando começou a guerra, o Líbano tinha cerca de 4 milhões de habitantes. Desde então, recebeu mais de um milhão de moradores do país vizinho. Ao todo, de acordo com o ACNUR (Alto Comissariado da ONU para Refugiados), são cerca de 5,5 milhões de sírios vivendo como refugiados em outros países – especialmente em nações vizinhas, como Líbano, Jordânia e Turquia.
Adoção de crianças sírias por brasileiros?
Diante dos horrores da guerra – entre eles, os órfãos que produz – há pessoas no mundo inteiro que se manifestam interessadas em adotar crianças sírias. No entanto, esse desejo é mais complicado do que o ato dá a entender.
No Brasil, a adoção de crianças sírias não é permitida por duas razões. A primeira é que a Síria não é signatária da Convenção de Haia, o que é primordial para que adoção internacional aconteça; a segunda é que existe uma determinação da ACAF (Autoridade Central Administrativa Federal), ligada ao Ministério dos Direitos Humanos, que proíbe a adoção de crianças de países que estão enfrentando problemas como guerras, catástrofes, ocupações, qualquer situação de conflito.
“Isto ocorre por conta da segurança jurídica que fica prejudicada, pois nessas condições não há como saber se as crianças em tela, estão apenas separadas de suas famílias, se as famílias estão procurando por elas, não há documentos nem registros e isso facilita e muito o sequestro internacional”, esclareceu Marcelle Vasconcelos, técnica de atividade judiciária da através da CEJAI (Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional).
Hoje, a única maneira de adotar uma criança síria é contatar diretamente o governo do país, mas a burocracia é grande e até o momento nenhum caso foi concretizado no Brasil.
E não é somente a lei que impede que as crianças vivam em outro país. Em geral elas acabam acolhidas e adotadas por algum parente que sobreviveu ao conflito – como o caso das dez crianças sob os cuidados de Om Dahan e do marido. Além do amor pelas crianças, a religião muçulmana não aceita a adoção.
Questionada se ela permitiria que um de seus filhos saísse do país para viver com outra família, Dahan foi direto ao ponto. “Nem dormir com meu marido eu durmo mais. Há cinco anos passo a noite abraçada com meus filhos. Aqui eles não têm luxo, não têm uma vida maravilhosa, mas tem amor, somos unidos e vamos continuar assim até o final”, concluiu.