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domingo, dezembro 22, 2024

Criminalização das migrações e tráfico de pessoas: um círculo vicioso

O tráfico de pessoas é uma consequência de um sistema cuja lógica privilegia o lucro em detrimento à pessoa e que, para tanto, se retroalimenta da precarização das condições de trabalho e da flexibilização das leis trabalhistas

Por Tuíla Botega
Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios

As formas análogas à escravidão, seja para fins de exploração sexual ou laboral, seja para o tráfico de órgãos, casamento forçado ou outras modalidades, ao violarem direitos inalienáveis como a liberdade, a integridade física e psicológica e a própria dignidade humana, reduzem pessoas à condição de serem mercadorias em um negócio bastante lucrativo, revelando uma das facetas mais cruéis da humanidade: a coisificação do ser humano.

Apenas no período de 2012 a 2014, segundo o UNODC, mais de 60 mil casos foram reportados em 106 países, o que retrata não somente a incidência considerável, mas, principalmente, que se trata de fenômeno de dimensão e alcance global. O tráfico de pessoas é uma consequência de um sistema cuja lógica privilegia o lucro em detrimento à pessoa e que, para tanto, se retroalimenta da precarização das condições de trabalho e da flexibilização das leis trabalhistas. Dessa forma, pessoas vulneráveis nas esferas social e econômica – invisíveis para a sociedade – são as que têm maior potencial de serem aliciadas por redes de exploração. O cenário no Brasil, por exemplo, onde o Congresso aprovou medidas que facilitam a terceirização de atividades-fim e que agora está discutindo um pacote de reformas nas leis trabalhistas, representa, em última instância, não somente uma ameaça aos direitos da população mais pobre, mas também aos avanços que já tinham sido conquistados na luta contra o Trabalho Escravo.

Quando analisamos o tráfico de pessoas em sua interface com o fenômeno migratório, uma complexidade ainda maior se estabelece, especialmente se consideramos o contexto atual, onde cada vez mais pessoas são forçadas a saírem de seus países, muitas vezes, em busca de sobrevivência ou em fuga de situações de violência e outras violações de direitos humanos.

A Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania do Distrito Federal (SEJUS/DF) realiza ação preventiva de enfrentamento ao tráfico de pessoas, com entrega de material informativo para conhecimento e sensibilização dos passageiros no Aeroporto Internacional de Brasília.
Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil – 05/02/2016

Nesse contexto, em nível micro, muitas vezes, a condição migratória se apresenta como um fator a mais de vulnerabilidade que torna a pessoa suscetível à exploração. Em outras palavras, aqueles que estão longe de seu local de origem e, consequentemente, de seu seio familiar e de suas redes de apoio e proteção, justamente por estarem sozinhos e/ou em contextos muitas vezes hostis e estranhos, se tornam mais vulneráveis à violação de direitos e à exploração. O resultado é que pessoas que já são invisíveis socialmente têm sua condição de vulnerabilidade acirrada e se tornam reféns da situação a que estão submetidas e impossibilitadas de denunciar – por medo de serem deportadas, pela falta de documentos regulares, por desconhecimento do idioma ou mesmo por falta de acesso aos canais e meios que poderiam assegurar seus direitos.

Por outro lado, em nível macro, muitos países também se valem dessa interface, de maneira instrumental e utilitária, para defender, cada vez mais, a necessidade de políticas migratórias restritivas e de maiores investimentos na securitização e proteção de suas fronteiras. A confusão entre tráfico de pessoas e contrabando de imigrantes é um dos mecanismos que tais políticas se valem na tentativa de conter fluxos migratórios, especialmente daqueles provenientes de países pobres e que envolvem migrantes “indesejados”. Segundo Guilherme Mansur, no artigo Um discurso alinhado com diretrizes internacionais. Combate ao tráfico de pessoas que compõe esta Resenha, é como se toda uma retórica de direitos humanos fosse mobilizada para justificar atitudes de controle e restrição, a partir do seguinte discurso: “[…] Precisamos gerir as fronteiras de forma eficiente, a fim de evitar a imigração irregular e proteger as potenciais vítimas de tráfico”.

Exemplo disso é a tentativa de alguns países asiáticos de não autorizarem suas nacionais a exercerem atividades de trabalho doméstico em outros países com base na ideia de que, dessa forma, as estariam protegendo da exploração e da violação de direitos. Ainda que o discurso seja o de controlar os fluxos migratórios a fim de proteger as pessoas da exploração, na prática, o que se percebe é o efeito reverso: há um incremento da migração, porém, através de canais irregulares, precários e inseguros. E a situação de irregularidade migratória, por sua vez, os torna mais vulneráveis ao trabalho forçado e à exploração, configurando assim um ciclo vicioso.

Diante desse cenário, a criminalização das migrações, que muitas vezes acompanha o discurso e as práticas anti-tráfico de pessoas, acaba por violar os direitos de pessoas que buscam salvar a própria vida e, em última instância, por alimentar a prática do tráfico de pessoas. A solução para essa questão passa necessariamente pelo reconhecimento do direito de migrar, pela garantia e promoção de canais regulares de migração e, antes disso, pelo desenvolvimento humano integral capaz de prevenir esta a outras ameaças à vida e à dignidade humana, combatendo miséria, pobreza, exclusão social, discriminação, desemprego, entre tantos outros elementos que fazem parte da lógica do sistema capitalista e que são as causas estruturais do tráfico de pessoas.

Editorial da resenha Migrações na Atualidade, edição 107, publicado também no MigraMundo pela parceria com o CSEM – Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios

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