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sábado, dezembro 21, 2024

Non-refoulement e a proteção internacional dos direitos humanos em tempos de externalização de asilo

Medidas comumente empregadas por países do Norte global visam repelir refugiados e migrantes de seus territórios e eximir esses Estados de suas obrigações internacionais

Por Maria Luisa Yonezawa Fernandes
Do ProMigra

Desde sua proposta em 2022, a ‘Safety of Rwanda Bill’ tem sido alvo de duras criticas de protetores de direitos humanos ao redor do globo por permitir a deportação de requerentes de asilo no Reino Unido a Ruanda, país com notável histórico de graves violações de direitos humanos e desrespeito ao princípio da não-devolução. A política britânica não é, no entanto, inédita, na medida em que se soma aos crescentes exemplos de políticas de “externalização do asilo”: conjunto de medidas comumente empregadas por países do norte-global que visam, fundamentalmente, repelir refugiados e migrantes de seus territórios e eximir esses Estados de suas obrigações internacionais.

Após dois anos de ‘ping-pong’ parlamentar entre a Casa dos Lordes e a Casa dos Comuns, a “Rwanda Bill” foi aprovada em abril de 2024.

De acordo com a proposta, os pedidos dos requerentes de asilo que chegam ao Reino Unido seriam processados em Ruanda ao invés de em solo britânico. Caso admitidos, os aplicantes teriam o status de refugiado concedido e poderiam ficar em Ruanda; caso negados, poderiam aplicar para se estabelerem em Ruanda por outros motivos ou buscar asilo em outro “terceiro estado seguro”. Não será permitido o retorno ao Reino Unido.

De início, é imperativo pontuar que a própria designação “Estado seguro” é um artifício retórico, que não segue qualquer parâmetro internacional. Ruanda, o país “seguro” com o qual o Reino Unido barganha a deportação de refugiados, é notável por seu lastimável histórico de graves violações de direitos humanos, que vão de execuções extrajudiciais a mortes em custódia, desaparecimentos forçados e tortura, além de falhas em cumprir com acordos de non-refoulement no passado.[1]

O non-refoulement (ou não-devolução) surge como uma das principais preocupações de organizações internacionais e protetores de direitos humanos no que tange às consequências da lei britânica. Trata-se de um princípio básico do Direito Internacional dos Refugiados[2] o qual proíbe que Estados transfiram ou removam indivíduos de sua jurisdição ou efetivo controle quando há fundamentos substanciais para acreditar que eles correriam risco de sofrer dano irreparável com o retorno ao país de origem, dano esse que pode tomar a forma de tortura, maus tratos, entre outras graves violações de direitos humanos. O princípio está amplamente consagrado em tratos internacionais de âmbito universal – como na Covenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 (Artigo 33), na Convenção contra a Tortura (Artigo 3) – e de âmbito regional – Convenção Europeia de Direitos Humanos (Artigo 3).

Para além das preocupações prospectivas em matéria de direito internacional, as circunstâncias fáticas do “preparo” ruandense são igualmente alarmantes. Em uma entrevista ao The Guardian, a porta-voz do governo ruandense, Yolande Maloko, disse que não tem certeza se Ruanda consegue acomodar todos os indivíduos que são estimados de serem transferidos e que é algo que “depende de muitos fatores que estavam sendo trabalhados”.[3]

Naturalmente, a Rwanda Bill causou grande tração entre os protetores de direitos humanos ao redor do globo. Filippo Grandi, Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados, alega que a Bill é, evidentemente, uma tentativa de terceirizar a responsabilidade pela proteção dos refugiados e que isso enfraquece a cooperação internacional e estabelece um perigoso precedente global. Similarmente, Michael O’Flaherty, Comissário de Direitos Humanos do Conselho da Europa, alega que a Rwanda Bill “previne os indivíduos de poderem recorrer perante as cortes britânicas no que tange à questão do retorno, uma vez que a medida exclui a apreciação de qualquer pleito que alegue que Ruanda não agirá conforme suas obrigações”.[4]

Ecoando os sentimentos de revolta expressados pelas autoridades internacionais, a Suprema Corte britânica declarou em novembro de 2023, com unanimidade, que o acordo era ilegal. Nas 161 páginas de fundamentação, a Corte apontou que havia motivos substanciais para acreditar que aplicantes de asilo correriam o risco de maus tratos em razão de retorno para seu país de origem se eles fossem removidos a Ruanda. A despeito de tal julgo, a Bill foi levada adiante e foi aprovada pelo parlamento em abril de 2024. A sua efetiva implementação foi, entretanto, barrada pelo novo primeiro ministro, Sir Keir Starmer, o qual assumiu o cargo em maio de 2024.

Outros acordos com Ruanda: Israel e Dinamarca

A inicativa britânica reanimou as discussões na Dinamarca referentes à aprovação de uma lei similar, proposta em de fevereiro de 2021,[5]  mas que teve sua efetivação frustrada em razão das duras críticas feitas por autoridades da ONU e pela Comissão Europeia.

As primeiras tentativas dinamarquesas em criar centros de processamento de asilos no exterior são ainda mais longinquias, datando de 1983. Apesar de frustradas à época, as propostas foram revividas em 1993 pelo ministro Aad Kosto, o qual sugeriu a criação de “centros de recepção” extraterritoriais e citou nominalmente o campo da Baía de Guantanamo como um modelo a ser replicado. Guantanamo abriga um dos complexos prisionais mais polêmicos do mundo, descrito por especialistas das Nações Unidas como um local de notoriedade incomparável pelo uso sistemático de tortura, e outras formas de tratamento cruel, desumano e degradante contra centenas de indivíduos.

A proposta legislativa dinamarquesa de 2021 determinava que pedidos de asilo na Dinamarca deveriam ser submetidos a um procedimento acelerado avaliando sua “transferabilidade” (‘overførselsposition’) para facilidades extraterritoriais ou campos fora da Europa, onde o país hóspede seria supostamente obrigado a agir em conformidade com “alguns parâmetro de direitos [humanos]”.[6] Para assegurar a “transferabilidade” dos asilantes, envisionava-se um aumento significativo do encarceramento e detenção de aplicantes de asilo o mais cedo possível no processo de aplicação.

Além do uso propositalmente elusivo do pronome indefinido e da expressão “parâmetros de direitos humanos” ausente de qualquer mínimo detalhamento, o referido “terceiro Estado” para onde os asilantes seriam tranferidos é, também, absolutamente abstrato; a lei dinamarquesa sequer especifica que países estão aptos para receber os requerentes de asilo. A redação da lei é repleta de artifícios retóricos que revestem a deportação de uma falsa legalidade e observância das normas de direito internacional dos direitos humanos. Posto de forma simplificada, centenas ou milhares de refugiados seriam deportados para um país  – por eles e pelo próprio governo dinamarquês – desconhecido que teria de obedecer com um determinado padrão de proteção de direitos, novamente, desconhecido.

Logrando ou não êxito o pedido de asilo, os requerente não poderiam voltar para a Dinamarca, nem poderiam aplicar para asilo nessas facilidades de processamento extraterritoriais.

Antes mesmo da Dinamarca e do Reino Unido, Israel havia firmado um acordo sigiloso com Ruanda em 2013, denominado procedimento de “voluntary departure”. O acordo, de cujo conhecimento a comunidade internacional só tomou com a publicação de entrevistas da ACNUR com participantes do programa feitas em 2015 e 2017,[7] foi marcado por profundas ilegalidades no âmbito das obrigações internacionais dos Estados em matéria de direitos humanos e direito dos refugiados.

O uso do vocábulo “voluntário” escondia a compulsoriedade com que os asilantes eram levados a se deslocarem a países como Uganda e Ruanda, tendo em vista as hostis políticas de detenção de Israel com migrantes/refugiados e as várias violências sofridas no país. O governo de Israel rotulou sudaneses e eritreios como “infiltrados”, e se referiu a eles múltiplas vezes como uma ameaça à identidade de Israel como um Estado judeu, bem como à sua segurança e economia.[8] Ao chegarem em destinos completamente estranhos, os refugiados são deixados a própria sorte. A promessa de uma vida melhor alhures rapidamente se revela o ponto de partida de uma perigosa e penosa jornada, marcada por grandes dificuldades em achar emprego, se estabilizar e viver com dignidade.

Externalização do asilo

As políticas israelenses, britânicas e dinamarquesas não são casos isolados. As repelência de refugiados e requerentes de asilo é um fenômeno antigo, mas especialmente atual, denominado “externalização do asilo”.

A externalização do asilo pode ser definida, em termos gerais, como “o processo de alterar funções que são normalmente assumidas e praticadas por um Estado dentro de seu próprio território para que elas aconteçam, em parte ou em todo, fora de seu território”.[9] Na prática, consiste em um conjunto de medidas comumente empregado por países do norte-global destinado a evitar que refugiados e aplicantes de asilo cheguem em suas fronteiras. Vários são os mecanismos utilizados: centros extraterritoriais de processamento de asilo, designação de agentes de imigração em portos estrangeiros e controles de visto são os exemplos mais usuais.

Apesar de muito antiga, a prática perdura até os dias atuais, adaptando-se aos interesses contemporâneos e aos desafios impostos pelo crescente fluxo de refugiados nas últimas décadas. Os centros extraterritoriais de processamento de asilo têm se mostrado especialmente populares nas últimas décadas. Os Estados Unidos, nos anos 80, já haviam iniciado processos de interdição e processamentos offshore de pedidos de asilo de cubanos e haitianos em embarcações da guarda costeira ou na base estadunidense em Guantanamo.

Enquanto isso, em 2001, a Austrália implementou a controversa “Solução Pacífica”: política na qual requerentes de asilo que tentavam chegar ao território australiano eram transferidos a centros de detenção em Nauru e Papua Nova Guiné, onde viviam em condições degradantes e inumanas.[10] Revogada em 2008, a medida foi re-adotada em 2012, no governo de Julia Gillard e é amplamente condenada por órgãos internacionais como sendo uma política de “crueldade extrema” que deliberadamente inflige sofrimento a milhares de homens, mulheres e crianças.[11]

As condições de vida dos refugiados em Nauru são absolutamente espantosas: a ONG Médicos Sem Fronteiras reportou em 2018 que quase um terço dos refugiados já havia tentado suicídio e 62% foram diagnosticados com depressão severa ou moderada.[12] O sentimento é de resignação e falta de perspectiva, muito em razão da grave insegurança jurídica. Beth O’Connor, psiquiatra do MSF, relata que os refugiados “tentam aprender as ‘regras’ do sistema, mas as regras mudam o tempo todo. Eles então percebem que a sua condição é inescapável”.

Refugiados em centro de detenção mantido pela Austrália na ilha de Manus, em Papua-Nova Guiné. (Foto: NTB Scanpix)

Com a externalização, transformam-se também os refugiados em uma valiosa moeda de barganha. No acordo firmado entre União Europeia e Turquia em 2016, Ankara concordou em bloquear o movimento de refugiados sírios e de outras nacionalidades em troca de apoio financeiro e outras benesses de Bruxelas. Desde então a União Europeia tem fornecido embarcações, equipamentos, treinamento and inteligência à guarda costal para assegurar que qualquer um que tente atravessar o Mar Mediterrâneo de barco seja interceptado, devolvido e detido.[13] Quanto à Nauru, o governo da Albânia paga $350 milhões anualmente para manter o centro de processamento em funcionamento.

As próprias negociações da Rwanda Bill envolveram valores altíssimos. O National Audit Office informa que 240 milhões de libras foram pagos a Ruanda no final de 2023 e estimava-se um pagamento total de cerca de 370 milhões  de libras nos próximos 5 anos, custando cada refugiado enviado 150,000 libras.[14]

A externalização das políticas migratórias busca não apenas exportar o processamento dos pedidos de asilo e tranfere as obrigações internacionais relativas aos direitos dos refugiados aos “Estados hóspede”, livrando o país que os envia de tais encargos. Grande parte das propostas de externalização são amplamente rechaçadas pelo ACNUR e pelo Alto Comissário da ONU para Refugiados, o qual declarou que “as propostas de externalização de alguns políticos (…) não são somente contrárias à lei, mas não oferecem qualquer solução prática aos problemas que levam as pessoas a fugirem de seus países, e vão de encontro à necessidade de uma maior responsabilidade compartilhada”.[15]

Assim como a esmagadora maioria das práticas de externalização, a Rwanda Bill figura uma política de ostracismo e repulsão que coloca em risco a dignidade dos refugiados e viola as obrigações internacionais do Reino Unido em matéria de direito internacional dos direitos humanos e direito dos refugiados. A urgência de Rishi Sunak em “[s]top the boats” não decorre, pois, de uma preocupação com a segurança e a dignidade daqueles que enfrentam diariamente uma perigosa jornada rumo à Inglaterra para fugir da violência, pobreza e perseguição; objetiva-se a sua pura e simples remoção do Canal da Mancha para longe do continente, a mais de 7 mil quilômetros de distância.

Referências

[1] Human Rights Watch Submission to the United Kingdom International Agreements Committee on the UK Government’s Agreement with Rwanda.

[2] CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Reflexiones sobre el desaraigo como problema de derechos humanos frente a la conciencia jurídica universal. In CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto & SANTIAGO, J. R. La nueva dimensión de las necesidades de protección del ser humano en el inicio del siglo XXI. San José: Corte Interamericana de Derechos Humanos/ ACNUR, 2004, p. 60.

[3] Rwanda admits it can’t guarantee how many asylum seekers it will take in from UK. The Guardian. Acesso por: https://www.theguardian.com/world/article/2024/may/05/rwanda-refuses-to-confirm-how-many-people-it-will-take-in-from-uk

[4] Serious human rights concerns about United Kingdom’s Rwanda Bill. Council of Europe. 23 de abril de 2024.

[5] ‘Lov om ændring af Udlændingeloven (Indførelse af mulighed for overførsel af asylansøgere til asylsagsbehandling og indkvartering i tredjelande)’, traduzida em inglês para “Legislative reform of the Aliens Act (launching the possibility to transfer asylum seekers to case processing and residency in third countries)”

[6] Danish Ministry of Immigration and Integration 2021: 29.

[7] Inside Israel’s Secret Program to Get Rid of African Refugees. Foreign Policy. 27 de junho de 2017. Acesso em: Inside Israel’s Secret Program to Get Rid of African Refugees – Foreign Policy

[8] International Refugee Rights Initiative (IRRI), “I was left with nothing”: “Voluntary” departures of asylum seekers from Israel to Rwanda and Uganda, September 2015, https://www.refworld.org/reference/countryrep/irri/2015/en/107046 [accessed 21 October 2024].

[9] International Journal of Refugee Law (2022), Vol 34, No 1, 114-119. https://doi.org/10.1093/ijrl/eeac022

[10] Durante a duração do programa, 1,678 refugiados foram detidos nas ilhas do Pacífico, conforme dados coletados pelo ACNUR.

[11] Australia: Appalling Abuse, Neglect of Refugees on Nauru. Human Rights Watch.

[12] ‘Infinite Despair’: The tragic mental health consequences of offshore processing on Nauru. Médecins Sans Frontières mental health project, Nauru December 2018.

[13] What is Externalization and Why is it a Threat to Refugees?. Chatham House. 5 de março de 2021. Acesso em: https://www.chathamhouse.org/2020/10/what-externalization-and-why-it-threat-refugees

[14] Investigation into the costs of the UK–Rwanda Partnership. National Audit Office. 1 de março de 2024.

[15] High Commissioner’s Closing Remarks to the 71st Session of the UNHCR Executive Committee. 9 de outubro de 2020.

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