Por João Chaves*
Ao longo de mais de dois anos da pandemia de COVID-19 no Brasil, todas as estruturas de vida social e de governo foram testadas quanto a sua capacidade de adaptação a novas realidades, e pela busca de algum tipo de proteção à saúde pública e às pessoas. No campo da migração e da gestão de fronteiras, os dilemas foram desde março de 2020 resumidos numa questão: como garantir mobilidade num mundo de imobilidade? Desse ponto de partida, desenvolveu-se um debate jurídico e político entre diversos atores, com interesses nem sempre convergentes.
Apesar da legitimidade de restrições de entrada e controles de fronteira, diversas organizações da sociedade civil, instituições públicas, profissionais e a comunidade acadêmica esforçaram-se para apontar padrões injustos e ineficazes da resposta do governo federal sobre o tema. Ao mesmo tempo em que a Presidência da República minimizava os efeitos da pandemia, especialmente em 2020, os órgãos de gestão migratória impuseram um sistema de impedimento quase total de ingresso por via terrestre, com a previsão de deportações imediatas sem direito de defesa e, ainda, a impossibilidade de solicitação de refúgio. Por longos meses, pessoas em situação de extrema vulnerabilidade eram impedidas de acessar o território, ou faziam-no de modo irregular por trilhas ou vias não autorizadas, enquanto turistas estadunidenses ou europeus entravam livremente no país por avião, sem exigência de testes.
A chegada das vacinas e a pressão geral levaram o Poder Executivo a pequenas flexibilizações, inicialmente para a permissão de regularização migratória de pessoas provenientes da Venezuela, e em dezembro com a mudança do modelo de controle, em que o diferencial passou a ser a exigência de vacinação com ciclo completo. Contudo, as deportações e a suspensão parcial do instituto de refúgio, um direito previsto em instrumentos internacionais, seguiram como ameaça constante a pessoas que buscam acolhida no país. Houve, ainda, aplicação de multas individuais de até R$ 10.000,00 (dez mil reais) em caso de desobediência.
Estamos hoje num ponto decisivo para o tema. A mais recente das 39 (trinta e nove) portarias interministeriais de restrição de entrada chega a dispensar a exigência de testes RT-PCR e o preenchimento da DSV – Declaração da Saúde do Viajante, e admite que pessoas brasileiras ou migrantes já residentes ingressem no país com ciclo vacinal incompleto. O problema é, ainda assim, não ter sido capaz de reconhecer o que tanto os órgãos centrais da OMS – Organização Mundial de Saúde e do ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, como profissionais de direitos humanos dizem desde março de 2020: é inútil reduzir o direito ao refúgio ou criar mecanismos de deportação em fronteira como medida sanitária.
Não foi, portanto, por falta de aviso que o Brasil chegou hoje a um cenário de caos migratório. Temos hoje dezenas de milhares de pessoas migrantes e refugiadas em busca de regularização, que sequer foram identificadas nos pontos de fronteira terrestre, gerando um passivo enorme de atendimentos ao qual a Polícia Federal, órgão responsável pela documentação, não tem capacidade estrutural de atender. Além disso, há indícios de que o governo federal pretende declarar oficialmente a revogação da declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, ou o “fim” da pandemia. Independentemente da discussão técnica sobre esse novo passo, nada justificaria a suspensão do direito de refúgio nas fronteiras até agora. Não há qualquer fundamento prático que autorize a continuidade dessa aberração jurídica, cuja ilegalidade foi reconhecida em dezenas de ações individuais na Justiça Federal de São Paulo e é objeto de diversas ações coletivas.
Se hoje uma pessoa nacional da Ucrânia ou do Afeganistão, não vacinada ou sem seu comprovante, aparecer em nossa fronteira terrestre, será impedida de ingressar, multada, proibida de solicitar refúgio ou requerer residência para fins de acolhida humanitária, e ainda será ameaçada de deportação. Nos dois casos, o Brasil tem uma política admirável de concessão de vistos humanitários, mas esbarra na própria incoerência ao negar o acesso por via terrestre justo às pessoas em maior risco, por uma norma ilegal e inútil. Há sentido nisso?
Cabe, ainda, uma pequena digressão. De algum modo, essa contradição é útil ao trazer à tona o dilema sempre pendente nos debates sobre política migratória brasileira quanto ao nosso perfil enquanto país acolhedor. A legislação é bastante progressista, há reconhecimento de direitos e, talvez pela invisibilidade numérica, alguma empatia quanto a pessoas vítimas de migração forçada. No entanto, em pequenos e bem escolhidos nichos o governo brasileiro insiste em teses anacrônicas como a da falsa ideia de segurança nacional nas fronteiras, agora materializada no argumento sanitário. Ou seja, coube ao país que adotou a Declaração de Cartagena em sua lei interna e garantiu o direito de trabalho e estudo às pessoas solicitantes ameaçar sua posição vantajosa nas discussões internacionais ao suspender parcialmente o direito de refúgio, sem qualquer vantagem prática e sem disso retirar benefícios práticos.
Quando superada a pandemia, teremos um longo caminho enquanto país para lidar com as consequências dessa política migratória pouco eficiente, sem base em evidências, restritiva e seletiva. A exclusão das sanções de deportação imediata e impedimento de solicitação de refúgio deve ser a primeira de muitas medidas, e não há mais como esperar.
Sobre o autor
João Chaves é defensor público federal, coordenador de Migrações e Refúgio da Defensoria Pública da União em São Paulo. Doutorando em Ciências Sociais na UFABC. Email: [email protected]