*Por Henrique Galhano Balieiro e José Miguel Silva Ocanto
Artigo publicado na Edição n.4 da revista do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais
Deslocamentos populacionais pelos territórios geográficos, temporários ou permanentes, são feitos desde o início da humanidade, garantindo inclusive nossa sobrevivência. Podemos destacar alguns fatores relevantes para o aumento do fenômeno migratório contemporâneo: guerra civil, conflitos armados, violência étnica ou política, ditadura militar, pobreza extrema, crimes ambientais e mudanças climáticas.
O imaginário migratório brasileiro se consolida a partir do seu processo de colonização, com a invasão dos portugueses até a virada do século XIX para o século XX, com a chegada da mão de obra europeia, para substituir os migrantes africanos escravizados e obrigados a deslocarem forçadamente para cá. A abertura para a migração europeia foi uma das principais políticas do Estado naquela época, para o branqueamento da população, com isso, construiu a referência do “migrante ideal”, ou seja, homem, branco, “civilizado” e europeu. O que permite deixar uma primeira reflexão: o Brasil é realmente um país acolhedor? Quem é bem-vindo no Brasil?
Embora o Brasil tenha sido o destino de migrantes deslocados forçados, das mais variadas nacionalidades, que buscam no refúgio uma nova possibilidade de recomeçar, muitas vezes esses sujeitos sofrem inúmeras violências no país de acolhida. Sobretudo, quando estes sujeitos [C1] pertencem a grupos minoritários ou, por vezes, minorizados, como são em grande contingência, como por exemplo, as mães solos, pessoas idosas, deficientes físicos e pessoas em sofrimento mental; ou membros de grupos ou comunidades como LGBTQIA+ e dos povos originários.
Violências, sejam elas subjetivas, ou pelo modo que são negligenciados pelo Estado, deixando-os à margem da exclusão, contribuem no adoecimento psíquico do sujeito migrante e podem alcançar proporções alarmantes, especialmente quando potencializados por discursos xenófobos. Essa correlação aos discursos de xenofobia, particularmente no ano de eleição em 2018, e o aumento da reprodução dessa violência contra os imigrantes venezuelanos no país, não aconteceu somente no estado de Roraima, mas foi propagado em outras regiões do país e reverberou também contra imigrantes das mais distintas nacionalidades, em especial os latinos, africanos e orientais.
No contexto da pandemia, brasileiros de ascendência asiática e migrantes provenientes do leste e sudeste asiático sofreram racismo, após serem acusados por políticos do governo anterior de serem os disseminadores da Covid-19. No ano de 2020, o angolano João Manuel, 47 anos, morreu esfaqueado, após ser questionado o motivo pelo qual receberia o auxílio emergencial do governo federal e o pagamento deste benefício à população imigrante. No estado de Roraima, que tem recebido o maior número de migrantes venezuelanos, Ramalho (2019) já relatava que “são raros os dias em que não há relatos de agressão, situações de xenofobia e até assassinato”. Em 2022, Marcello Caraballo, 21 anos, foi assassinado pelo locatário do imóvel em que morava com a família, na cidade de Mauá, no estado de São Paulo, após uma discussão por uma dívida de R$100.
No Rio de Janeiro, o congolês Moïse Kabagambe, 24 anos, foi morto na Barra da Tijuca, e chegou a ser espancado por cinco pessoas, após cobrar o pagamento de dois dias de trabalho em um quiosque na praia. Uma congolesa, que não teve a sua identidade revelada, informou à BBC News Brasil: “não é só pela violência física, mas também psicológica, porque a gente não tem os direitos mais básicos respeitados. Queria que o Congo tivesse paz para que eu pudesse voltar para a minha terra.”
Além do racismo estrutural
Vemos até aqui, um caminho longo que vai além do racismo estrutural enraizado em nossa sociedade até o verdadeiro agenciamento da pessoa migrante. Esse sujeito se percebe como sujeito de direito? É de fato tratado como sujeito de direito?
Entre as complexidades do fenômeno migratório estão as manifestações dos diferentes atravessamentos sociais que se articulam entre si e expõe as desigualdades da nossa sociedade, sobretudo das pessoas em mobilidade internacional. As formas de opressão de natureza étnico-racial, religiosa, socioeconômica e de gênero se somam e resultam na limitação de ocupar espaços, sejam eles afetivos, sociais ou físicos.
O condicionamento da subjetividade da pessoa migrante diante dos entraves encontrados durante o seu deslocamento, sobretudo referentes a sua questão regulatória e o seu processo de exclusão no país de acolhida acabam contribuindo para o seu adoecimento psíquico, como nos aponta Pussetti (2010, p. 32) de como o sofrimento mental é identificado no migrante “(…) o resultado da passagem árdua entre uma cultura e a outra, da falta de integração na sociedade de acolhimento, da crise identitária, da discriminação: a tentativa de uma mestiçagem impossível acaba gerando patologias psíquicas”.
O agenciamento da pessoa em mobilidade internacional não deve ser entendido apenas desde a lógica jurídica; o fenômeno migratório acaba, quase sempre, sendo analisado a partir desta perspectiva, que o vê sob um enfoque de legalidade, como um sujeito de direito enquanto a norma e a lei o reconhece como tal. A cidadania da pessoa migrante é uma questão a ser cuidada e deveria ser pensada também no âmbito da Psicologia, pois existem elementos de autonomia que devem ser trabalhados a partir dos seus processos subjetivos para estimular uma genuína participação ativa desse sujeito na sociedade.
Diante disso, temos autores latinoamericanos, como Maritza Montero (2004), que defendem que a psicologia se ocupa dos fenômenos psicossociais decorrentes dos processos comunitários, levando em conta o contexto cultural e social em que surgem. Ainda de acordo com Montero (2004) o termo comunitário refere-se à participação ativa da comunidade, não como parte espectadora ou receptora, mas como agente ativo, com voz ativa. A autora compreende a comunidade como sendo composta por atores sociais que definem o que fica melhor na realidade em que vivem, o que pode orientar o caminho ético-político da psicologia a respeito da emancipação e autonomia do sujeito em mobilidade internacional.
Inclusive, se pensarmos em termos psicossociais na forma em que estes cidadãos acessam alguns direitos fundamentais, vamos encontrar que em questões elementares como é o caso da tramitação da documentação de uma pessoa solicitante de refúgio, no exercício de comprovar que ele se enquadra na categoria, este é submetido a uma avaliação ou análise que pode configurar como um julgamento: se ele é o suficientemente vulnerável para ser reconhecido com o status de refugiado.
O que a psicologia tem a ver?
A construção de sentidos sobre o outro, a alteridade, neste caso a pessoa migrante e refugiada, tem sido realizada dominantemente por meio de discursos estigmatizantes que favorecem a criação de inúmeros estereótipos. Como a Psicologia deve se haver com isso?
Vemos diversas formas de apagamento do “outro”, sobretudo por meio das violências subjetivas, como a invisibilidade social, os espaços de exclusão e reforço dos preconceitos. Porém, a primeira violência circunscrita no migrante, sobretudo no solicitante de refúgio se refere às violações de Direitos Humanos, às perseguições políticas e à discriminação promovida pelo Estado, fazendo-o se deslocar de maneira forçada do seu lugar de origem.
Coloca-se a vítima que sofre inúmeras violações de Direitos Humanos em julgamento, levando o sujeito a assumir o lugar de ter que comprovar a sua inculpabilidade, revitimizando-a para que consiga um “reconhecimento”. Em suma, os protocolos legais colocam os sujeitos na posição de comprovar a vulnerabilidade continuamente para que, nesse lugar de vítima, seja merecedor de acessar os direitos fundamentais.
É papel da psicologia e de todos profissionais envolvidos no trabalho social com a população migrante, subverter este lugar da vitimização e de não patologizar seus processos de subjetivação. É necessário valorizar a sua potência enquanto sujeito, para circunscrever o seu posicionamento no mundo, até que seja capaz de entender que o seu lugar pode ser diferente do que esse que lhe é imposto pelo Estado. Percebemos também o sofrimento psíquico de um migrante que é referenciado a partir de um não lugar, da falta de participação e protagonismo enquanto um ser ativo, digno e merecedor dos direitos para o exercício pleno da sua cidadania.
Outra questão que inviabiliza o exercício da cidadania da pessoa migrante, seria perceber-se e sentir-se como “um estranho” ou “um alheio”, e essa falta de pertencimento, reafirmada pelo lugar social enquanto vulnerável que lhe é atribuído, implica uma dificuldade de construção de vínculos socioafetivos no território. Como estrangeiro, ao migrante é imposto o lugar daquele que não pertence, negando a possibilidade de uma inserção social sem sofrimento.
A pessoa migrante deve demonstrar continuamente a sua inocência, quer face à sociedade de origem que muitas vezes o considera um fugitivo, um traidor, quer face à sociedade de acolhimento que o vê como um intruso: sabe que para ser tolerado não pode incomodar, contestar ou objetar. O seu espaço é o da invisibilidade social e moral (Pussetti, 2010 p.33).
Entendendo-o como um ser político, social e histórico é necessária a participação protagonista dos migrantes na sociedade, assim como políticas duradouras que reafirmem o lugar de cidadão e possibilitem a ocupação do território e dos espaços sociais historicamente negados.
No que se refere à classe, como poderíamos proporcionar e fortalecer esses novos vínculos afetivos deste sujeito migrante com a cidade? Uma possibilidade poderia ser da realização de atividades direcionadas para que estes novos residentes sejam pensados para apresentar e ocupar espaços públicos diferentes para estimular a sua apropriação da cidade. Ocupar a cidade é uma maneira de oferecer novos encontros, direcionadas para este público, tirando a ideia do invisível, sentir convidado e em direito de ocupar.
A Psicologia como ciência e profissão tem um compromisso ético e político de procurar caminhos que valorizem o ser humano em toda a sua diversidade étnica, cultural, de gênero, religiosa, política, portanto é preciso que utilizemos de nosso conhecimento de nossas ferramentas e técnicas para viabilizar um mundo onde as pessoas sejam respeitadas e acolhidas em sua singularidade. Ressaltamos o nosso compromisso social enquanto psicólogas na promoção e garantia de direitos. Acreditamos no processo de desestigmatização e desmarginalização destes sujeitos ao apostar nas suas potencialidades possibilitando a eles um novo ciclo de dinâmica territorial.
Além disso temos muito que avançar nas discussões sobre essa temática entre a categoria, já que desde que se iniciou no Brasil as discussões sobre o atendimento a este público com a chegada massiva de haitianos no início da década de 2010, poucos foram os profissionais da psicologia que se engajaram nesta pauta, sendo que o maior empregador do nosso trabalho é a política pública onde este público recebe apoio e assistência no país de acolhida.
Sobre os autores
Henrique Galhano Balieiro é psicólogo especialista em Direitos Humanos e Cidadania no Contexto das Políticas Públicas e mestre em Psicologia com enfase em processos de subjetivação pela PUC Minas. Analista social para redes e incidência sociopolítica no Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados em Belo Horizonte e coordenador da Comissão de Orientação de Psicologia e Migração do CRP-MG e membro da FENAMI.
José Miguel Silva Ocanto, nascido em Carora (Venezuela), está refugiado no Brasil há quatro anos. Graduando em Ciências Sociais (UFMG) e em Psicologia (PUC Minas). Participa da construção do “COPRIM-MG” como articulação coletiva de migrantes no Estado e integra a Comissão de Orientação em Psicologia e Migração do CRP-MG. Estagiário da área de Integração Social do Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados em Belo Horizonte.
Referências Bibliográficas
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