Por Maria Eduarda Matarazzo e Rodrigo Borges Delfim
Nesta segunda-feira, 20 de janeiro de 2025, o republicano Donald Trump assume pela segunda vez a Presidência dos Estados Unidos com um discurso bastante duro contra os migrantes. Em uma coincidência bastante simbólica e curiosa, nesse mesmo dia há exatos dez anos estreava no musical que conta a história de um dos principai personagens da sua independência – simplesmente um imigrante.
O musical “Hamilton” retrata a vida de um dos pais fundadores dos Estados Unidos e primeiro Secretário do Tesouro, Alexander Hamilton (1755-1804), o mesmo que aparece estampado na nota de 10 dólares. Ele nasceu em Charlestown, em uma ilha que fazia parte das então Índias Ocidentais Britânicas – a cidade atualmente é parte do arquipélago de São Cristóvão e Nevis.
A trajetória de Hamilton foi adaptada para a Broadway pelo ator, compositor, diretor, escritor e produtor Lin-Manuel Miranda, ele próprio filho de imigrantes de Porto Rico. Miranda resolveu se engajar nessa empreitada após ler uma biografia do político. Em algo pouco usual para um musical, Hamilton é narrado por meio de canções nada tradicionais, dos gêneros hip hop, R&B e soul, tendo seu elenco em sua maioria atores negros e/ou descendentes de migrantes. Mesmo com essa fórmula, a produção obteve um sucesso considerado estrondoso, que rendeu prêmios diversos – em 2016, por exemplo, venceu em 11 das 16 indicações recebidas no Tony Awards, uma espécie de “Oscar do teatro”.
Depois da estreia, o musical já passou pela Broadway – onde segue em cartaz – e foi montado em diversas cidades dos Estados Unidos e de países de língua inglesa – Reino Unido, Irlanda e Austrália. A produção também pode ser vista em formato de filme, lançado em 2020 pela Disney.
Breve história de Hamilton
Nascido no Caribe, Hamilton se mudou para Nova York aos 19 anos, já sendo um grande defensor da Independência das colônias estadunidenses contra a Inglaterra. Ele chega como “bastardo, órfão, filho de uma meretriz e um escocês”
Em 1776, Hamilton ingressa na King’s College (atual Universidade de Colúmbia), onde conhece Aaron Burr, já um político local bastante conhecido. Juntos, formam uma aliança com outros revolucionários, como o abolicionista John Laurens, o francês Marquis de Lafayette e Hercules Mulligan, e se juntam ao Exército Continental. Lá, Hamilton conhece o General George Washington, futuro primeiro presidente dos Estados Unidos, de quem se torna ajudante de ordens.
Após diversas tentativas, Hamilton conquista o posto de tenente-coronel e, com a ajuda de Lafayette, a França se junta à batalha. Juntos, derrotam a marinha britânica em Yorktown (1781), decidindo a vitória da Revolução Americana.
Após a guerra, Hamilton retorna a Nova York e, junto de Burr, estuda Direito para se tornar advogado. Ele se casa com Eliza Schuyler, integrante de uma família influente politicamente na região e com quem teve um filho, mergulhando cada vez mais em seu trabalho.
Em 1787, Alexander Hamilton foi nomeado delegado para a Convenção Constitucional de Nova Iorque, onde defendeu um governo central forte e propôs a ideia de mandatos vitalícios para o presidente e senadores, o que gerou resistência. Apesar de suas ideias serem vistas como monárquicas, ele elaborou um esboço de Constituição que refletia princípios importantes, como a escolha federal dos governadores e um Senado proporcional. Embora insatisfeito com o resultado, Hamilton assinou a Constituição e teve um papel crucial na campanha de ratificação, especialmente em Nova Iorque, ajudando a garantir sua adoção.
Além disso, Hamilton foi um dos principais autores de *O Federalista*, uma série de 85 ensaios que defendiam a nova Constituição, ajudando a consolidar o governo federal.
Em 1789, foi nomeado o primeiro Secretário do Tesouro, cargo no qual construiu as bases do sistema financeiro dos Estados Unidos, válidas até hoje. Entre suas principais realizações estavam a criação do First Bank of the United States e a implementação de políticas econômicas inovadoras, como a proposta de que o governo federal assumisse as dívidas dos estados e a defesa de uma economia industrial. Hamilton também teve papel fundamental na criação dos primeiros partidos políticos nos EUA, com os Federalistas, que o apoiavam, e os Republicanos, de Jefferson e Madison, que se opunham a suas ideias. Sua visão de um governo forte e sua política de neutralidade geraram tensões políticas.
Após se demitir do Tesouro em 1795, continuou influente na política, mas sua rivalidade com o antigo amigo e depois desafeto Aaron Burr culminou em um duelo fatal em 1804. Sua morte, apesar de prematura, consolidou seu legado como uma das figuras mais importantes na formação do novo governo dos Estados Unidos.
A produção também destaca a vida pessoal de Hamilton, que teve a carreira política afetada pelo envolvimento com uma mulher casada e um filho adolescente morto em um duelo.
Exaltação aos imigrantes e choques com o governo Trump
Uma produção cultural como “Hamilton” ganha uma conotação especial diante do início de um segundo governo Trump nos Estados Unidos que promete uma postura ainda mais dura em relação aos imigrantes do que na gestão anterior (2017-2021). O republicano promete deportações em massa, usar força militar para impedir a entrada de indocumentados no país e acabar com o direito à cidadania nacional no ato de nascimento, no caso de filhos de imigrantes.
“Nosso elenco se parece com a América agora, e isso é certamente intencional”, disse Miranda em entrevista ao jornal The New York Times em 2015, sobre o fato de ter escolhido atores negros e latinos para os papéis. “É uma maneira de puxar você para a história e permitir que você deixe qualquer bagagem cultural que você tenha sobre os pais fundadores na porta.”
Uma das frases emblemáticas do musical é “Immigrants, we get the job done” (“Imigrantes, a gente dá conta do trabalho” em tradução livre), entoada por Hamilton e Lafayette, dois imigrantes que tiveram atuação destacada no processo de independência dos Estados Unidos, após a vitória na batalha de Yorktown (1781), que selou a derrota da Inglaterra no conflito.
Estimativas do Pew Research Center indicam que cerca de 11 milhões de imigrantes residam de forma indocumentada nos Estados Unidos. Mesmo assim, contribuem de forma decisiva para setores diversos da economia, como a agricultura e serviços em geral.
A trama aborda ainda outras lutas sociais. A esposa de Hamilton, Eliza Schuyler, e suas irmãs, filhas de um general americano, desafiam os papéis restritivos impostos às mulheres da época, que não tinham direito ao voto ou ao trabalho, sendo educadas para casar com homens ricos. A personagem de Angelica, irmã mais velha de Eliza, se destaca como uma figura de resistência a esse modelo, e em uma de suas falas mais marcantes, faz uma crítica à Declaração de Independência de Thomas Jefferson, que afirmava que “todos os homens são criados iguais”. Angelica, ao se referir ao texto, provoca: “ao encontrá-lo, vou obrigá-lo a incluir as mulheres”.
No final de 2016, poucas semanas após a vitória de Trump sobre Hillary Clinton na eleição presidencial, o elenco de Hamilton aproveitou a presença do então vice-presidente eleito Mike Pence na plateia para fazer um apelo aos próximos administradores, pedindo que trabalhassem em nome de todos os americanos. Essa declaração gerou uma resposta agressiva de Trump, que no dia seguinte a chamou de “assédio” e exigiu um pedido de desculpas por parte do elenco do espetáculo. Após o espetáculo, o ator Brandon Victor Dixon, que interpretava Aaron Burr, agradeceu a presença de Pence e pediu que ele ouvisse a mensagem do elenco.
“Nós, senhor — nós — somos a América diversa que está alarmada e ansiosa que sua nova administração não nos protegerá, nosso planeta, nossas crianças, nossos pais, ou nos defenderá e defenderá nossos direitos inalienáveis”, ele disse. “Nós realmente esperamos que este show tenha inspirado você a defender nossos valores americanos e a trabalhar em nome de todos nós”, afirmou Brandon.
Em outros momentos, atores de “Hamilton” também se engajaram em manifestações de apoio aos migrantes, como em 2018 – se posicionando especialmente contra a separação de famílias em centros de detenção.
A partir deste 20 de janeiro, produções como Hamilton voltam a representar um contraponto ao discurso e práticas representadas pelo governo vigente nos Estados Unidos e defendidas por parte da sociedade – como a eleição de Trump mostra. No entanto, a julgar pelos atos ocorridos durante a gestão Trump 1, podem ser esperadas novas ações de contestação ao republicano e de defesa do papel dos imigrantes na economia e na história do país.
A luta pela inclusão e pelos direitos dos imigrantes continua. E a história mostra que as contribuições dos imigrantes são essenciais para a formação de um país e de uma sociedade mais fortes e justas.
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