A Justiça Federal concedeu liminar, confirmada em sentença, a um nacional do Afeganistão para que tenha analisada a sua solicitação de visto humanitário para ingresso no Brasil. A decisão atende a um mandado de segurança impetrado contra o setor consular da Embaixada do Brasil em Teerã (Irã), um dos únicos locais atualmente aptos para concessão dos vistos humanitários, e onde foi feito o pedido de visto.
A decisão, que ainda cabe recurso da Advocacia-Geral da União (AGU), aponta uma situação de limbo deixada pela portaria atual que trata do tema. Isso porque a normativa em vigor, de outubro de 2023, restringe a concessão de visto humanitário para afegãos à capacidade de acolhimento por parte de entidades da sociedade civil. Na prática, tal emissão encontra-se suspensa desde então.
Isso porque a portaria também prevê a realização de um edital para seleção dessas entidades da sociedade civil, o que não foi feito até agora. Diante dessa lacuna, o mandado de segurança pede que a análise do visto humanitário solicitado pelo afegão em Teerã ocorra à luz da portaria anterior, de setembro de 2021, quando foram anunciados os vistos para afegãos.
Segundo o ACNUR, a agência da ONU para Refugiados, desde 2021 foram autorizados 13.133 vistos humanitários provisórios para afegãos no Brasil, com 10.985 efetivamente emitidos. Destes, 5.052 obtiveram autorização para estabelecer residência. Os afegãos representam ainda o quinto país com mais pessoas em necessidade de proteção internacional no Brasil, atrás de Venezuela, Haiti, Cuba e Angola.
Decisão da Justiça
“A falta da publicação de edital de seleção a ser promovido pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, a fim de identificar a capacidade de abrigamento por organização da sociedade civil com a qual a União tenha celebrado acordo de cooperação, nos termos da Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014, bem como a avaliação de perfil individual do candidato e comprovação de capacidade de abrigamento pelas organizações da sociedade civil, não seja razão para que a Impetrada suspender os pedidos de processamento de visto humanitário com base na Portaria Interministerial n. 42 de 22 de setembro de 2023, até que sobrevenha a regulamentação do seu artigo 3º, com a efetiva publicação do referido edital”, diz trecho da argumentação do mandado de segurança, ao qual o MigraMundo teve acesso.
“Nesses casos, é necessário aplicar a legislação anterior até que ocorra a regulamentação da nova portaria, para proteger os direitos adquiridos e as expectativas legítimas dos administrados (neste caso, os solicitantes do visto humanitário), para garantir o direito de ter a sua solicitação pelo menos analisada pela Embaixada”, aponta o advogado Wadih Assady Coury Neto, que defende o afegão que tenta o visto humanitário para ingresso no Brasil
No parecer favorável ao mandado de segurança, o juiz federal substituto Paulo Ricardo de Souza Cruz, da 5ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal, concordou com essa leitura. Ele recordou ainda que tal interpretação já conta com o aval do Ministério Público Federal.
“A aplicação da portaria de 2021 justifica-se pelo princípio da segurança jurídica, que protege os direitos adquiridos e as expectativas legítimas dos administrados, evitando mudanças abruptas e não regulamentadas que prejudiquem a efetivação de direitos previstos em lei, conforme bem pontuado pelo MPF, pelo que a tutela do direito da parte autora é medida que se impõe.
Coury Neto ressalta que a atual decisão é em caráter individual, mas que poderá servir como referência para outros pedidos enquanto a portaria atual não for completamente regulamentada.
Os afegãos no Brasil e os vistos humanitários
Os vistos humanitários para afegãos foram criados pelo governo brasileiro em setembro de 2021, um mês depois de o grupo radical Talibã retomar o poder no Afeganistão e levar a um grande deslocamento de opositores para outros países.
Desde o começo, no entanto, foram diversos os episódios de choque gerados por questões como a demora, burocracia e a suspensão da emissão dos vistos. Além dos problemas encontrados pelos afegãos para obter o documento, a chegada ao Brasil ainda costuma reservar outra adversidade: a falta de abrigamento, levado parte dos recém-chegados a ter de acampar no mezanino do Terminal 2 do Aeroporto Internacional de Guarulhos.
Em outubro de 2023, entrou em vigor a portaria publicada no mês anterior pelo governo federal que fez mudanças na emissão de vistos humanitários para afegãos, limitando as representações consulares aptas a emitir o documento e condicionando sua concessão à capacidade de abrigo dos solicitantes em território brasileiro.
Pela norma atual, somente as representações consulares em Teerã (Irã) e Islamabad (Paquistão) estão habilitadas a emitir o visto humanitário – ambos são países que fazem fronteira com o Afeganistão. A portaria de 2021 também incluía as embaixadas de Doha (Qatar), Abu Dhabi (Emirados Árabes Unidos), Moscou (Rússia) e Ancara (Turquia).
Quanto à outra grande mudança, de atrelar a emissão do visto à capacidade do país de abrigar o solicitante por meio de acordos prévios com entidades da sociedade civil, o governo informou que seriam firmados acordos com essas instituições. O modelo, inédito no país, já é adotado em outros países, mas não ocorreu de fato até o momento, resultando na lacuna apontada pelo mandado de segurança que ganhou aval da Justiça Federal.
Em maio de 2024, a Embaixada do Brasil em Teerã afixou um comunicado em farsi e inglês informando a suspensão da emissão dos vistos humanitários desde outubro passado e condicionando a retomada à preparação da lista das entidades aptas a receber os afegãos – o que segue pendente.
“O Governo Federal do Brasil está atualmente avaliando e preparando uma lista de organizações humanitárias no Brasil que terão direito a emitir novos agendamentos para os cidadãos afegãos. Quando a lista de organizações humanitárias aprovadas estiver disponível, ela será publicada aqui nesta página da web”, diz trecho do comunicado.
Críticas e preocupações
À época, o governo federal (por meio dos Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores) sustentaram que a portaria de 2023 aprimora a política migratória do Brasil para pessoas afetadas pela situação de instabilidade institucional e de grave violação de direitos humanos no Afeganistão, ao assegurar uma estrutura de acolhimento prévia à efetiva chegada dos afegãos ao país.
No entanto, a medida causou preocupação e dúvidas junto a entidades da sociedade civil e outros envolvidos diretamente na questão. Por meio de nota conjunta, um grupo de 36 entidades, incluindo ONGs de apoio a migrantes, coletivos e universidades, expressou preocupação com a portaria. Elas criticaram especialmente o ponto que condiciona a emissão dos vistos humanitários ao patrocínio de uma determinada entidade ao solicitante do documento.
“É de domínio público que restrições de entrada não evitam que as pessoas deixem de sair de seus países em busca de salvar suas vidas e de suas famílias, mas sim as expõem ainda mais a situações de exploração pelas redes de contrabando de migrantes. Esse modelo certamente privilegiará grupos e pessoas com maior capital social e financeiro e aumentará o risco de facilitação da emissão de vistos e apoio mediante a pagamentos e favorecimento de rotas irregulares”.
A nota das entidades fez ainda uma cobrança específica ao poder público para que também se comprometa em buscar soluções para o acolhimento dos afegãos no Brasil.