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terça-feira, outubro 29, 2024

Em 14 anos, mais de 800 imigrantes foram resgatados de situações de trabalho escravo no Brasil

Bolivianos estão entre as maiores vítimas dessa situação, corresponendo a quase metade dos casos de imigrantes resgatados de trabalho análogo à escravidão

Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação pela Fiquem Sabendo, agência de dados especializada no acesso à informações públicas, apontam que 860 imigrantes foram resgatados de trabalho análogo ao de escravo no Brasil nos últimos 14 anos, de 2006 a 2020.

Os anos de 2013 e 2014 concentram a maior parte de resgates nesse período, sendo 31,74% e 13,84% do total, respectivamente. Em relação aos países de origem dos resgatados, a maior parte é natural da Bolívia, com 405 casos (47%), seguida por Paraguai, Haiti, Peru e China. O levantamento cita ainda resgatados de Venenzuela, Cuba, Argentina, Uruguai, Portugal e Filipinas.

Enquanto grande parte dos bolivianos resgatados estavam em condições de escravidão moderna na área têxtil, os imigrantes chineses, em sua maioria, foram encontrados em trabalhos degradantes na área alimentícia, os paraguaios na agropecuária e extrativismo, e os haitianos na construção.

Com o aumento do fluxo de imigrantes venezuelanos no Brasil, estes também figuram entre os que acabam explorados por trabalhos análogos à escravidão. De acordo com os dados levantados pela Fiquem Sabendo, pelo menos 31 venezuelanos foram resgatados desse tipo de situação desde 2017, sendo 17 no estado de Roraima, nove na Bahia e cinco em Rondônia.

Pais de origemPessoas resgatadas – trabalho análogo à escravidão
Bolívia405
Paraguai169
Haiti141
Peru66
China39
Venezuela31
Argentina4
Cuba2
Filipinas1
Portugal1
Uruguai1
Fonte: Ministério da Economia

Prática abolida?

No Brasil, considera-se “trabalho análogo ao de escravo” o trabalho forçado, jornada exaustiva, situação degradante de trabalho, restrição de locomoção, servidão por dívida e apreensão de documentos ou objetos pessoais, sendo classificado como crime contra a dignidade humana segundo o Artigo 149 do Código Penal.

Os dados do Radar SIT do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, do Ministério da Economia, apontam que mais de 53 mil pessoas foram resgatadas de trabalho análogo ao de escravo no país de 1995 a 2020.

Esses dados demonstramquea prática continua mesmo após a abolição da escravatura, em 1888. E os imigrantes que não tomam conhecimento das leis trabalhistas no Brasil e se encontram em situação de maior vulnerabilidade social ficam ainda mais expostos a trabalhos degradantes.

Carla Aparecida Silva Aguilar, assistente social do Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (CAMI), recorda que a grande maioria dos trabalhadores encontrados em condições de trabalho escravo moderno e tráfico de pessoas são imigrantes, principalmente latino-americanos; já nas áreas rurais a incidência é maior de brasileiros – muitos deles, migrantes internos. “Se você não conhece o lugar que você está, é mais difícil você não se submeter a algumas exigências do empregador”, exemplifica.

Mulheres imigrantes sob trabalho escravo

Os dados obtidos pela Fiquem Sabendo mostram que seis em cada 10 pessoas escravizadas estavam no estado de São Paulo e a capital paulista teve 377 resgates, a cidade com o maior número. A agência expõe, também, que 46% dos resgatados entre 2006 e 2020 atuavam na indústria têxtil – mais presente em grandes centros urbanos, principalmente São Paulo.

Soledad Requena, mestre em políticas públicas e gênero e assessora do Centro da Mulher Imigrante e Refugiada (CEMIR), observa que existe uma enorme dificuldade em denunciar, não só pelo medo como imigrante, mas principalmente, por medo de sofrer represálias por parte dos denunciados.

Ainda segundo Requena, 70% das pessoas que fazem parte da cadeia produtiva das confecções na cidade paulista são mulheres imigrantes, em especial, mulheres bolivianas e peruanas de origem indígena. Ela explica também que muitas mulheres, principalmente bolivianas – as maiores vítimas de condições de trabalho insalubre na cadeia de confecções – têm um certo preconceito com o termo e, por isso, não se reconhecem como vítimas de trabalho análogo ao de escravo.

“Existe uma cultura que se assemelha muito à cultura boliviana que quanto mais horas você trabalha, você é mais digna. No Brasil tem toda uma legislação e controle de horas trabalhadas e isso rompe com a dinâmica que tinham no seu país”, observa.

Segundo o levantamento “Trabalho escravo e gênero: quem são as trabalhadoras escravizadas no Brasil?”, realizado em 2020 pela ONG Repórter Brasil, 93,1% das mulheres resgatadas entre 2003 e 2018 na cidade de São Paulo era de origem imigrante. O estudo aponta ainda que 178 mulheres resgatadas no país eram costureiras, o que representa 7,8% do total analisado. A confecção, assim, ocupa a terceira posição com mais casos, analisados por gênero, atrás apenas de trabalhadoras rurais e cozinheiras.

Impacto da pandemia

A pandemia de Covid-19 e o agravamento da crise econômica no país são vistos por especialistas como elementos que devem elevar os casos de trabalho análogo à escravidão. Somado a isso, as fiscalizações vêm diminuindo.

Requena aponta que houve dois períodos: com o início da pandemia, em março de 2020, muitos imigrantes perderam seus empregos, principalmente os que trabalhavam na área de confecções. No segundo semestre do ano, no entanto, houve uma busca por trabalhadores visando a produção de máscaras de proteção.

“Muitas mulheres imigrantes que não eram costureiras, muitas africanas inclusive, entraram na cadeia têxtil como uma forma de conseguir renda na pandemia, através da confecção de máscaras”, observa. E nesse contexto atual, as mulheres migrantes estão muito mais expostas e vulneráveis a se submeterem ou até voltarem a se submeterem a condições de trabalho análogo ao de escravo.

“As pessoas estão sem trabalho, então elas acabam se sujeitando a ganhar bem menos porque elas precisam se alimentar, pagar o aluguel, dar comida pras crianças. Isso é um problema que a gente vem enfrentando e acredito que vai ficar cada vez mais latente, infelizmente”, reforça Aguilar.

A desvalorização da moeda brasileira, o real, perante ao dólar pode acentuar mais a situação. “As pessoas estão perdendo seus trabalhos e único vínculo que dava sustento a suas famílias e, por outro lado, o dólar está muito alto. Isso significa, que eu vou deixar de importar coisas prontas para fabricá-las aqui no Brasil e exportar”, ilustra Aguilar. E mesmo com a vantagem monetária da exportação, os trabalhadores são, muitas vezes, mal remunerados e explorados para além do permitido por lei, conclui a assistente social.


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