Nova série do MigraMundo trará histórias de migrantes que tiveram suas vidas transformadas por meio do esporte
Por Mathias Boni
Em Porto Alegre
No último mês de agosto, teve início a temporada 2019/2020 no futebol profissional na Europa. Dentre as centenas de clubes que disputam competições nacionais ou continentais há uma série de jogadores que tiveram suas origens bem longe do país onde vivem hoje, ou mesmo em outros continentes.
Por essa razão, cabe ressaltar como o futebol (e também outros esportes, como o basquete) pode desempenhar um papel muito importante para a integração, inclusão social e até reconhecimento dos direitos de imigrantes e refugiados durante seu acolhimento em outro país. Ao mesmo tempo, não se pode ignorar a série de contradições que exemplificam barreiras diversas e interesses sociais, políticos e econômicos que recaem sobre essas pessoas.
Ao longo das próximas semanas, faremos uma série contando as histórias de jogadores de futebol e outros atletas profissionais que hoje têm grande sucesso internacional, além das dificuldades do passado e do presente.
A primeira história contada será a de Ansu Fati, jovem jogador nascido em Guiné-Bissau que hoje brilha no Barcelona, mas que ainda muito novo precisou fugir com a sua família da guerra civil no seu país natal.
De Guiné-Bissau à Espanha
No último dia 25 de agosto, contra o Real Bétis, pela segunda rodada do campeonato espanhol, o Barcelona promoveu a estreia de um novo jogador, chamado Ansu Fati. Quando ele entrou em campo, aos 78 minutos de jogo, Fati se tornou o segundo jogador mais jovem da história a jogar partidas oficiais pelo clube. Ele tinha exatamente 16 anos e 298 dias, e fez sua estreia antes mesmo de Messi, que é um grande incentivador de sua carreira, e apenas atrás de Vicente Martínez, 20 dias mais jovem, em 1941.
Fati nasceu em Guiné-Bissau, onde viveu até os 6 anos, e que passou por uma sangrenta guerra de independência entre 1963 e 1974 – é ex-colônia portuguesa. No final dos anos 90, também em função do processo turbulento e inadequado de descolonização, uma guerra civil foi deflagrada no país.
A devastação e a violência causadas pela guerra fizeram com que Bori Fati, o pai de Ansu, fosse sozinho em 2001 para a Espanha, em busca de melhores condições de vida para a sua família. Após ter morado nas ruas e passado fome em alguns momentos, Bori acabou relativamente se estabelecendo. Três anos depois de sua chegada, morando em Sevilla, ele então finalmente conseguiu viabilizar para que sua esposa e os dois filhos fossem encontrá-lo, reunindo novamente a família. Em razão da guerra civil em Guiné-Bissau, cerca de 500 mil pessoas deixaram o país, imigrando principalmente para Senegal e países na Europa.
O Fenômeno Ansu Fati
Desde muito novo, Fati mostrou talento acima da média para o futebol. Por essa razão, ele jogou nas categorias de base do Sevilla quase a partir do momento em que chegou na cidade. Ao total, ficou dos seis aos dez anos no clube. Nessa idade, já chamou a atenção do Barcelona, e, após um convite formal, acabou se mudando com a família para jogar no gigante catalão, onde vem sendo destaque desde então. Só a partir da mudança para Barcelona que Ansu e sua família puderam finalmente se estabilizar financeiramente.
No último mês de julho, um pouco antes da liga espanhola dessa temporada começar, o Barça chamou Fati para assinar o seu primeiro contrato profissional. Válido até 2022, a cláusula de rescisão é no valor de 100 milhões de euros, o que demonstra como o clube catalão aposta no futuro da sua nova joia.
Em entrevista ao jornal Mundo Deportivo, Bori Fati declarou, após o primeiro jogo como profissional do filho: “Eu sabia que ele gostava de jogar futebol, como todo menino africano. Só não sabia que ele era tão bom. Hoje é o dia mais feliz da minha vida. Quando ele nos disse que estava convocado para o jogo, eu e minha mulher começamos a chorar imediatamente. Quando ele entrou em campo, estávamos nas nuvens.”
Ao canal oficial da liga espanhola, após o jogo, Ansu falou: “Estava olhando para os meus pais, minha família, que foram os que me acompanharam até aqui. Fiquei ali no campo porque não acreditava e agora tenho que aproveitar o momento. Insisto que só tenho palavras para agradecer.”
No dia 31 de agosto, apenas em seu segundo jogo, Ansu Fati fez seu primeiro gol como profissional, se tornando o jogador mais jovem a marcar com a camisa do Barcelona pelo Campeonato Espanhol na história, alcançando outro recorde pessoal para a sua precoce carreira. Ainda, algumas semanas depois, no dia 17 de setembro, ele também se tornou o jogador mais jovem da história do Barcelona a representar o clube na Uefa Champions League, a maior competição entre clubes da Europa.
Os feitos de Ansu Fati em campo pelo Barcelona foram facilitados pela ausência por lesão de algumas das principais estrelas do time catalão no período, como o argentino Lionel Messi e o uruguaio Luis Suárez, abrindo espaço para sua entrada nos jogos.
No entanto, Ansu Fati não joga pelo Barcelona desde o final de setembro, quando sofreu uma lesão do joelho. Recém-recuperado, ele aguarda uma oportunidade para voltar a ser relacionado – uma tarefa que não é das mais fáceis, em meio a um elenco repleto de talentos.
Inspiração, mas não exceção
No último dia 20 de setembro, após mais de 10 anos morando em solo espanhol, o Conselho de Ministros da Espanha concedeu a nacionalidade e o passaporte espanhol a Ansu Fati. Toda organização e negociação para a aprovação do pedido foram conduzidos pelo Barcelona e pela Federação Espanhola de Futebol, intermediando o contato entre os Ministérios da Justiça, Relações Exteriores e Cultura.
A Federação Espanhola, que passou mais de três meses especialmente empenhada no sucesso do processo de naturalização, tinha o intuito de utilizar o jogador nas seleções espanholas de base e profissional, inclusive tendo incluído o jogador na pré-lista de 50 jogadores que disputarão a Copa do Mundo sub-17 no Brasil esse mês – ele acabou não incluído na lista final.
Para o Barcelona, a naturalização de Fati também é benéfica, pois ele deixa assim de ocupar uma vaga de estrangeiro no clube – a Liga Espanhola permite até três jogadores que não tenham passaporte europeu.
Pela popularidade global do esporte, e pelo da ascensão social de Ansu e sua família, resta claro o potencial do futebol como agente integrador de imigrantes e refugiados durante sua estada no país de acolhida. Porém, há diferentes aspectos a serem compreendidos nessas histórias de sucesso; primeiramente, elas são importantes como exemplo de superação e inspiração a outras pessoas nas mesmas condições de dificuldades, além de invariavelmente atrair mais atenção da mídia sobre as condições dos refugiados e imigrantes no país onde o jogador estiver se destacando.
Contudo, esses casos acabam se tornando exceção, pois, muitas vezes, os imigrantes e refugiados acabam tendo seus direitos reconhecidos apenas porque grandes organizações esportivas têm interesse nos resultados que eles irão produzir.
Esse é justamente o ponto levantado por Moha Bakkali, um atleta profissional do atletismo que nasceu no Marrocos e mora há mais de 15 anos na Espanha. Ele reclamou da celeridade excepcional com que a cidadania foi concedida a Ansu Fati, expondo que atletas de altíssimo nível, principalmente do futebol, têm seus processos facilitados justamente pelo lobby dessas grandes organizações que estão por trás das nacionalizações, interessados nos retornos esportivos – e financeiros – que terão com os atletas no futuro.