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quarta-feira, dezembro 25, 2024

Como Brasil está diante da atual situação do Haiti e seus migrantes no país? Especialista comenta

Em meio a crise generalizada e prolongada, Haiti tem apelado a organismos e comunidade internacional por ajuda; no Brasil, há debate sobre a questão de vistos humanitários e solicitações de refúgio

Violência entre gangues, crise generalizada (política, econômica e social), desastres ambientais. Essa é a combinação vigente no Haiti, gerando deslocamentos forçados internos e fazendo da migração para o exterior uma das saídas adotadas por parte de seus cidadãos em busca de melhores condições de vida. O Brasil, inclusive, foi um ator muito presente no cotidiano haitiano, comandando por 13 anos (2004-2017) a força de paz da ONU no país (Minustah) e figurando como uma das principais opções de destino dos haitianos no continente americano.

E como está essa relação no momento? Como a comunidade internacional tem respondido a essa situação?

Em meio a tal situação caótica, o Haiti tem um dos piores índices de pobreza do mundo, ocupando a 170ª posição em um ranking de 189 nações, segundo a ONU. Além disso, 5 milhões de pessoas passam fome de uma população estimada em quase 12 milhões.

Nesse contexto, milhares de pessoas abandonam suas casas em busca de um lugar seguro. Muitas recorrem a acampamentos no centro da capital, Porto Príncipe, mas os ginásios não têm estrutura para atender a população. Faltam água e comida.

Os dados sobre o deslocamento forçado no Haiti são aterradores: mais de 310 mil pessoas estavam em situação de deslocamento forçado interno ao final de 2023, segundo dados da OIM (Organização Internacional para as Migrações). Mais da metade desse grupo é composto por crianças.

“O deslocamento traz graves riscos à saúde, à segurança alimentar e econômica das pessoas, expondo-as à violência baseada no gênero, além de colocar pressão sobre as infraestruturas locais e a coesão social nas comunidades de acolhimento”, explica o chefe do Escritório da OIM no Haiti, Philippe Branchat.

Para agravar ainda mais a situação, cerca de 115 mil haitianos foram devolvidos à força de países vizinhos em 2023, muitos deles sem identificação adequada, o que complica a sua reintegração. 

Um breve histórico recente do Haiti

Há 14 anos, o terremoto deixou cerca de 310 mil mortos, um milhão e meio de feridos e outros um milhão e meio de desabrigados. O fato acabou por acentuar uma profunda e complexa crise política, social e econômica.

Cercada por escombros, Porto Príncipe não parece muito diferente do cenário deixado pelo terremoto de 2010.

Após a tragédia natural, em 2011, foi eleito o presidente Michel Martelly. Em 2016, as eleições foram canceladas por suspeitas de fraude no primeiro turno e Martelly entregou o cargo sem deixar um sucessor.

Depois de um ano de instabilidade, Jovanil Moïse assumiu e teve um governo marcado por protestos diante das acusações de corrupção e o aumento nas taxas de crimes, conflitos de gangues e sequestros. Foram quatro anos de manifestações, paralisações, bloqueios e barricadas. Em julho de 2021, o presidente Moïse foi assassinado dentro da própria casa, agravando ainda mais a crise institucional.

O governo instaurou o primeiro-ministro Ariel Henry como líder provisório. E o vácuo de poder abriu espaço para o crescimento de gangues violentas. Segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha há 300 gangues atuando dentro e fora da área metropolitana de Porto Príncipe e o governo estima que 80% da capital esteja sob controle desses grupos.

Uma das facções chegou a tomar o controle do principal terminal portuário haitiano, e impedir a chegada de combustível e água potável.

Um relatório do alto comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos aponta que, entre 1º de janeiro e 9 de setembro de 2023, foram registrados 3 mil homicídios. Além disso, mais de 1,5 mil pessoas foram vítimas de sequestro. A ONU afirma que cerca de 200 mil pessoas, metade das quais são crianças, foram forçadas a fugir das suas casas por causa do perigo.

Apelo internacional

Diante desse quadro, as autoridades do Haiti pedem ajuda urgentemente. Em discurso na Assembleia Geral da ONU, em setembro passado, Ariel Henry fez um apelo à comunidade internacional para que aja rapidamente “em nome das mulheres e meninas estupradas todos os dias, das milhares de famílias expulsas de suas casas, das crianças e jovens do Haiti, a quem foi negado o direito à educação e à instrução, em nome de todo um povo que é vítima da barbárie das gangues.”

O país possui cerca de 10 mil policiais – para uma população de quase 12 milhões de pessoas. Só no segundo trimestres de 2023, treze agentes e mais de 460 membros de gangues foram mortos em confrontos.

Pouco antes, em visita ao Haiti em julho passado, o secretário-geral da ONU, António Guterres, fez apelo semelhante. “Estou em Porto Príncipe para expressar minha solidariedade para com o povo haitiano e fazer um apelo à comunidade internacional para que continue apoiando o Haiti, inclusive com uma força internacional que possa apoiar a polícia nacional”, afirmou.

No início de outubro, o Conselho de Segurança adotou uma resolução que autoriza o envio de uma força multinacional não pertencente à ONU para o Haiti. A missão será liderada pelo Quênia e deverá dar apoio às autoridades haitianas em treinamento, combate às gangues e proteção de infraestrutura crítica.

O Brasil deve participar dessa cooperação, mas desta vez o apoio deverá ser apenas logístico, diferente da atuação por meio da antiga Minustah. “O Haiti é um país próximo e querido do Brasil, e nos empenhamos e investimos muito. Estamos prontos para continuar a discutir. Foi terminada a operação de paz Minustah e transformada numa operação política especial. Cremos todos que o momento é muito grave, porque a instabilidade é total, a violência e as perdas de vidas também são muito numerosas. Então é dado o momento de se discutir e se chegar a uma solução”, afirmou o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, em entrevista à ONU News.

Para Alex Dias de Jesus, pós-doutor em Geografia e professor do Instituto Federal do Piauí, o envolvimento do Brasil nas crises haitianas precisa ser considerado de acordo com a agenda da política externa nesses últimos vinte anos. “Nos anos 2000, principalmente nos governos Lula, houve um esforço do Itamaraty para consolidar a posição de liderança regional do Brasil na América Latina e grande aproximação com países africanos e asiáticos. Quando a Minustah se encerrou, no final de 2017, a agenda da política externa brasileira já não era mais a mesma e seu protagonismo foi reduzido, em parte porque o Brasil também passava por instabilidade política e econômica”, afirma.

Migrantes haitianos no Brasil

Ao lado da migração venezuelana, os haitianos protagonizaram os principais fluxos migratórios recentes em direção ao Brasil, ajudando a fomentar uma série de mudanças tanto nas estatísticas quanto na abordagem da academia e dos governos sobre o assunto.

De acordo com projeção do ACNUR, cerca de 161 mil pessoas haitianas vivem em território brasileiro. No entanto, o número de migrantes haitianos que vêm para o Brasil tem diminuído nos últimos anos. Dados do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) apontam que em 2022, 6.770 haitianos foram registrados no Brasil, número bem menor que o observado em anos como 2020 (23.567) ou 2016 (42.423).

Para o professor do Instituto Federal do Piauí, isso se dá tanto pela desaceleração econômica do país, como pelo surgimento de novas rotas migratórias.

“Temos observado uma tendência de queda no número de entradas de haitianos no Brasil desde 2016. Isso mostra que esse fluxo desacelerou, porque o Brasil não se sustentou como um destino economicamente viável, mas ainda se mantém devido às redes familiares que se estabeleceram aqui. Então esse fenômeno não é inteiramente novo e se associa, também, ao surgimento de novos corredores migratórios no continente americano. Me refiro especialmente às rotas de reemigração do Brasil para os Estados Unidos, passando pelo México”, explica ele.

Contudo, medidas recentes podem mudar esse cenário. Em março passado, o governo brasileiro emitiu uma portaria para conceder visto temporário e de autorização de residência com fins de acolhida humanitária para haitianos que foram afetados pela crise no país.

Os vistos terão validade de 365 dias, com prazo de residência de até dois anos, e serão emitidos pela Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, na capital do Haiti. A medida é válida até o fim de 2024.

Além disso, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), por meio da Secretaria Nacional de Justiça (Senajus), passou a ser responsável pela análise de pedidos de reunião familiar. “A medida garante a reunião familiar para haitianos no Brasil, sem que estes tenham que recorrer ao Judiciário para conseguirem trazer seus familiares, como vem acontecendo atualmente, ou que aguardem longos períodos para obtenção desse direito humanitário. Segundo as associações de haitianos, esta portaria deve beneficiar ao redor de 3 mil pessoas”, pontuou o então secretário nacional de Justiça, Augusto de Arruda Botelho.

Discussão em torno do visto humanitário

Apesar da grave conjuntura haitiana, o Brasil optou por analisar caso a caso e conceder os vistos via linha humanitária, enquanto no caso sírio, por exemplo, reconhece-se a grave e generalizada violação de direitos humanos no país e esses migrantes foram recebidos de forma conjunta. 

Para muitos especialistas, a continuidade da utilização do visto humanitário em detrimento do refúgio se coloca como uma resistência em abrir uma alternativa mais consistente e duradoura no ordenamento jurídico, o que poderia intensificar o fluxo.

Já na opinião do professor Alex, essa decisão está ligada à missão brasileira no Haiti. “Essa é uma questão muito importante para analisar a política migratória brasileira para os haitianos, mas que não encontra consenso na academia nem nas organizações de direitos humanos. Embora existam motivos suficientes que comprovem a existência de grave e generalizada violação de direitos humanos, fundamento para reconhecimento da situação de refúgio de acordo com a Declaração de Cartagena, o Brasil optou por afastar esse reconhecimento “em bloco”, para todos os haitianos, e resolveu julgar caso a caso. Na minha opinião, reconhecer que existia grave e generalizada violação de direitos humanos é reconhecer que a Minustah falhou”, afirma ele.

O professor ressalta ainda a necessidade de facilitar esses processos para evitar fluxos irregulares que aumentam os riscos para pessoas já em situação extremamente vulnerável. “A história recente tem mostrado, aqui e no resto do mundo, que as restrições legais não são suficientes para conter os deslocamentos das pessoas que estão em sofrimento, e sim, fomentam migrações indocumentadas, frequentemente mais onerosas e mais perigosas. Isso porque as crises continuam acontecendo nos lugares de origem muito mais do que nos lugares de destino e ignorar isso é optar por não ver as assimetrias de desenvolvimento fundantes da atual ordem política e econômica do mundo”.

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