Por Lívia Major
Duas jovens que adoram dançar e nadar. Cheias de planos e incertezas. Coisas tão típicas da juventude…
Este poderia ser o enredo de mais um filme pop da Netflix. Mas longe disso, bem longe disso. “As Nadadoras” é, sem dúvida, um dos lançamentos mais tocantes e inspiradores da gigante do streaming. Baseado na história real de Yusra e Sara Mardini, o longa tem como protagonistas duas irmãs sírias que são incentivadas desde cedo pelo pai a se tornarem nadadoras profissionais. Enquanto tentam descobrir suas próprias identidades, para além das aspirações da família, as vidas de Yusra e Sara são completamente transformadas pela eclosão da Guerra Civil Síria em 2011.
A diretora, Sally El Hosaini, explica que, por mais instigante que a história das irmãs seja, o objetivo do longa é retratar a conjuntura do refúgio: “Yusra e Sara são o 1%. Ao fazer o filme, estávamos muito atentos a isso porque queríamos também representar os 99%. Fizemos isso por meio do primo, Nizar, e por meio de algumas daquelas cenas em que você dá um passo para trás e sente o contexto da situação”. Para atingir esse propósito, muitos refugiados trabalharam no filme – tanto na parte técnica, como na atuação: “[nas cenas] no bote, na travessia do Mar Egeu, muitos daqueles coadjuvantes realmente fizeram aquela viagem e aceitaram fazer parte do filme, para que a história fosse o mais autêntica e verdadeira possível”, explica Hosaini.
Em uma das cenas mais emblemáticas, Yusra participa de uma competição quando o ginásio é bombardeado. Após o ataque, as irmãs convencem o pai a deixá-las viajar para a Europa e, junto com um primo, embarcam em uma perigosa jornada rumo à Alemanha. Os três se juntam a um grupo que inclui afegãos, sudaneses, eritreus… São centenas de milhares de pessoas fugindo na esperança de uma vida melhor.
Mas é na travessia do Mar Egeu que este sofrimento atinge o ápice. Sob ameaça de um naufrágio, as irmãs cruzam boa parte do trajeto a nado. Chegando à Grécia, abandonam os coletes salva-vidas ao lado de outros tantos milhares largados na praia – um símbolo da magnitude dos fluxos migratórios resultantes da fuga de civis de guerras e da pobreza extrema nos continentes africano e asiático.
Movidas por um instinto de sobrevivência, o que as irmãs encontram no caminho é o pior lado da humanidade. Enquanto na Síria experienciam as consequências da ambição do poder, na Turquia são vítimas da ganância e, finalmente chegando à Europa, sofrem com a xenofobia.
A viagem de Yusra e Sara se dá em 2015, um ano chave para a política migratória na Europa. Segundo a agência da ONU para os refugiados, o Acnur, nesse período 1.032.408 pessoas chegaram ao continente pela Grécia, Itália, Chipre, Malta e Espanha – um número quatro vezes maior do que em 2014. Cerca da metade desses refugiados eram sírios. Só a Grécia recebeu uma média de oito mil pessoas por dia. A agência estima ainda que 3.735 migrantes desapareceram no caminho, tendo, provavelmente, morrido afogados.
O aumento de refugiados na Europa desencadeou diversas crises políticas. Uma série de acordos são feitos buscando equalizar a distribuição dessas pessoas entre os países, mas poucos são cumpridos. Nesse sentido, a Alemanha ganhou destaque sendo um dos Estados a receber mais refugiados – segundo a agência Deutsche Welle, ao final de 2015, havia cerca de 1,1 milhão de migrantes forçados no país.
Yusra destaca que um dos principais objetivos do filme é mostrar que a questão migratória não é um problema “do outro”: “quero que as pessoas entendam que podem ajudar. Quero que as pessoas entendam que, no final, sou apenas uma garota comum que teve que passar por tudo isso, e não sou só eu. Há milhões que passaram por histórias semelhantes”.
Em outubro de 2015 foi instalado na ilha grega de Lesbos o primeiro centro de “recepção e registro” de migrantes e refugiados da União Europeia. É justamente nesse centro que Sara e Yusra desembarcam. Um momento que mudaria a vida das irmãs para sempre. A partir dali, ainda que juntas, elas seguem caminhos separados. Yusra mantém firme o sonho de continuar treinando para nadar nas Olimpíadas e, chegando na Alemanha, consegue uma chance de entrar para a equipe de refugiados graças à ajuda do treinador Sven Spannekrebs. Já Sara, embora tenha ido para Berlim com a irmã, percebe que sua vida havia parado em Lesbos. Após ver e viver tantas dificuldades, decide se tornar voluntária na Grécia para ajudar outros refugiados.
Além de discutir questões chave do processo migratório, o filme aborda também a temática feminista no mundo árabe. Hosaini explica que esse foi outro fator que a atraiu para a história: “Yusra e Sara são o tipo de mulher árabe moderna, jovem e liberal que raramente aparece em nossas telas de cinema. Eu adorei que isso, em certo nível, fosse um filme de esportes porque eu queria fazer aquele típico filme esportivo inspirador, mas para jovens mulheres árabes. Então, eu decidi fazer um filme que eu gostaria de ter assistido quando tinha 13 ou 14 anos e que me inspiraria. Essa era a minha ambição: subverter os estereótipos do que é um refugiado e do que essas jovens são”.
Como mostra o filme, Yusra participou das Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro, na estreia da equipe de refugiados, no qual permaneceu nos Jogos de Tóquio (2021), apesar do convite pra nadar pela Síria. Como recebeu a cidadania alemã, a atleta não pode mais competir no time e, nos últimos meses, vem focando seus esforços na atuação humanitária.
Já Sara, em 2018, foi presa enquanto trabalhava na assistência a refugiados e passou mais de cem dias detida, sob acusação de tráfico humano. Segundo as organizações internacionais Anistia Internacional e Human Rights Watch, o processo teve “motivações políticas” e “violou direitos humanos fundamentais”. O julgamento segue em curso e, se for considerada culpada, Sara pode ser condenada a 25 anos de prisão.