A Justiça Federal do Acre concedeu liminar nesta quarta-feira (19) favorável à Ação Civil Pública (ACP) contra a deportação e repatriação pelo Brasil de imigrantes em situação vulnerável que chegaram ao país a pé, por meio da fronteira com o Peru.
A decisão ainda obriga o país a aceitar pedidos de refúgio e de residência durante a pandemia de Covid-19.
Na última segunda-feira (17), uma ACP foi protocolada e assinada em conjunto pela Defensoria Pública da União (DPU), Ministério Público Federal (MPF), Conectas Direitos Humanos e Caritas Arquidiocesana de São Paulo.
Baseada na Lei de Refúgio (Lei 9.474/1997) e na Lei de Migração (Lei 13.445/2017), as instituições apontaram violações dessa legislação nas 18 portarias emitidas desde março pelo governo federal para restringir a entrada de pessoas no país sob o contexto da Covid-19.
Um de seus pontos polêmicos é o que estabelece que imigrantes que tenham entrado de forma indocumentada no país são impedidos de pedir refúgio.
As portarias fazem ainda ressalvas adicionais em relação a venezuelanos e não menciona situações de pessoas em situação de refúgio ou que caibam no chamado visto humanitário, previsto na Lei de Migração.
Decisão positiva
Em sua decisão, o juiz Jair Araújo Facundes, da 3ª Vara Federal do Acre, entendeu que novas deportações como as que ocorreram recentemente no estado resultariam “em severo risco à vida, à saúde e à integridade de pessoas aparentemente refugiadas, sendo parte delas formada por mulheres, grávidas, crianças e adolescentes”.
A situação vivida pelos imigrantes no Acre, inclusive, é considerada pelas instituições um exemplo claro da ilegalidade das portarias à luz da legislação brasileira e dos tratados internacionais firmados pelo país.
Para o defensor público João Chaves, um dos autores da ação, a decisão é a primeira a demonstrar de forma clara e abrangente essa ilegalidade.
“[Essa decisão] é importante por ser um reconhecimento do dano geral que a portaria causa tanto aos direitos dos migrantes previstos na Lei de Migração quanto ao próprio instituto do refúgio”.
Embora as entidades reconheçam que o Brasil pode estabelecer critérios de admissão e inadmissão de indivíduos, ponderam que isso deve ocorrer de acordo com suas políticas internas e suas relações internacionais. Condição essa que deve ser respeitada mesmo em contexto de emergência sanitária durante uma pandemia.
“Em uma situação de pandemia como a que estamos vivendo, acolher estas pessoas é uma decisão não apenas necessária, como humanitária. É perfeitamente possível conciliar o respeito às leis nacionais de migração e refúgio com protocolos sanitários de contenção da Covid-19”, declarou Camila Asano, diretora de programas da Conectas, em nota oficial da instituição.
Situação kafkiana
Ao cruzarem a fronteira no Acre, a partir do Peru, sem documentos, os imigrantes são detidos e deportados pela Polícia Federal para o país vizinho. No entanto, também são impedidos de ingressar em território peruano, que também conta com seus acessos fechados.
Em razão disso, os imigrantes acabam restritos a uma ponte sobre o rio Acre que, marca a fronteira entre os dois países. Nesse confinamento a céu aberto, os imigrantes — incluindo crianças e adolescentes — dependem da ajuda enviada por entidades assistenciais enquanto aguardam uma solução para o caso.
Essa situação foi descrita como kafkiana pela Ação Civil Pública, que foi acolhida pela Justiça Federal do Acre.
“Uma situação kafkiana e desesperadora de deslocalização, verdadeiro estado de exceção individual contra um grupo de pessoas extremamente vulneráveis a quem o Brasil nega tratamento digno e humanitário que assumiu quando da assinatura de tratados internacionais de direitos humanos e promulgação das Leis de Migração e Refúgio”, ressalta a ACP.
No último dia 6 de agosto, a Justiça Federal do Acre já havia acolhido uma decisão liminar fruto de ação da DPU que suspendeu a deportação de 18 imigrantes que tentaram entrar no Brasil a pé, por meio da fronteira com o Peru.
Abertura de precedente
Um dado adicional é que a portaria mais recente, publicada no final de julho e válida até 29 de agosto, liberou o acesso de pessoas de outros países via aeroportos. O argumento citado pelo governo federal para essa exceção é o incentivo ao turismo.
“Os interesses econômicos estão sendo conciliados com as preocupações sanitárias. Infelizmente essa preocupação não acontece quando se trata de refugiados”, afirmou Asano.
No entanto, a coordenadora da Conectas acredita que a decisão da Justiça Federal do Acre cria pressão para que as próximas portarias excluam aspectos violadores de direitos humanos, como a proibição do direito de se pedir refúgio no Brasil nem a discriminação contra cidadãos que venham da Venezuela.
Chaves também vê na decisão da Justiça Federal acreana um elemento a mais
“Espera-se que ela [a decisão] provoque uma mudança de perspectiva na elaboração de novas normas de restrição de entrada pelo governo brasileiro”.
Uma nova portaria a partir do Ministério da Casa Civil é aguardada para a semana que vem. Em junho passado, dez instituições da sociedade civil ligadas à temática migratória enviaram uma carta ao governo na qual criticam as ressalvas dirigidas especialmente aos venezuelanos e a ausência de menção a situações de refúgio.
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