publicidade
sábado, julho 12, 2025

Na contramão do Norte Global, Benin concede cidadania a afrodescendentes

Nova lei reconhece a diáspora africana como parte integrante da nação beninense e promete facilitar laços culturais, turísticos e políticos com países como o Brasil, maior nação negra fora da África

Enquanto governos do chamado Norte Global – como Estados Unidos, Itália, Reino Unido e Portugal, só para citar alguns – estão investindo em meios para restringir a migração e o acesso à cidadania local, há casos que vão na direção contrária. Nesse movimento chama a atenção a medida tomada pelo Benin, país localizado no oeste da África e que em 2024 sancionou uma lei que oferece cidadania a todos os afrodescendentes ao redor do mundo.

De acordo com o texto da lei, o benefício será concedido a toda pessoa que “em sua genealogia, tem um ascendente africano subsaariano deportado para fora do continente no contexto do tráfico negreiro”. Dessa forma, será dado o direito de entrada, permanência e saída do país, além de um passaporte que permite maior mobilidade pelo continente africano com mais liberdade e menos burocracia.

Já a cidadania plena, com direito ao voto e que exige residência de ao menos cinco anos no país, deve ser solicitada à parte.

Para que a cidadania beninense seja concedida, é necessário que o postulante apresente uma prova de que é afrodescendente, através de documento oficial, testemunhos que constem em escrita autêntica, teste de DNA por órgãos chancelados pelo Benin ou “qualquer outro meio técnico ou científico”.

Reconhecimento histórico

Em recente entrevista para o canal TRT Afrika, Oloushegun Adjadi Bakari, ministro das Relações Exteriores do Benin, falou sobre a importância da concessão da cidadania a afrodescendentes, uma vez que pessoas nessas condições que estão vivendo do outro lado do Oceano Atlântico nunca escolheram estar lá.

“A maioria deles foi deportada, por isso acreditamos firmemente e é por isso que eu costumava dizer que estamos definindo hoje, sob o comando do Presidente Talon, o novo pan-africanismo. Um pan-africanismo de ação”, afirmou. Baraki também observou que o verdadeiro pan-africanismo é conceder aos afrodescendentes fora do continente africano e aos que foram deportados como parte da escravidão o direito de voltarem ao Benin e fazerem parte da comunidade.

Esse reconhecimento, por sua vez, vai na contramão do que anunciou recentemente a Itália ao restringir o direito de cidadania italiana por descendência. Desde maio passado, ela só pode ser solicitada por filhos e netos de italianos, sob condições específicas. Antes, o direito à cidadania italiana era estendido a qualquer pessoa que conseguisse comprovar vínculo com alguém nascido na Itália após março de 1861 (quando o Reino da Itália foi criado). Tal ação partia de um entendimento de que o país possui uma dívida histórica com os cidadãos que tiveram de deixá-lo país no passado em busca de melhores condições de vida.

Bandeiras de países da África durante reunião da União Africana na África do Sul, em 2015. (Foto: Governo da África do Sul)

Impactos no Brasil

A nova medida pode ter reflexos no Brasil, que abriga a maior população negra e parda fora da África e foi, em 2023, o principal destino dos navios negreiros provenientes do Benin. Patrice Talon, presidente do Benin, visitou o Brasil em 2024 e afirmou que “na nossa opinião, todos os brasileiros afrodescendentes são beninenses e isso é uma vantagem para o Benin” e ainda “para além de razões históricas e emocionais, a nossa abordagem contribui, na nossa opinião, para uma melhor conectividade entre as nações”.

Segundo Marcelo Sacramento, cônsul honorário do Benin em Salvador, ainda é incerto quantos brasileiros poderão ser beneficiados pela nova lei, já que é difícil determinar com precisão a origem dos africanos escravizados que chegaram ao Brasil. No entanto, para se ter uma noção da dimensão, mais de um milhão de pessoas foram trazidas apenas para Salvador a partir da Costa da Mina — região litorânea que hoje abrange os territórios de Benin, Gana, Nigéria e Togo.

O cônsul ainda afirmou que a nova lei é um esforço do governo beninense para ser porta de entrada do turismo africano a partir das Américas e que Boniface Vignon, embaixador do país, está realizando um trabalho para viabilizar um voo direto entre Benin e Brasil.

Dagoberto José Fonseca, cientista social da Universidade Estadual Paulista (Unesp), destaca que, embora a medida possa fortalecer o debate e a construção da identidade da população negra no Brasil, o processo de comprovação da ancestralidade pode ser pouco acessível. Segundo ele, “nem toda a população negra terá recursos para realizar exames de mapeamento genético ou arcar com a obtenção de documentos além da própria autodeclaração”.

Primeira cidadã brasileira do Benin

Sueli Carneiro, filósofa e militante brasileira, foi reconhecida em dezembro de 2024 como cidadã do Benin em uma cerimônia na cidade de Cotonou que contou com a presença do Ministro das Relações Exteriores, Olushegun Adjadi Bakari, do Ministro da Justiça e Legislação, Yvon Detchenou, da Diretora Geral de Assuntos Consulares e Beninenses no Exterior, Myrina Amoussouga Adam-Bongle, Luanda Carneiro Jacoel – filha de Sueli Carneiro, da diretora do documentário, Urânia Munzanzu e da produtora executiva, Flávia Santana. A cerimônia foi registrada no documentário “Mulheres Negras em Rotas de Liberdade”, produzido pela Acarajé Filmes e Mulungu Realizações Culturais, no qual Sueli é uma das protagonistas.

O reconhecimento de Sueli como a primeira brasileira a receber a cidadania beninense foi simbolizado como um gesto de reparação histórica. Com essa ação, o país africano reafirmou seu compromisso em estabelecer uma política de reparação voltada à comunidade afro-diaspórica, criando um precedente que pode inspirar outras nações do continente africano a adotarem medidas semelhantes.

A decisão do Benin representa mais do que uma mudança legislativa — é um convite simbólico à reconexão, à valorização da ancestralidade e à reparação histórica. Ao abrir suas portas para descendentes da diáspora africana, o país lança luz sobre as cicatrizes do passado e oferece uma nova perspectiva de pertencimento e identidade para milhões de pessoas ao redor do mundo, especialmente no Brasil. O gesto fortalece laços, inspira reflexões e pode inaugurar uma nova era de relações entre África e suas populações descendentes espalhadas pelo globo.


Quer receber notícias publicadas pelo MigraMundo diretamente no seu WhatsApp? Basta seguir nosso canal, acessível por este link

O MigraMundo depende do apoio de pessoas como você para manter seu trabalho. Acredita na nossa atuação? Considere a possibilidade de ser um de nossos doadores e faça parte da nossa campanha de financiamento recorrente

Publicidade

Últimas Noticías